JOÃO CASSIANO: O ESPÍRITO DA TRISTEZA

Extraído do livro
“As instituições cenobíticas”

Albrecht Dürer, melancolia 1514Albrecht Dürer, melancolia 1514

Livro Nono

O Espírito da tristeza

João Cassiano

[Tradução: Gederson Falcometa]

1. OS DANOS DA TRISTEZA

No quinto combate devemos reprimir as tendências da tristeza: é um vício que morde e devora. Se esta paixão, em momentos alternados e com os seus ataques de cada dia, variadamente distribuídos segundo circunstâncias imprevistas e diversas, chegar a tomar o domínio da nossa alma, nos separará um pouco às vezes da visão da contemplação divina até deprimir inteiramente a própria alma depois de tê-la afastado de toda sua condição de pureza: não permitirá mais dedicar-se as orações com a habitual espontaneidade de coração e nem mesmo de aplicar-se, como remédio, a leitura das Sagradas Escrituras. Este vício impede nos de sermos tranquilos e gentis com os próprios irmãos e torna impaciente e áspero diante de todos os devidos ofícios, aos vários trabalhos e a religião. Perdida assim toda faculdade de boas decisões e comprometida a estabilidade da alma, aquela paixão torna o monge como desorientado e ébrio, o enfraquece e o afunda em uma penosa desesperação.

2.É PRECISO CURAR O ÂNIMO DA TRISTEZA

Se então nós aspiramos afrontar decisivamente e segundo as regras a luta espiritual com empenho não menor das batalhas precedentes, é necessário, da nossa parte, ter cuidado também contra este mal. De fato, «como a mariposa danifica os vestidos e como o verme danifica a madeira, assim a tristeza do homem prejudica o coração» (Pr 25, 20). O Espírito divino tem então expresso com suficiente evidência a virulência deste vício danoso e pernicioso.

3. OS ENSINAMENTOS DAS ESCRITURAS

1. E de fato um vestido roído pela mariposa não terá mais algum preço e não poderá servir a algum uso; assim também uma madeira, corrompida pelos vermes, não poderá ser destinada a ornar uma casa mesmo modesta, mas apenas para ser queimado. Tal se torna também a alma corrompida pelas mordidas da tristeza: ela não é mais apta a endossar a veste pontifical, que segundo o vaticínio do santo profeta Davi receber habitualmente o unguento do Espírito Santo que desce do céu, primeiro sobre a barba de Arão e depois sobre as franjas da sua vestimenta, como de fato está escrito: «É como um óleo suave derramado sobre a fronte, e que desce para a barba, a barba de Aarão, para correr em seguida até a orla de seu manto» (Sal 132 [133], 2).

2. Mas esta alma não poderá nem sequer tomar parte da edificação e do ornamento daquele templo espiritual, do qual Paulo, sapiente arquiteto, pôs os fundamentos, dizendo: “Vós sois o templo de Deus, e o Espírito de Deus habita em vós” (1Cor 3,16). E no Cântico dos Cânticos a esposa indica de qual madeira aquele templo deve ser construído: «As traves são de cipreste, e as paredes das nossas casas são os cedros» (Ct 1, 16; LXX). Por isto veem escolhidos, para a edificação do templo de Deus, aquelas espécies de troncos de árvores que exalam bons odores e não são sujeitos a putrefação, e não sofre nem a corrosão do tempo nem a obra roedora dos vermes.

4. AS CAUSAS DA TRISTEZA

Algumas vezes a tristeza é habitualmente gerada por culpa da cólera já gerada anteriormente, ou por causa de qualquer vontade não satisfeita ou qualquer ganho não atingido, quando em suma qualquer um vem a ver faltar um ou outro destes bens já antes assaz desejado. Às vezes, no entanto, embora não intervindo nenhuma das causas fáceis a fazer nos cair neste estado danoso, nos sentimos improvisadamente surpreendidos com tanta aflição, por instigação do nosso malicioso inimigo ao não poder acolher com a usual afabilidade a chegada de pessoas a nós muito caras e necessárias: é próprio então, que nós retenhamos inoportuno e inútil quanto dessas nos vem referido mesmo em uma apropriada conversação, e é nestas ocasiões que por nós são dadas respostas nada agradável, porque cada refúgio do nosso ânimo é invadido pelo fez da amargura.

5. AS CAUSAS DA TRISTEZA DERIVAM APENAS DE NÓS

E assim se demonstra com extrema evidência que nem sempre os estímulos das nossas reações são provocados por culpa dos outros, mas por culpa nossa. Somos nós mesmo a carregar dentro de nós os motivos dos nossos desgostos e as raízes dos nossos vícios, e estes, não apenas são a chuva das tentações que cai em nossa alma, eles germinam e produzem os seus frutos.

6. AS QUEDAS SÃO A CONSEQUÊNCIA DE LONGA NEGLIGÊNCIA

Ninguém, de fato, pode ser induzido a cometer uma culpa apenas porque foi movido por um vício de outro, a menos que ele não considere a resposta já no seu coração sobre a matéria da queda. Assim, também não é preciso acreditar que um se tenha deixado seduzir improvisadamente apenas porque, vislumbrada a beleza de uma mulher, se deixa arrastar a fundo por uma vituperável concupiscência; é verdade, ao invés, que aqueles impulsos morbosos, ocultos antes e profundamente radicados, são aflorados a superfície propriamente na ocasião daquela visão.

