SANTO ANTÔNIO DE PÁDUA: SERMÃO DO PRIMEIRO DOMINGO APÓS O NATAL DO SENHOR



TEMAS DO SERMÃO
Evangelho do primeiro domingo após o Natal do Senhor: “José e Maria…”, que é dividido em três partes.
No primeiro tema do sermão, sobre a graça e a glória de Jesus Cristo, como está escrito: “Aprende onde está a sabedoria”. O primeiro tema, sobre a pobreza, como está escrito: “Deus fez-me crescer”. Ainda, sobre a miséria dos ricos, como está escrito: “Deus te golpeará com pobreza”. Sobre a humildade, condenação dos soberbos e exaltação dos humildes, como está escrito: “Olhando o Senhor pela coluna de nuvem”. Sobre a útil tristeza dos penitentes, como está escrito: “O espírito triste”. Sobre a obediência, como está escrito: “Fala, Senhor”. E, por fim, para os penitentes e religiosos, como está escrito: “Issacar é um asno forte”.
No segundo tema, sobre a soberba e a humildade do coração, como está escrito “Depôs os poderosos”. Sobre a utilidade da ruína para os pecadores convertidos, como está escrito: “Haverá ruína para o cavalo”. Sobre a ressurreição da alma dos pecados, como está escrito: “A mão do Senhor pôs-se sobre mim”; e sobre a propriedade das prisões. Ainda, contra os amantes das coisas temporais, como está escrito: “Estendi as minhas mãos”. Sobre o duplo parto de Santa Maria, como está escrito: “Antes de dar à luz”; e a Paixão do seu Filho, como está escrito: “Lembra-te da pobreza”. Por fim, sobre as quatro estações do ano e o seu significado, como está escrito: “Quando chegará a plenitude dos tempos”.
No terceiro tema, sobre a Anunciação ou o Natal do Senhor, como está escrito: “Quando tudo estava envolvido num grande silêncio”. E um sermão moral sobre a penitência, como está escrito: “Quando tudo estava envolvido num grande silêncio”.
EXÓRDIO. SOBRE A GRAÇA E A GLÓRIA DE JESUS CRISTO
1. Naquele tempo: “José e Maria, mãe de Jesus, estavam admirados com o que diziam sobre ele” (Lc 2, 33).
Disse Baruc: “Aprende onde está a sabedoria, onde está a prudência, onde está a virtude, onde está a inteligência, para que saibas tanto onde está a longa vida e sobrevivência, quanto a luz dos olhos e a paz” (Bar 3, 14). Diz o Salmo: “O Senhor dará a graça e a glória” (Ps 83, 12); a graça no presente, e a glória no futuro. As primeiras quatro premissas referem-se à graça, e as últimas quatro, à glória. A sabedoria, palavra que vem do latim, “sapere”, sentir sabor, está no gosto da contemplação; a prudência, em precaver-se das ciladas; a virtude, em suportar as adversidades; a inteligência, em recusar os males e escolher os bens. Por outro lado, a longa vida será a dos santos na eterna bem-aventurança; por isso: “Eu vivo, e vós viveis” (Jo 14, 19); a sobrevivência, na fruição da alegria; por isso: “Eu disponho do reino a vosso favor, para que comais e bebais sobre a minha mesa” (Lc 22, 29-30) etc.; a luz dos olhos, na visão da humanidade glorificada de Cristo; por isso, em João: “Pai, os que me deste, quero que, onde eu esteja, eles estejam comigo, para verem a minha glória, que me deste” (Jo 17, 24); a paz, na glorificação do corpo e da alma; por isso Isaías diz: “Conservarás a paz, porque em vós, Senhor, temos esperado” (Is 26, 3). Sobre a longa vida e a luz dos olhos fala-se no Salmo: “A fonte da vida está junto de vós, e na tua luz veremos a luz” (Ps 35, 10); sobre a paz e a sobrevivência: “Que pôs os teus fins em paz, e te sacia com a flor do trigo” (Ps 147, 14). A flor do trigo é a fruição da alegria da humanidade de Jesus Cristo, com a qual se saciarão os santos.
Ou então: Aprende, ó homem, a amar Jesus, e então aprenderás onde está a sabedoria etc. Ele é a sabedoria; por isso, nos Provérbios, lê-se: “A sabedoria construiu para si uma casa” (Prov 9, 1). Ele é a prudência; por isso disse Jó: “A sua prudência”, isto é, a prudência do Pai, “golpeou o soberbo” (Job 26, 12), isto é, o diabo. Ele é a virtude, como disse o Apóstolo: É a virtude de Deus e a sabedoria de Deus (cf. 1Cor 1, 24). Nele está toda a inteligência, a cujos olhos todas as coisas são manifestas (cf. Hebr 4, 13). Ele é a vida: “Eu sou o caminho, a verdade e a vita” (Jo 14, 6). Ele é a sobrevivência, posto que é o pão dos anjos, a refeição dos justos. Ele é a luz dos olhos: “Eu sou a luz do mundo” (Jo 8, 12). “Ele é a nossa paz, que de dois fez um” (Eph 2, 14).
Aprende, ó homem, essa sabedoria, para que saboreies; essa prudência, para que te cuides; essa virtude, para que tenhas sucesso; essa inteligência, para que conheças; essa vida, para que vivas; essa sobrevivência, para que não desfaleças; essa luz, para que vejas; essa paz, para que descanses. Ó bom Jesus, onde vos procurarei? Onde vos encontrarei? Onde, encontrando a vós, encontrarei esses bens? Possuindo-vos, possuirei esses bens? Procura e acharás. E, pergunto, onde mora ele? Onde se apascenta ao meio-dia? (cf. Cant 1, 6) Queres ouvir onde? Dize, peço-to. Em meio a José e Maria, a Simeão e Ana, encontrarás Jesus. Por isso, no evangelho de hoje, lê-se: “José e Maria, mãe de Jesus, estavam admirados” etc.
2. Nesse evangelho, essas quatro pessoas se propõem, e veremos o que cada uma significa do ponto de vista moral. José quer dizer “aquele que acrescenta”; Maria, “estrela do mar”; Simeão, “aquele que ouve a tristeza”; Ana, “aquela que responde”. José simboliza a pobreza; Maria, a humildade; Simeão, a penitência; Ana, a obediência. Dissertaremos sobre cada um.
