DA LIBERDADE DE RELIGIÃO E DE CULTO - P. MATTEO LIBERATORE S.J.

La Civiltà Cattolica anno XXVIII,
serie X, vol. III (fasc. 653, 20 agosto 1877),
Firenze 1877 pag. 527-538.

R.P. Matteo Liberatore d.C.d.G.
[Tradução: Gederson Falcometa]

I.

Um pequeno erro de principio se torna grave nas ilações. Parvus error in principiis, fit maximus in illationibus.

Esta sentença de Santo Tomás se enquadra bem a Cassani, naquilo que diz respeito a liberdade de religião e de culto, que ele propõe em sua obra [1]. O erro, no qual ele incorre, procede de um pequeno erro (advertidamente ou inadvertidamente, não importa) no conceito que ele dá a liberdade de pensamento, de onde se inicia o seu tratado. Ele diz que essa consiste no direito de empregar todos os meios para conhecer a verdade, a qual buscar é o sumo dever do homem. «Quando se afirma que o homem tem por primeiro e fundamental direito a liberdade de pensamento… se quer dizer que o homem tendo o sumo dever de buscar a verdade, deve por consequência ser livre para usar todos os meios aptos a conduzir a cognição da mesma [2] .» Como se vê, o principio, no qual ele se move, é sim: ser sumo dever do homem a busca pela verdade.

Quando ele aplica tal dever a verdade religiosa, e para acalmar os escrúpulos dos crentes, acrescenta que tal busca é conforme ao Evangelho. «E por verdade (aqui nos dirigimos àqueles que temem dano a vida da religião) não é principio indiscutível do Evangelho, que a busca e a confissão da verdade seja, então, imputada em mérito ou demérito de qualquer um, quando Deus justíssimo retribuirá premiando ou penalizando as nossas ações? Mas em nome do céu, que mérito teria o homem na descoberta e na profissão do verdadeiro (religioso para nós) se não devesse colocar nada, propriamente nada feito de próprio? [3] » Aqui ele coloca antes de tudo outro principio, ou seja, para que a aceitação da verdade religiosa ser meritória, segundo aquilo que quer o Evangelho, convém que seja precedida por uma estudiosa inquisição.

Daqui a estabelecer a liberdade de religião e de culto, o passo é brevíssimo. Porque se todo homem tem o dever de buscar a verdade religiosa, antecedentemente a tal busca e ao seu resultado, ele está na dúvida, ao menos negativa, a respeito de qualquer verdade religiosa que seja determinada. Ele se encontra, nesta ordem de coisas, na mesma condição, em que Descartes colocava o filosofante no começo da sua investigação, a respeito das verdades naturais, isto é, na dúvida universal. Tal é a condição de qualquer um cidadão. Ou a condição do Estado é como um reflexo da condição dos cidadãos. O Estado então, a respeito da verdade religiosa, não pode deferir a uma parte mais que a outra, mas deve manter-se em perfeito equilíbrio, salvo a exclusão de alguns erros perniciosos a honestidade intelectual publica.

Mais: se qualquer homem tem o direito de empregar todos os meios, para cumprir o dever da busca da verdade, não pode o Estado impedir nem a palavra, grande ajuda das ideias, nem a publica discussão, meio eficacíssimo para conhecer a verdade, em fato de religião.

Mais: se a descoberta da verdade religiosa é fruto da busca individual, essa por sua natureza é abandonada a consciência de qualquer um. «Eis nos então, imediatamente a consequência que o homem tem sacro e inviolável direito de prestar um culto a divindade como a sua consciência dita e ordena. Uma lei humana, uma potestade qualquer, a qual pretendesse interditar e tirar ao homem esta livre faculdade de adorar a Deus segundo a consciência e tributar-lhe homenagem propiciatória, seria a mais repugnante das tiranias [4] .» Basta por hora ter mostrado a derivação interna do erro de Cassani: adiante reportaremos os sofismas diversos, com os quais o conforta.