I. SOBRE A POBREZA, HUMILDADE, PENITÊNCIA E OBEDIÊNCIA

3. José acrescenta (cf. Gen 49, 22). Quando o homem miserável dá-se às delícias, dilata-se nas riquezas, então decresce, porque perde a liberdade. O cuidado com as riquezas fá-lo servo, e enquanto serve essas coisas, diminui para si, dentro de si mesmo. Infeliz da alma que é menor do que aquilo que possui: é menor quando se submete às coisas, ao invés de submetê-las a si. Essa submissão servil é mais óbvia quando se possui com amor, e com dor se perde. Porque essa dor é grande servidão. E o que mais seria? Não há verdadeira liberdade senão na pobreza voluntária. Esse é o José, que acrescenta, e diz, no Gênesis: “Deus me fez crescer na terra da minha pobreza” (Gen 41, 52). Na terra da pobreza, diz ele, e não da abundância, “Deus me fez crescer”: cresce naquela, e decresce nessa. Por isso, o segundo livro dos Reis diz que “Davi, aproveitava e ficava cada vez mais robusto, enquanto a casa de Saul decrescia todo dia” (2Reg 3, 1). Davi, que diz no Salmo: “Eu sou mendigo e pobre” (Ps 39, 18), “aproveita como a luz resplandescente, e cresce até o dia perfeito” (Prov 4, 18), e robustece-se cada vez mais, porque a pobreza alegre e voluntária rendeu-lhe essa força. Por isso, diz Isaías: “O espírito dos fortes”, isto é, dos pobres, “é como um turbilhão que empurra a parede” (Is 25, 4) das riquezas. As delícias e riquezas prendem e dissolvem. Por isso, diz Jeremias: “Até quando te dissolverás nas delícias, ó filha vagabunda?” (Jer 31, 22).
A casa de Saul, que quer dizer abusador, isto é, os ricos deste mundo, que abusam dos bens e dons do Senhor com os apetites do seu corpo, decresce todo dia. Por isso disse Moisés, no Deuteronômio: “O Senhor te castigará com pobreza, febre, frio, ardor, agitação, ar insalubre, e gosto ruim na boca, e serás perseguido até perecer” (Deut 28, 32). O senhor castiga, isto é, permite que castiguem, o rico deste mundo com pobreza, porque sempre quer ter mais; febre, porque tortura-se e dói-se vendo a felicidade alheia; frio, isto é, temor de perder as coisas adquiridas; o ardor de adquirir o que não possui; a agitação da gula; o ar insalubre da má fama; o gosto ruim da luxúria. É assim que decresce a casa de Saul. A casa de Davi, porém, mendigo e pobre, cresce de virtude em virtude na terra da sua pobreza.
4. A seguir, sobre a humildade. Maria, estrela do mar. Ó humildade! Estrela radiante, que ilumina a noite, guia até o porto como uma chama coruscante, e mostra o rei dos reis e Deus, que diz: “Aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração” (Mt 11, 29). Quem não tem essa estrela “é cego e míope” (2 Pt 1, 9), a sua barca será destruída pela tempestade, e ele submergirá em meio às ondas. Por isso se diz, no Êxodo, que “Olhando o Senhor, pela coluna de nuvem e fogo, para os exércitos dos egípcios, matou o seu exército, e virou as rodas dos carros, e eles afundaram. Os filhos de Israel, porém, passaram a pé enxuto pelo meio do mar, e as águas dele ficaram como muros, à direita e à esquerda” (Ex 14, 24-25. 29). Os egípcios, que a nuvem tenebrosa obnubilava, são os ricos e poderosos deste século, que a fumaça da soberba põe em trevas, os quais o Senhor mata; e vira-lhes as rodas dos carros, isto é, a dignidade e glória daqueles que giram pelas quatro estações do ano; e os afunda no fundo do inferno. Os filhos de Israel, porém, iluminados pelo resplendor do fogo, são os penitentes e pobres de espírito, iluminados pelo resplendor da humildade; a pé enxuto, eles passam pelo mar deste mundo, cujas águas, isto é, amargas inundações, são-lhes como muros, porque eles se armam e defendem-se da prosperidade da direita e da adversidade da esquerda, de modo a não serem elevados pelo prestígio popular, nem precipitados pela tentação da carne.
Sobre isso, fala o Deuteronômio: “Mamarão das inundações do mar como do leite” (Deut 33, 19). Note-se que ninguém pode mamar nada, se não o apertar com os lábios. Os que têm a boca aberta no ganho de dinheiro, na negociação da vanglória, no favor popular, não conseguem mamar das inundações do mar. É difícil separar os lobos do cadáver, as formigas da semente, as moscas do mel, os beberrões do vinho, as meretrizes do prostíbulo, os comerciantes do mercado. Salomão, nos Provérbios, disse algo semelhante: “O provérbio é o seguinte: O adolescente está no seu caminho; mesmo envelhecendo, não sairá dele” (Prov 22, 6). Só os humildes, que fecham seus lábios ao amor das coisas temporais, mamam das inundações do mar como do leite.
Ó estrela do mar! Ó humildade de coração, que convertes o mar amargo e impróprio em doce e formoso leite! Ó quão doce é para o humilde a amargura! Quão leve a tribulação, que suporta pelo nome de Jesus! As pedras foram doces para Estêvão, a grelha para Lourenço, os carvões ardentes para Vicente: por Jesus, mamaram as inundações do mar como leite.
Na palavra “mamar”, nota-se a avidez com deleitação. Só a humildade sabe mamar das tribulações e dores com avidez e deleitação. Por isso, nos Cânticos: “Quem te dará a mim, meu irmão, mamando nos peitos de minha mãe?” (Cant 8, 1). Fala-se aí de três pessoas: a mãe, a irmã e o irmão. A mãe é a penitência, que tem dois seios: a dor da contrição, e a tribulação da satisfação; a irmã é a pobreza; o irmão, o espírito de humildade. Diz, pois, a irmã pobreza: Quem me te dará dará, ó meu irmão, espírito de humildade, para que com avidez mames nos seios de nossa mãe? Eis o irmão e a irmã, José e Maria, o esposo e a esposa, a pobreza e a humildade. “Quem tem esposa é esposo” (Job 3, 29). Bem-aventurado o pobre, que toma a humildade como sua esposa.

5. A seguir, sobre a tristeza da penitência. Simeão, aquele que ouve a tristeza. Dela fala o Apóstolo: A tristeza que é segundo Deus opera a salvação (cf. 2Cor 7, 10). E nos Provérbios: “O espírito triste seca os ossos” (Prov 17, 22), pelo peso da devassidão e petulância. Por isso Jó: “Castiga pela dor no leito, e faz enfraquecer todos os seus ossos. O pão lhe é abominável à sua vida, e a comida que antes desejava, à sua alma” (Job 33, 19-20). O leito é a deleitação carnal, na qual a alma jaz como que paralítica, dissoluta em todos os membros. Por isso, em Mateus: “Mostraram-lhe um paralítico jazendo num leito” (Mt 9, 2). O Senhor castiga pela dor no leito, quando incute a dor dos pecados na alma que repousa na deleitação carnal, e então ouve a tristeza, que faz enfraquecerem todos os seus ossos.
Daniel, tendo uma visão, disso: “Não ficou em mim nenhuma força, mas até a minha aparência mudou, e encolhi, e não tive mais forças” (Dan 10, 8). A quem aconteceu isso, torna-se abominável o pão, isto é, a deleitação carnal, à sua vida e à sua alma, isto é, à sua animalidade, o alimento antes desejável. Eis o que diz Daniel: “Não comi o pão desejável, carne e vinho não entraram na minha boca, nem fui ungido com unguentos” (Dan 10, 3).
Disse Salomão: “O coração que conheceu a amargura da sua alma, não se misturará na sua alegria um estrangeiro” (Prov 14, 10). Onde estiver a mirra da tristeza, aí não será admitido o verme da luxúria. Por isso Isaías diz: “Afastai-vos de mim, chorarei amargamente”. Como a fumaça espanta as abelhas, assim a amarga e lacrimosa compunção expele os demônios, que rodeiam a alma como as abelhas, o favo. “E não trateis”, ó afetos carnais, “de consolar-me”, porque, como disse Jó, “vós todos sois consoladores pesados” (Job 16, 2). “A minha alma não quis ser consolada” (Ps 76, 3) pelo vosso consolo. “Vossas consolações, ó Senhor”, e não as minhas – porque “ai de vós, que tendes o vosso consolo” (Lc 6, 24) -, “alegraram a minha alma” (Ps 93, 19). “Não trateis, pois, de consolarme sobre a devastação”, isto é, aflição, “da filha” isto é, da carne, que é filha “do meu povo”, isto é, da população dos meus cinco sentidos. Dele fala o Salmo: “Que submete o meu povo a mim” (Ps 143, 2).
6. Segue-se a respeito da obediência. Ana, “aquela que responde”, assim como Samuel: “Fala, Senhor, que teu servo escuta” (1Reg 3, 10); e como Isaías: “Eis-me, enviai-me” (Is 6, 8); e como Saulo: “Senhor, que quereis que eu faça?” (At 9, 6). Diz o Eclesiástico: “A resposta suave quebra a ira” (Prov 15, 1), “e o modo de falar gracioso abundará no homem bom” (Eccli 6, 5). “A resposta suave” do humilde súdito “quebra a ira” do superior soberbo. Por isso se diz nos Provérbios: “A paciência” do súdito “aplaca o príncipe” (Prov 25, 15). “Não lutes contra o ímpeto da correnteza”, como diz o Eclesiástico (Eccli 4, 32), isto é, a vontade do superior, “mas humilha a tua cabeça diante dele” (Eccli 4, 7).”E o modo de falar gracioso abundará no bom” súdito, de modo que pode dizer com Jó: Chamai-me, e responder-vos-ei (cf. Job 14, 15). Ele responde a quem chama e obedece de coração quem lhe é superior.
Eis que explicamos brevemente essas quatro virtudes, por que quem quer encontrar Jesus tem essas quatro pessoas, em meio às quais repousa a salvação. José e Maria levaram Jesus ao templo. Simeão e Ana professam e bendizem. Porque a pobreza e a humildade levam o Jesus pobre e humilde. A pobreza o leva nos braços.
7. Por isso, no Gênesis, lê-se: “Issacar é um asno forte, deitado nos confins; viu que o descanso era bom, e que a terra era ótima; abaixa o braço para carregar” (Gen 49, 14-15). Issacar quer dizer recompensa, e significa a pobreza, que abandona todas as coisas temporais, para poder receber a recompensa da eternidade. Ela é chamada “asno forte”. O asno é um animal de carga, apascentado nos lugares ásperos e vis. Assim a pobreza carrega o peso do dia e do calor (cf. Mt 20, 12), e vive nas coisas grosseiras e ásperas. Migalhas de pão, diz São Bernardo, e simples água, vegetais ou legumes simples de modo algum são coisas deleitáveis, mas, no amor a Cristo e desejo da deleitação interior, é muito deleitável poder satisfazer com eles um ventre sóbrio e mortificado. Quantos milhares de pobres satisfazem deleitavelmente a natureza, com esses alimentos ou semelhantes! Seria facílimo e deleitável viver segundo a natureza, adicionando o condimento do amor de Deus, se a nossa insanidade no-lo permitisse.
Continua-se: “Deitado nos confins”, não “entre os confins” (Gen 49, 14). Dois são os confins, a saber: a entrada e a saída da nossa vida. Nesses deita-se, descansa a pobreza. Contempla a paupérrima entrada do homem, e vê a sua vilíssima saída, e por isso não quer deitar-se entre os confins, para ouvir, como diz o livro dos Juízes, o murmúrio dos rebanhos (Judic 5, 16), isto é, a suave sugestão dos demônios. Habita ou deita-se entre os confins aquele que não contempla a entrada e a saída da sua vida, mas prefere descansar no prazer da carne e na vaidade do mundo.
Segue-se: “Viu que o descanso” da celestial bem-aventurança “era bom, e que a terra” da eterna estabilidade “era ótima; abaixou o braço para carregar” o pobre Jesus, Filho de Deus. Carrega Jesus quando suporta pacientemente, por amor dele, tudo o que lhe acontece de adverso. Por isso diz o Eclesiástico: “Recebe tudo o que for ligado a ti, e segura-o mesmo na dor” (Eccli 2, 4). A pobreza carrega-o nos braços, a humildade, no peito e nos braços. Por isso diz-se nos Cânticos: “O meu amado é para mim um raminho de mirra, e morará entre os meus seios” (Cant 1, 12). Nesse diminutivo, “raminho”, denota-se a humildade; a mirra designa a amargura da Paixão do Senhor. O coração fica entre os seios, como se a esposa dissesse: Eu carrego no coração o meu amado Jesus, raminho de mirra, isto é, humilde e crucificado, para que eu seja humilde de coração, e fixe meu corpo à cruz com ele. Portanto, a pobreza e a humildade levaram Jesus ao templo, quer dizer: todos os que veem ao templo da Jerusalém celeste, que não é feito por mãos de homens.
Ainda, a penitência e a obediência professam e bendizem. Por isso diz o Salmo: “A confissão e a beleza estão diante dele” (Ps 95, 6), falando do penitente, cuja confissão é beleza. Porque a confissão limpa a lepra do pecado e enfeita com a graça do Espírito Santo. Por isso diz o Salmo: “Vestiste confissão e decoro” (Ps 103, 2), isto é, os penitentes, que são limpos pela confissão e decorados com a graça. Segue-se: “A santidade e a magnificência estão na sua santificação” (Ps 95, 6), falando do obediente, que o Senhor santifica com a santidade da consciência na mortificação da própria vontade, e a magnificência da vida na execução da ordem alheia. Eis onde habita o rei das virtudes. Tem, pois, essas virtudes, e encontrarás o Deus de sabedoria e o Deus das virtudes, Jesus.
A ele, caríssimos irmãos, imploremos humildemente, para que edifique a casa dos nossos costumes nessas quatro colunas, para que ele possa habitar conosco e nós com ele. Conceda-no-lo aquele que é bendito pelos séculos. Amém.

II. SOBRE A PROFECIA DE SIMEÃO

8. “Disse Simeão a Maria sua mãe: Eis que ele é posto como ruína e ressurreição de muitos em Israel” (Lc 2, 34). Diz Santa Maria em seu cântico: “Depôs do trono os poderosos, e exaltou os humildes” (Lc 1, 52). “Depôs”, isto é, pôs abaixo. É isto o que o Senhor diz no profeta Abdias: “A soberba do teu coração transviou-te, tu que habitas nas fendas do rochedo, exaltando o teu trono. Dizes no teu coração: Quem me faria cair por terra? Mesmo que fosses elevado como a águia, e em meio às estrelas pusesses o teu ninho, ainda assim te deporia”, isto é, poria abaixo, “diz o Senhor” (Abd 1, 3-4). Leiam-se os sermões sobre o evangelho: “Saiu o semeador a semear a sua semente” (Dom. in Sexagesima) e: “Um cego sentava-se à beira da estrada” (Dom. in Quinquagesima I).