II.

Bem poucas considerações são necessárias para conhecer a falsidade dos princípios, de que Cassani toma os movimentos.

O dever de buscar a verdade tem somente lugar, quando a verdade ainda não foi conseguida. Mas quando é conseguida, tem lugar o dever, não de busca-la (o que causaria estranheza), mas de abraçá-la e custodiá-la. A busca diz ação, e supõe distinto o escopo ao qual se pende. A posse é o término desta ação; e porém diz quietação; a qual a respeito do verdadeiro constitui a certeza. Onde, a falar justamente, a proposição de Cassani deve converter-se nesta outra. O homem tem o sumo dever de aderir a verdade; e porém, tem o direito de buscá-la com todo estudo quando não a possuí ou por desgraça lhe perdeu; mas quando a conseguiu, tem o direito de empregar todos os meios para conservá-la e tutelar-lhe a sua posse.

Não menos falso é o seu outro principio, isto é, que se requeira prévia busca, para que a adesão a verdade religiosa seja meritória. O mérito diante de Deus não nasce propriamente de uma fadiga sustentada, mas da livre obediência a sua lei Erit illi gloria aeterna; qui potuit transgredi et non est transgressus, facere mala et non fecit [5].[ «Ele podia pecar, e não pecou, fazer o mal, e não o fez; e terá a glória eterna.»] A fadiga sustentada, quando é requerida, acrescentará o mérito; mas não lhe constituí a raiz. A raiz é a liberdade do ato, feito em beneficio ou obséquio de outrem. Ora, a adesão a verdade religiosa, ou seja, o fato de fé em si é livre. «A fé em si mesma, mesmo quando não opera pela caridade é dom de Deus, e o seu ato é pertencente a saúde; já que com isso o homem presta a Deus livre obediência, consentindo e cooperando com a graça Dele, a qual poderia resistir. Fides ipsa in se, etiamsi per charitatem non operetur, donum Dei est, et actus eius opus est ad salutem pertinens, quo homo liberam praestat ipsi Deo obedientiam, gratiae eius, cui resistere potest, consentiendo et cooperando.» Assim diz o Sacrosanto Concílio Vaticano [6].

O homem pode crer na revelação divina, e pode descrer, seja que tenha tido necessidade de busca precedente ou não. Onde ele na adesão a verdade revelada, coloca sempre alguma coisa sua, é no ato livre, com o qual in captivitatem redigit intellectum in obsequium Fidei. [«… subjuga o intelecto a obediência da fé», cfr. II Cor. X, 5. N.d.R.]

Santo Tomás na Suma teológica levanta a questão: se o ato de fé é meritório: Utrum credere sit meritorium; e responde que sim, raciocinando a sua resposta deste modo: Os nossos atos são meritórios diante de Deus quando procedem da livre vontade, movida pela graça divina. Ora, o ato de fé é ato do intelecto conscientemente a verdade divina por império da vontade, movida por Deus mediante a graça; e, porém, sujeita ao livre arbítrio do homem em ordem a Deus. Actus nostri sunt meritorii, in quantum procedunt ex libero arbitrio moto a Deo per gratiam… Ipsum autem credere est actus intellectus assentientis veritati divinae ex imperio voluntatis, a Deo motae per gratiam et sic subiacet libero arbitrio in ordine ad Deum [7].

III.

Cassani com sua busca da verdade religiosa, estabelecida como dever de todo homem, para que o seu ato seja meritório, induz o católico ao pecado de infidelidade: enquanto o induz a fazer receita, ao menos a tempo, da verdadeira fé, para readquiri-la depois se gostar a Deus, mediante o discurso da razão. O católico então para colocar-se a busca da verdade religiosa, deveria ao menos duvidar daquela que tem, vale dizer que deveria constituir-se em estado de temporânea apostasia. A qual coisa é tão torpe, que o próprio Descartes a excluí da sua dúvida metódica, apesar de proposto por ele como universal. E porém, depois de ter ditoque em virtude daquela dúvida ele não entendia separar-se das regras da moral, acrescenta: Postquam vero me his regulis instruxissem, illasque simul cum rebus Fidei, quae semper apud me potissimae fuerunt, reservassem; quantum ad reliqua, quibus olim fueram imbutus, non dubitavi quia mihi liceret omnia ex animo meo delere [8]. [«Depois de ser me formadas tais regras (morais), lhes mantive, junto àquelas coisas que dizem respeito a Fé, que para mim sempre foram as principais; qual ao que permanece (da minha instrução) de que um tempo era embebido, não duvidei que me fosse licito removê-la da minha mente por inteiro.» N.d.R.]

O católico, como ensina o Concílio Vaticano, diferentemente daqueles que aderem a uma falsa religião, não pode jamais ter justa razão de duvidar da sua fé. Minime par est conditio eorum, qui per caeleste Fidei donum catholicae veritati adhaeserunt, atque eorum, qui ducti opinionibus humanis falsam religionem sectantur; illi enim, qui fidem sub Ecclesiae magisterio susceperunt, nullam unquam habere possunt iustam causam mutandi aut in dubium fidem eandem revocandi [9]. [«Onde que não são iguais as condições daqueles, que pelo dom celeste da fé aderiram a verdade católica, e daqueles os quais, conduzidos por opiniões humanas, seguem uma falsa religião: espera-se daqueles, que sob o magistério da Igreja receberam a fé, não possam ter nenhuma justa causa de mudar ou revogar em dúbio essa fé.» Concilio Vaticano, Costit. dogm. Dei Filius, capo III. N.d.R.]

E a razão é, porque o benigníssimo Deus como excita os errantes e os ajuda com sua graça, a fim de que possam chegar ao conhecimento da verdade; assim aqueles, que já transferia das trevas para a sua admirável luz, confirma com a mesma graça, para que nessa luz perseverem, não abandonando ele ninguém se não é abandonado. Benignissimus Dominus et errantes gratia sua excitat atque adiuvat, ut ad agnitionem veritatis venire possint; et eos, quos de tenebris transtulit in admirabile lumen suum, in hoc eodem lumine ut perseverent gratia sua confirmat; non deserens nisi deseratur. Così il sacrosanto Concilio Vaticano [10]. E além disso, como o próprio Concílio nos ensina, o católico além das ajudas internas do Espírito Santo é confortado na sua fé por argumentos externos, que comprovam a revelação, quais são os fatos divinos e precipuamente os milagres e as profecias, e que são acomodados a inteligência de todos; para que o obséquio da nossa fé seja consentâneo a razão.

Ut nihilominus fidei nostrae obsequium sit rationi consentaneum, voluit Deus cum internis Spiritus Sancti auxiliis externa iungi revelationis suae argumenta, facta scilicet divina, atque imprimis miracula et prophetias, quae cum Dei omnipotentiam et infinitam scientiam luculenter commonstrant, divinae revelationis signa sunt certissima et omnium intelligentiae accommodata [11].Onde o católico não pode sequer por um instante duvidas da verdade da sua fé, sem rebelar-se contra a razão e contra Deus; bem que possa louvavelmente, permanecendo firme na crença, buscar por via da reflexão um conhecimento cientifico da mesma, como notavelmente fazem os teólogos: Fides quaerens intellectum, segundo a belíssima frase de Santo Anselmo.

Continua…

NOTAS:

[1] Delle principali quistioni politiche religiose. Volume I.

[2] Opera citata, vol. I, p. 10.

[3] Ivi.

[4] Pag. 20.

[5] Ecclesiastico, XXXI, 10.

[6] Constitutio dogmatica De Fide catholica, Caput III.

[7] Summa th. 2a 2ae, q. II, a. 9.

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