“Depôs os poderosos.” Isto é dito em Daniel: “Eis que um santo vigilante desceu do céu, e clamou fortemente, dizendo assim: Derrubai a árvore, desgalhai-a e tirai suas folhas, e dispersai os seus frutos” (Dan 4, 10-11). O nome “árvore”, em latim, “arbor”, vem de “robusteza” (“robur”), e indica o poderoso deste mundo, que, como disse Jó, “estendeu contra Deus a sua mão, e robusteceu-se contra o Onipotente” (Job 15, 25). Eles seguramente morrerão e serão lançados no inferno, e então os seus ramos, isto é, o poder dos parentes, a nobreza da linhagem, que costumava incrementar e alargar, cairão; então as folhas, isto é, os discursos cheios de vento da soberba, serão abaladas; então os frutos das delícias e riquezas, que ajuntou para o seu mal, serão dispersos.
“Depois do trono os poderosos, e exaltou os humildes.” Isto diz Jó: “Levanta os tristes na salvação” (Job 5, 11); e ainda: “Quando te creres consumido, levantar-te-ás como um luzeiro. E terás confiança na esperança dada a ti” (Job 11, 17-18). Depôs o soberbo Aman e exaltou o humilde Mardoqueu. Aquele caiu do trono, esse subiu no seu lugar. Bem diz Santa Maria: “Depôs do trono os poderosos, e exaltou os humildes”. Por isso, diz-lhe, a respeito do seu filho, São Simeão, no evangelho de hoje: “Eis que ele é posto como ruína” etc. Ele dis isto em João: “Eu vim ao mundo para o juízo, para que os que não veem vejam, e os que veem fiquem cegos” (Jo 9, 39). Sobra a ruína daqueles, Isaías fala: “Jerusalém ruiu, e Judá pereceu, por causa da sua língua” (“Crucifica-o, crucifica-o”) “e das suas invenções” (“Posso destruir este templo feito por mãos de homens” etc) “contra o Senhor, para provocar os olhos da sua majestade” (Is 3, 8).
9. Do ponto de vista moral. Diz o Eclesiástico [Provérbios]: Vira o ímpio, e ele não mais será (cf. Prov 12, 7) ímpio. Caiu Saulo perseguidor, e levantou Paulo pregador. Isso é, pois, o que quer dizer: “Eis que ele é posto em ruína” dos pecadores. Dessa ruína fala Zacarias: “Haverá ruína para o cavalo e o mulo, para o camelo e o asno e todos os jumentos” (Zach 14, 15). No cavalo é designada a soberba, pois Jeremias dia: “Todos voltaram para o seu curso, como um cavalo impetuoso” (Jer 8, 6). No mulo, a luxúria, pois diz o Salmo: “Não vos façaos como o cavalo e o mulo” (Ps 31, 9). No camelo, a avareza, por isso: O camelo, isto é, o avarento, não pode passar pelo buraco da agulha, isto é, a pobreza de Jesus Cristo (cf. Mt 19, 24). No asno, o torpor da negligência, que é o esgoto de todos os vícios. Por isso o asno é chamado, em latim, “asinus”, semelhante a “alta sinens”, isto é, que permite coisas altas. O torpor da negligência não sobe a coisas altas, mas quer ir sempre pelo plano. Por isso diz Abraão os seus filhos, no Gênesis: “Esperai aqui com o asno” (Gen 22, 5). Os filhos são os afetos pueris e carnais, que esperam com o asno, isto é, com o torpor e retardo do asno. No jumento, a voluptuosa deleitação dos cinco sentidos, dos quais fala Isaías: “Sina dos jumentos do sul. Para a terra da tribulação e da angústia, de onde vêm a leoa e o leão, a víbora e a serpente voadora” (Is 30 ,6). A terra é a carne, na qual germinam em nós os espinhos da tribulação e os tríbulos da angústia. Esta é a sina dos jumentos, isto é, dos cinco sentidos, que são os jumentos do sul, isto é, as alegrias mundanas. Na terra de tribulação e angústia que os jumentos pisam e estercam, estão a leoa da luxúria e o leão da soberba, a víbora da ira, a serpente voadora da inveja e vanglória.
Ó Senhor Jesus, caiam em ruína todas essas bestas e jumentos, para que o jumentinho do pecador morra junto e, morrendo, ressuscite espiritualmente. Digamos pois: Eis que ele é posto em ruína.
10. Segue-se: “E ressurreição de muitos”. Há concordância acerca disso em Ezequiel: “Pôs-se sobre mim a mão do Senhor, e conduziu-me para um campo, que estava cheio de ossos de mortos. Eram muitíssimos, e veementemente secos. E disse-me: Profetiza, filho do homem, sobre esses ossos, e dize-lhes: Ossos áridos, ouvi a palavra do Senhor. Eis que eu infundirei em vós o espírito, e vivereis, e dar-vos-ei nervos e farei crescer carnes sobre vós, e estenderei pele sobre vós” (Ez 37, 1-2. 4-6). Os ossos secos são os pecadores, que são secos do influxo da graça, e cujo coração seca, porque esqueceram-se de comer o pão (cf. Ps 101, 5), que contém todo sabor e todo deleitamento (cf. Sap 16, 20); Deles diz Jó: Os ossos de Beemot são como canos de ar (cf. Job 40, 13). Pervertidos na malícia, duros como os ossos do diabo, pois sustentam os carnais como os ossos sustentam a carne, são como canos de ar, porque repelem de si as setas aéreas da pregação, e, ao ímpeto da reprovação, emitem o barulho da murmuração. Professam as palavras de Cristo (eis os canos), mas negam os seus feitos (cf. T 1, 16) (eis a dureza do ar).
Mas, porque a misericórdia desse Cristo é maior do que a aridez e dureza dos ossos, disse: “Eis que eu infundirei em vós o espírito, e vivereis” etc. Notemos estas quatro coisas: espírito, nervos, carnes e pele. O espírito designa a inspiração da graça preveniente; os nervos, a concatenação de bons pensamentos; as carnes, a compaixão com o próximo; a pele, a extensão da perseverança final. “Infundirei o espírito em vós, e vivereis.” Por isso é dito no Gênesis: “Soprou em sua face um sopro (spiraculum) de vida” (Gen 2, 7) etc. Leia-se o sermão sobre o evangelho: “Jesus foi levado para o deserto” (Dom. I in Quadrag., Sermo alter: De Poenitentia I).
11. “E dar-vos-ei nervos.” Há uma miríade de nervos junto às mãos, pés, costelas, e ao redor das espáduas e pescoço; e os ossos, que se articulam uns com os outros, são ligados pelos nervos. Ao redor deles há uma certa umidade, da qual se geram e nutrem os ossos. Quando o Senhor infunde o espírito da graça num pecador, então brota no seu coração a umidade da compunção, da qual se geram e nutrem os nervos da boa afeição e boa vontade, que compõem e ligam todo o corpo às boas obras.
“E farei crescer carnes.” Eis o que diz o mesmo Profeta: “Tirarei de vós do coração de pedra, e dar-vos-ei um coração de carne” (Ez 36, 26), que, compungido, doa-se de compaixão pelo próximo, porque o nosso irmão também é carne. (cf. Gen 37, 27). Ó coração de pedra, que não te moves de nenhuma compaixão para com o próximo! Diz ele: “Acaso eu sou guardião dos meus irmãos?” (Gen 4, 9). Saberás que em o guardar há uma grande recompensa (cf. Ps 18, 12). O primeiro livro dos Reis diz que “o coração de Nabal amorteceu dentro do peito, e tornou-se como uma pedra” (1Reg 25, 37). Porque ele não quis compadecer-se de Davi, nem dar-lhe do que era seu, mas prorrompeu em palavras afrontosas, dizendo: “Quem é Davi, e quem é o filho de Isaí? Hoje em dia, há cada vez mais escravos que fogem dos seus senhores. Pegarei, pois, eu os meus pães, a minha água, as carnes dos carneiros, que matei com as minhas navalhas, e darei a homens que não sei de onde são?” (1Reg 25, 10-11). Hoje, os avarentos e usurários, que têm o coração de pedra, dizem coisas semelhantes aos pobres de Jesus Cristo.
“E estenderei pele sobre vós.” A extensão da pele é a perseverância final. “Sois vós”, diz o Senhor, “os que permaneceram comigo nas minhas tentações” (Lc 22, 28). Mas ai daqueles que perderam essa perseverança. Por isso diz Jó: “A minha pele secou e contraiu-se” (Job 7, 5). A pele seca e contrai-se quando se retira à boa obra o efeito da perseverança final. Por isso diz o Eclesiástico: A denudação do homem é no seu fim (cf. Eccli 11, 29). Então aparecerá a sua feiura.
Está explicado como o Senhor vivifica os ossos secos, aquele que “é posto em ressurreição de muitos”. 12. Segue-se: “E em sinal a ser contradito” (Lc 2, 34). Disso, em Mateus: “E então aparecerá no céu o sinal do Filho do homem” (Mt 24, 30); e Isaías: “Sobre o monte esfumaçado elevai um sinal, erguei a voz, levantai a mão” (Is 13, 2). O monte esfumaçado é o diabo: monte, devido à soberba, e esfumaçado, devido à fumaça da sugestão, que aplica às almas. Sobre ele, então, os pregadores elevam um sinal, quando pregam-no vencido por virtude da cruz; erguem a voz quando oportuna e importunamente argúem, pregam, repreendem (cf. 2Tim 4, 2); levantam a mão, quando pregam com a voz, e praticam com obras.
Ainda sobre esse sinal, fala o Senhor em Ezequiel: “O sinal ‘thau’ (T) nas frontes dos homens que gemem e compungem-se por causa de todas as abominações que se fazem em meio a eles” (Ez 9, 4). Somente esses não contradizem o sinal da Paixão do Senhor, porque o carregam na fronte. Quem são os que gemem e compungem-se, senão os penitentes, pobres de espírito, que se gloriam na cruz de Cristo, e, por causa das abominações que se fazem no mundo, têm compunção e gemem? Os infiéis o contradizem por palavras e obras – por isso diz o Apóstolo: “Pregamos Jesus crucificado, escândalo para os judeus, loucura para os pagãos” (1Cor 1, 23) -; os falsos cristãos, pelas obras. “Ai”, diz Isaías, “daquele que contradiz o seu feitor, sendo terracota entre os cacos da terra!” (Is 45, 9), isto é, um vaso. Caco de louça é chamado “Samius” em latim, pois nessa cidade são fabricadas louças. Terracota, ou cozida, é o falso cristão: tostado, porque sem devoção, frágil na obra, louça pela criação; o qual contradiz o seu feitor, Cristo, que, com as mãos pregadas na cruz, modelou-o, restituiu-lhe a honra da primeira dignidade, na qual não pode permanecer senão por ele. Por que, pois, o infeliz contradiz, com o testemunho de uma vida má, o seu feitor, o seu redentor?
13. Por isso, em Isaías: “Abri as minhas mãos o dia todo para um povo incrédulo, que caminha por um caminho não bom, atrás dos seus pensamentos; povo que, diante da minha face, sempre me provoca à ira, que imolam nos hortos e fazem sacrifícios sobre tijolos, que habitam em sepulcros e dormem nos templos dos deuses, que comem carne suína, e nos seus vasos há um direito profano” (Is 65, 2-4). “Abri” largamente, não negando nada aos que pediam. Por isso, nos Provérbios: “Abri minha mão, e não havia quem olhasse” (Prov 1, 24). Na sua primeira vinda, a mão do Senhor foi aberta, mas na segunda será fechada, e então baterá com o punho, “e quebrará as mandíbulas dos leões” (Ps 57, 7). “Abri”, pois, “as minhas mãos”, na cruz, como se dia nos Cânticos: “Suas mãos são torneadas, de ouro, cheias de safiras” (Cant 5, 14). As mãos de Cristo são ditas “torneadas” pela Paixão, porque foram perfuradas pelos cravos como um torno; “de ouro”, pela pureza das obras; “cheia de safiras”, isto é, dos prêmios da vida eterna; dos quais a primeira safira mereceu receber o Ladrão: “Hoje estarás comigo no paraíso” (Lc 23, 43).
“O dia todo”, e toda a noite, porque, quando o dia da prosperidade mundana nos sorri, então devemos recordar-nos da morte de Jesus Cristo. Por isso se diz que o sol, na sua morte, obscureceu-se (cf. Lc 23, 45). O sol da glória mundana deve obscurecer-se para nós à memória da Paixão do Senhor.
“Abri a um povo incrédulo.” Diz Isaías: “Quem é incrédulo age como um infiel” (Is 21 ,2). Diz Santo Agostinho: Crer em Deus é amar a Deus, e ir a ele, e incorporar-se aos seus membros. Quam não faz isso mente quando diz: Creio em Deus. Incrédulo é, pois, quem não crê nisso, e age como um infiel: a sua fé é morta, porque carece de caridade.
“Que caminha por um caminho não bom”, largo e espaçoso, que conduz à morte (cf. Mt 7, 13). Igualmente nos Provérbios: “O homem apóstata é um homem inútil, caminha com a boca pervertida, fala com o dedo, aponta com os olhos, esfrega com o pé” (Prov 6, 12-13). “Atrás de seus pensamentos”, dos quais se fala no livro da Sabedoria: “Os pensamentos maus separam de Deus” (Sap 1, 3); e: “O Espírito Santo se retira dos pensamentos que são sem inteligência” (Sap 1, 5).
“Povo que me provoca à ira”, isto é, à vingança, pelo zelo em fazer o mal. Por isso diz Sofonias: “Ai da cidade provocadora e redimida” (Soph 3, 1), como se dissesse: Aqueles que redimi com o meu sangue provocam-me à ira.
“Diante da minha face, sempre”, isto é, manifestamente, o que é pior. “O seu pecado”, diz Isaías, “alardearam como Sodoma, e não esconderam” (Is 3, 9).
“Que imolam nos hortos”, eis a luxúria. Por isso diz Isaías: “Enrubescereis sobre os hortos” (Is 1, 29), isto é, os locais voluptuosos, “que elegestes” para a vossa luxúria.
“E sacrificam sobre tijolos”, eis a avareza. Por isso, se diz no Êxodo: “Não vos será dada palha, e fareis o mesmo número de tijolos” (Ex 5, 18). Acontece muitas vezes que os avarentos e usurários tirem a palha, isto é, as riquezas, rendendo ao diabo os mesmos tijolos de avareza. Ou: sobre os tijolos sacrificam os que rezam ao Senhor o ofício divino junto ao fogo ou na cama.
“Que habitam nos sepulcros”, eis a detração. “A sua garganta é um sepulcro aberto” (Ps 13, 2) etc. “E dormem nos templos dos ídolos”, eis a hipocresia, que, como um ídolo, mostra uma aparência de religião, mas carece da verdade das obras. Ai! Quantos cultuadores de ídolos hoje são venerados como um simulacro, que simulam a santidade que não têm.
“Que comem carne de porco”, eis a imundície da gula; “e há nos seus vasos um direito provano”, isto é, nos seus corações, a impureza dos pensamentos. Os que fazem assim, contradizem o sinal da Paixão do Senhor.
14. Segue-se: “E uma espada transpassará a tua alma” (Lc 2, 35). A dor, que Santa Maria suportou na Paixão do seu Filho, foi como uma espada, que transpassou a sua alma. Isto diz Isaías: “Deu à luz antes dos trabalhos de parto” (Is 66, 7). Note-se que duplo foi o parto de Santa Maria: um segundo a carne e outro segundo o espírito. O parto da carne foi virginal e todo cheio de alegria, porque a Virgem deu à luz sem dor, com a alegria dos anjos. Por isso diz, com Sara, no Gênesis: “O Senhor fez-me um riso; todos os que ouvirem rirão comigo” (Gen 21 ,6). Devemos rir e alegrar-nos com Santa Maria no Nascimento do seu Filho; devemos também compungirmos com ela na Paixão dele, na qual a sua alma foi transpassada por uma espada, e então foi o segundo parto, doloroso e cheio de toda amargura. Isso não é de admirar, porque o Filho de Deus, que concebera e dera à luz sendo Virgem, com a cooperação do Espírito Santo, via ser pregado no lenho com cravos, e suspenso entre ladrões. Como não esperar que uma espada lhe transpassasse a alma? “Chegai e vede se há dor como a sua dor” (Lam 1, 12). Antes, portanto, de parir na Paixão, deu à luz no Natal.
15. Do ponto de vista moral. Diz Jeremias, em nome de Jesus Cristo, ao Pai: “Lembrar da minha pobreza e cruzamento é para mim absinto e fel” (Lam 3, 19). A Paixão de Cristo é chamada cruzamento, pois cruzou a dor e a paixão de todos os mártires. Por isso Lucas diz que “Moisés e Elias narrara, a sua passagem”, isto é, a sua Paixão, que passou por toda paixão, “que se daria em Jerusalém” (Lc 9, 31). Quando o homem justo atenta para isso, logo acrescenta o seguinte: “Lembrarei com a memória, e a minha alma se cala” (Lam 3, 20).
Ó Filho de Deus, “lembrarei com a memória” – a redundância de palavras exprime o grande afeto do amante – a tua “pobreza”, que foi tanta, que na morte não teria um sudário com o qual fosse envolvido, ou um túmulo no qual fosse sepultado, se não lhe fosse dado como a um pobre mendigo, como obra de misericórdia e esmola; “e o cruzamento”, isto é, a Paixão, com a qual cruzastes toda dor humana. Por isso se diz, em João: “Saiu Jesus com os seus discípulos para além da torrente de Cedron” (Jo 18, 1), que quer dizer “luto do triste”. Porque toda tristeza e luto foi percorrido na Paixão. Todos os mártires, antes de suportar a paixão, ignoravam quanta dor sofreriam nela, e assim não sentiam tanta dor quanto sentiriam se soubessem. O Senhor, porém, que sabe tudo antes que aconteça, antes de chegar à Paixão, sabia toda a força da sua dor, e, portanto, não é de admirar que se doesse mais do que todos os outros. “Absinto e fel”, dos quais se diz no Salmo: “Deram-me a comer fel” (Ps 68, 22) de touro, mais amargo do que qualquer coisa. Quando me lembro disso, cala-se a minha alma, que transpassa a espada da tua Paixão.
Quando isso acontecer, então, como diz o seguinte: “revelar-se-ão os pensamentos de muitos corações” (Lc 2, 35). Isto é o que diz Jó: “O que revela as profundezas das trevas, e revela na luz a sombra da morte” (Job 12, 22). Quando o Senhor transpassa uma alma com a espada da sua Paixão, então as “profundezas”, isto é, os vícios, que estão longe do fundo da suficiência, porque nunca dizem: “Basta”, mas sempre: “Traze, traze” (cf. Prov 30, 15), “revela das trevas”, isto é, da cegueira da alma, na contrição do coração, para que o homem a conheça, e, conhecida, manifeste-a na confissão; da qual se segue: “e revela na luz” da confissão “a sombra da morte”, isto é, o pecado mortal.
16. Com essa passagem evangélica, concorda esta parte da epístola de hoje: “Quando virá a plenitude dos tempos” (Gal 4, 4). Se, como diz o Eclesiastes, “todo negócio é tempo” (Eccle 8, 6), e o Eclesiástico: “o sabio calar-se-á até o tempo” (Eccli 20, 7), é próprio de Deus, no negócio da salvação do homem, observar o seu tempo para a emissão do Verbo. Note-se que há quatro estações no ano: inverno, primavera, verão e outono. De Adão até Moisés foi como o inverno: “Reinou”, diz o Apóstolo, “a morte de Adão até Moisés” (Rom 5, 14). A primavera foi de Moisés até Cristo. Nela começaram a pulular deveras as flores, prometendo frutos. Quanto, porém, veio o verão, que é a plenitude dos tempos, no qual as árvores enchem-se de frutos, então “enviou Deus o seu Filho, feito da mulher” (Gal 4, 4).
O Levítico concorda com isso: “Dar-vos-ei as chuvas nos seus tempos, e a terra germinará a sua semente, e as árvores encher-se-ão de frutos. A debulha do trigo durará até a vindima, e a vindima até a sementeira; e comereis o vosso pão à saciedade” (Lev 26, 3-5). O Senhor deu a chuva, quando pôs o orvalho no ar, e a chuva desceu como um véu (cf. Judic 6, 40), isto é, quando, pelo anúncio do Anjo, a Virgem concebeu o Filho de Deus. A terra germinou a semente, quando a mesma Vrigem deu ao mundo o Salvador, em cuja pregação e operação de milagres, as árvores, isto é, os apóstolos, encheram-se dos frutos das virtudes. E a debulha, isto é, a Paixão do Senhor, que foi debulhado por causa das nossas manchas (cf. Is 53, 5), apreendeu a vindima, isto é, a infusão do Espírito Santo, do qual foram inebriados os apóstolos: Os que o Espírito enchera eram considerados embriagados de vinho doce (cf. Act 2, 13-14). E essa vindima durou até a sementeira, isto é, a sua pregação, porque começaram imediatamente a pregar e dizer: “Fazei penitência, e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo” (Act 2, 38).
O outono será na celestial bem-aventurança, na qual comerão o pão do santo à saciedade, “e sentar-se-ão”, como diz Miqueias, “abaixo da sua vinha e abaixo do seu figo, e não haverá quem os desterre” (Mich 4, 4).
Segue-se: “Feito sob a lei” (Gal 4, 4), isto é, submetido às observâncias da lei: “Não vim abrogar a lei, mas levá-la à plenitude” (Mt 5, 17), “para redimir os que estavam sob a lei” (Gal 4, 5). Semelhantemente, na epístola aos Hebreus: “Para que, pela morte, destruísse aquele que tinha o poder da morte, isto é, o diabo; e libertasse aqueles que, submetidos a vida toda ao temor da morte, eram ligados à servidão” (Hebr 2, 14-15). Eis aí claramente como ele foi posto em ruína para os demônios e ressurreição de muitos. Por isso segue-se: “Para que fôssemos recebidos na adoção dos filhos” (Gal 4, 5). Quanta graça! Adotou os servos como filhos! “Se filhos, também herdeiros: herdeiros de Deus e coerdeiros com Cristo” (Rom 8, 17).

III. NA ANUNCIAÇÃO OU NASCIMENTO DO SENHOR, E SOBRE A PENITÊNCIA


17. Com essa passagem da epístola, concorda o introito da Missa de hoje: “Quando um profundo silêncio envolvia todas as coisas, e a noite chegava ao meio do seu curso, vossa palavra todo-poderosa desceu dos céus e do trono real, e, qual um implacável guerreiro, arremessou-se no meio da terra do extermínio. Espada afiada, levando o teu império não simulado, e, em pé, encheu tudo de morte, e, pisando a terra, tocava os céus” (Sap 18, 14-16).
Eis o que disse o Senhor em Lucas: “Quando um forte armado”, isto é, o diabo, “guarda a sua casa”, isto é, o mundo ou inferno, “está em paz aquilo que ele possui” (Lc 11, 21). Por isso, Senaquerib, que representa o diabo, diz, em Isaías: “Minha mão encontrou como um ninho”, isto é, incapazes de proteger-se, “a fortaleza dos povos; e como se recolhem os ovos abandonados” pela mãe, “eu reuni a terra inteira, e ninguém moveu a asa”, isto é, a mão contra mim, “nem abriu o bico, nem piou” (Is 10, 14). Eis como um quieto silêncio continha tudo.
“E a noite chegava ao meio do seu curso.” O meio é dito com relação aos extremos. Os extremos da noite são o crepúsculo e a aurora. De Adão até a lei foi como o crepúsculo; da lei até a Anunciação a Santa Maria foi como a meia-noite, que representa a passagem do preceito. Nem Adão no paraíso, nem o povo no deserto guardou o preceito; todos eram obscurecidos pela neblina daquela noite, e por isso suspiravam pela aurora, isto é, a bênção do advento do Senhor, que começou com a saudação angélica. O princípio da noite foi a sugestão diabólica da serpente para Eva. O início do dia foi a saudação angélica a Maria. E então, ó Pai, o Verbo todo-poderoso consubstancial a vós, isto é, o Filho, veio dos vossos tronos reais, isto é, do seio da vossa majestade, do qual fala João: “O Filho unigênito, que está no seio do Pai, ele revelou” (Jo 1, 18).
“Implacável guerreiro.” Isto é dito em Lucas: “Se, porém, um mais forte do que ele sobrevier” (Lc 11, 22). Aquele que veio para quebrar as portas de cobre e despedaçar os ferrolhos de ferro (cf. Ps 106, 16), sem dúvida convinha que fosse um guerreiro implacável. Sobre o diabo, o Senhor diz, em Jó, que considera “palha o ferro, e pau podre o bronze. A flecha não o faz fugir, as pedras da funda são palhinhas para ele. O martelo lhe parece um fiapo de palha; ri-se do assobio da azagaia” (Job 41, 18-20). Que mais? “Foi feito para não ter medo de nada” (Job 41, 24). Convinha, pois, que fosse um implacável guerreiro, no qual ele não tivesse parte alguma, aquele que veio expoliá-lo.
“No meio da terra”, que está no meio entre o céu e o inferno, “do extermínio”, isto é, que o diabo exterminara, ou seja, pusera fora da vida eterna. Por isso Isaías dele fala: “Acaso é um homem esse que perturbou a terra, que quebrou os reinos, que fez do globo um deserto e destruiu as suas cidades?” (Is 14, 16-14), “arremessou-se”, juntos os pés da divindade e da humanidade.
“Espada afiada.” Isto é o que diz o Apóstolo: “A palavra de Deus é viva e eficaz, e mais penetrável que toda espada de dois gumes” (Hebr 4, 12) etc. A espada é a divindade, que ficou escondida na bainha da humanidade. Por isso, diz Isaías: “Deveras tu és o Deus escondido, Deus salvador de Israel” (Is 45, 15). Por essa espada foi transpassado o diabo, que exterminava a terra. Por isso diz Isaías: “Acabou o pó, consumiu-se o miserável, faliu aquele que oprimia a terra” (Is 16, 4).
18. “Levando o vosso império não simulado.” Diz João: O Pai deu-lhe tudo na sua mão (cf. Jo 3, 35; 13, 3). E ainda: “Tudo o que o Pai tem é meu” (Jo 16, 5). E: “Tudo o que é meu é teu, e o que é teu é meu” (Jo 17, 10). Levou, pois, o imperio do Pai, que lhe dera poder sobre toda carne (cf. Jo 17, 2), o seu poder é um poder eterno (cf. Dan 7, 14), que dá ordens aos ventos e ao mar, e obedecem-no (cf. Lc 8, 25). “Levando o império não simulado”, isto é dito em Marcos: “Ensinava-os como quem tem poder, e não como os escribas” (Mc 1, 22) deles, que ensinavam em hipocrisia e simulação. E em Lucas: “Que discurso é este, porque, com poder e força, dá ordens aos espíritos imundos, e eles saem?” (Lc 4, 36).
“E, em pé, encheu tudo de morte.” Em pé, abriu as mãos na cruz, e encheu, com a sua morte, tudo o que havia sido esvaziado pela desobediência dos primeiros pais. De cuja plenitude nós todos recebemos (cf. Jo 1, 16).
“E tocava o céu”, no qual está a divindade, posto que a sabedoria atinge de um fim a outro, fortemente (cf. Sap 8, 1), “em pé sobre a terra”, que designa a humanidade. Diz ele em João: “Ninguém subiu ao céu, senão aquele que desceu do céu, o Filho do homem, que está no céu” (Jo 3, 13). Dele é falado em Jó: “É mais alto do que o céu, e que farás? Mais profundo que o inferno, e como conhecerás? A sua medida é mais longa do que a terra, e mais larga do que o mar” (Job 11, 8-9).
A ele, caríssimos irmãos, humildemente imploremos, para que nos faça morrer para os vícios, e ressucitar para as virtudes; que a espada da sua Paixão transpasse a nossa alma, para que mereçamos a alegria na ressurreição geral.
Conceda-no-lo aquele que é bendito pelos séculos. Amém.
19. “Quando um profundo silêncio envolvia todas as coisas” explicado no sentido moral. Fala Jó do diabo: “Dorme sob a sombra, no segredo dos caniços e dos lugares úmidos” (Job 40, 16). À sombra da soberba, chamada sombra da morte, ou o diabo. Assim como a sombra segue o corpo, assim a soberba segue o diabo. Por isso, se diz no Apocalipse: “Eis um cavalo pálido, e o nome do que o montava era morte; e o inferno o seguia” (Apoc 6, 8). Eis o cavalo, o soldado e o escudeiro. O cavalo pálido é o hipócrita; o soldado, cujo nome é morte, é o diabo; o escudeiro é o inferno, isto é, a soberba, que apascenta o cavalo com cevada e água, isto é, com a austeridade da abstinência, para que apareça jejuando perante os homens (cf. Mt 6, 16), sela-o com a humildade e freia-o com o silêncio. “O estúpido”, diz Salomão, “se se calar, será reputado como sábio” (Prov 17, 28), assim como o hipócrita será tido por santo. Montou aquele cavalo a morte, percorreu o mundo, saudada com louvores, com saudações nos foros, cátedras nas sinagogas, e primeiros lugares nos banquetes (cf. Mt 23, 6-7). Não há soberba maior do que a soberba dos hipócritas: a equidade simulada não é equidade, mas dupla iniquidade.
Ainda, nos caniços (em latim, calamus, donde vem a palavra “calamidade”) está a avareza, a cujo vazio (porque nunca diz: Basta) segue-se a eterna calamidade. Os lugares úmidos designam a gula e a luxúria. Porque a umidade é a mãe da corrupção, na qual se geram vermes e coisas semelhantes. Nos soberbos, avarentos e luxuriosos, dorme e descansa o diabo, e então, num quieto silêncio, prende todos os seus membros. Porque o coração cala-se para o bem pensamento, a língua, para o louvor de Deus, e a mão, para a obra reta. Diz Isaías: “Ai de mim, porque me calei” (Is 6, 5). Em tal silêncio está o ai da eterna condenação.
“E a noite chegava ao meio do seu curso.” A palavra noite vem do latim “nocere”, fazer mal, porque faz mal aos olhos, e simboliza o pecado mortal, que obscurece a luz da razão. Quem caminha de doite fere-se (cf. Jo 11, 10). Os extremos dessa noite são o crepúsculo e a aurora, esto é, o consentimento da alma cegada, e a infusão da graça, em cujo meio está essa ação e costume do pecado. Desse meio caminho fala-se no Salmo: “O caminho dos ímpios perecerá” (Ps 1, 6).
Isso ocorreu quando “a palavra todo-poderosa arremessou-se”, isto é, a graça do Espírito Santo, justamente chamada palavra todo-poderosa: todo-poderosa porque rompe todos os obstáculos postos à salvação; palavra (em latim, sermo), porque planta (serit) e insere na alma as virtudes, ou porque conserva (servat) a alma, que curou do pecado. Por isso, no livro da Sabedoria: Não foi uma erva, isto é, a verdura das riquezas, que logo seca, nem um emoliente de delícias que os curou, mas a vossa palavra todo-poderosa, Senhor, que cura tudo (cf. Sap 16, 12), “desde os tronos reais” da benignidade e misericórdia divinas. Por isso Joel: “Convertei-vos ao Senhor vosso Deus, porque é benigno e misericordioso” (Joel 2, 13).
20. “Guerreiro implacável”, na contrição. A graça é chamada guerreiro implacável, porque, como um martelo, bate na dureza da alma: Acaso as minhas palavras não são como o fogo, e como um martelo quebrando pedras? (cf. Jer 23, 29).
“No meio da terra”, isto é, na alma do pecador, que é chamada terra, porque é dada às coisas terrenas; meio, porque é posta entre a misericórdia e a justiça. Por isso João diz que “Jesus ficou sozinho com a mulher no meio” (Jo 8, 9), entre a misericórdia e a justiça.
“Do extermínio.” Dois são os términos: a entrada e a saída da nossa vida. Quando a alma do homem não habita neles, neles não pensa, e então é exterminada, isto é, posta fora dos términos. Diz Isaías: Circulou um clamor no confim de Moab (cf. Is 15, 8), que representa o pecador, em cujos ambos términos há clamor: quando entra no mundo, clamando, chora; quando sai, os seus choram. Por isso, no Eclesiastes: “Circularão” com o cadáver “chorando pela rua” (Eccle 12, 5).
Segue-se: “Espada afiada”, na confissão. A graça é, então, uma espada afiada, pois aguça a língua do pecador na confissão, para que possa dizer, com Isaías: “Fiz de minha boca uma espada afiada” (Is 49, 6). Disso fala o Senhor a Ezequiel: “E tu, filho do homem, toma para ti uma espada afiada, que raspe pêlos, e passa-a pela tua cabeça e tua barba” (Ez 5, 1). O pacador, com a espada da confissão, deve raspar a cabeça, na qual está a mente, para que nenhum pecado permaneça na consciência, e a barba, que representa a fortaleza das boas obras, para que não confie em si, mas no Senhor, do qual procede todo bem.
Por isso, segue-se: “Portando o teu império não simulado”. A verdadeira confissão não conhece simulação, pois elucida a verdade da consciência diante do Altíssimo e do seu confessor, e então carrega o não simulado império do Senhor. Note-se que são quatro os inimigos da confissão: e amor ao pecado, a vergonha de confessar, o temor da penitência e o desespero do perdão. Quem vence todos esses quatro inimigos na confissão, sem dúvida leva o império não simulado do Senhor.
Segue-se: “E, em pé, encheu tudo de morte”, na satisfação. A graça fica em pé quando faz o penitente perseverar virilmente na penitência, para que encha de morte, isto é, mortificação, todos os seus membros, para que, morto para o pecado, viva para Deus (cf. Rom 6, 11), e então se poderá dizer, a respeito dele, o seguinte: “E, de pé sobre a terra, alcançava o céu”. A graça chega até o céu, estando sobre a terra, quando faz o penitente, ainda na carne, atingir o céu, pela celeste conversação, para que diga, com o Apóstolo: “A nossa conversação está no céu” (Phil 3, 20).
Roguemos pois, caríssimos irmãos, ao Senhor Jesus Cristo, para que envie a graça do Espírito Santo no meio da terra do extermínio, para que quebre a dureza da alma, afie a língua na confissão, encha os corpos de mortificação, e, nessa celeste conversação, mereçamos atingir o céu. Conceda-no-lo aquele que é bendito pelos séculos. Amém.

Fonte e tradução: São Pio V

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