7. A CONVIVÊNCIA COM OS OUTROS NOS TORNA MAIS PACIENTES

Por isso, Deus criador do universo, bem sabendo mais do que qualquer outro o segredo para curar suas criaturas e conhecendo que não nos outros, mas em nós mesmos se fundam as raízes e as causas das nossas culpas, não nos demanda abandonar a convivência com os outros irmãos e de evitar aqueles que retemos ofendidos por nós ou tenhamos esses mesmos desgostosos para conosco; ao contrário, Ele quer que busquemos nos cativarmos, bem sabendo que a perfeição da alma não se adquire tanto com nos separarmos dos homens, quanto mais com o exercício da paciência. E é verdadeiro que a paciência firmemente possuída, como pode, de uma parte, manter nos serenos até com aqueles que recusam a paz (cf. Sal 119 [120], 7), assim também, se essa não foi assegurada, poderá, ao contrário, provocar continuamente a discórdia também com aqueles que já são perfeitos e melhores do que nós. Na realidade não poderão faltar na vida comum ocasiões de pertubação, ao ponto de nos fazer até mesmo propor de abandonar aqueles, com os quais temos que conviver, mas com isto não evitaremos as verdadeiras causas da tristeza que nos terão induzido a separar nos dos primeiros companheiros; simplesmente, lhes mudaremos!

8. A PACIÊNCIA TORNA MAIS FÁCIL A VIDA EM COMUM

Portanto, devemos procurar emendar solicitamente os nossos defeitos e corrigir os nossos hábitos. E então, se os nossos vícios forem corrigidos, a nossa vida se acordará de maneira muito fácil não apenas com os homens, mas também com os animais e com as bestas selvagens, segundo aquilo que afirma o livro de Jó: «As bestas selvagens ficarão em paz com você» (Gb 5, 23; LXX). Não teremos mais que temer motivos de ofensa provenientes de fora, e não poderão nos surpreender provocações do ambiente externo, se em nós mesmos não forem acolhidas e enxertadas as suas raízes. De fato existe «existe uma grande paz para aqueles que amam o teu nome; não existe para eles ocasião de tropeço» (Sal 118 [119], 165).

9. A TRISTEZA DE CAIM E DE JUDAS

Existe também um outro gêneros de tristeza muito mais detestável. Esse não conduz o culpado a corrigir a própria vida e a emendar os próprios defeitos, mas tende para uma desesperação ruinosa da própria alma. Essa não permitiu a Caim se arrepender depois que ele assassinou seu irmão (cf. Gen 4, 9-16), e a Judas de buscar, depois da sua traição, o remédio para a reparação: ele ao invés disso, se deixou levar pela sua desesperação até a suspender-se em uma corda (cf. Mt 27, 5).

10. UMA SÓ É A TRISTEZA ÚTIL

Portanto, existe apenas um caso em que devemos considerar útil para nós a tristeza, quando a queremos acolher para que acenda o arrependimento pelos nossos pecados, pelo desejo de perfeição e pela previsão da bem aventurança futura. É desta tristeza que fala o Apóstolo: «A tristeza conforme as vontades de Deus produz um arrependimento que leva a salvação segura; ao invés, a tristeza do mundo produz a morte» (2 Cor 7, 10).

11. COMO DISTINGUIR A TRISTEZA ÚTIL DAQUELA DANOSA

A tristeza que «gera o arrependimento que leva a salvação segura» (2 Cor 7, 10) é obediente, afável, humilde, dócil, suave e paciente, porque deriva do amor de Deus; pelo desejo de perfeição ela se sobrepõem sem trégua a tolerância de toda dor do corpo e a contrição do espírito e, em certo modo, essa, de tudo serena e animada pela confiança do próprio proveito, conserva toda a docilidade da afabilidade e da generosidade, mantendo em si mesma todos os frutos do Espírito Santo, assim enumerados pelos Apóstolos: «Os frutos do Espírito são a caridade, a alegria, a paz, a longanimidade, a benignidade, a bondade, a fidelidade, a calma, a temperança» (Gal 5, 22-23). Ao contrário, a tristeza do mundo é muito áspera, dura, plena de rancor, de estéreis afãs e de grave desesperação. Aquele que permanece vítima se verá distraído e desviado de toda a atividade e mortificada não apenas da eficácia da oração, mas tornando também vãos os frutos do Espírito Santo, por nós precedentemente recordados, aqueles que a tristeza útil pode produzir.

12. TODA TRISTEZA É NOCIVA, SE NÃO PROVÉM DE DEUS

Por estas razões, toda tristeza, que se excetua daquela que vem acolhida por uma salutar penitência, para o empenho da perfeição ou pelo desejo dos bens futuros deve ser repreendida, porque é toda tristeza própria do mundo e porque provoca a morte. Por isso é necessário extirpá-la radicalmente do nosso coração do mesmo modo que a fornicação, a avareza e a cólera.

13. OS REMÉDIOS PARA VENCER A TRISTEZA

Nós portanto, chegaremos a expelir de nós está paixão, assim danosa, apenas se estivermos em grau de levantar o nosso espírito e mantê-lo continuamente ocupado na meditação espiritual em previsão da esperança futura e da promessa da beatitude. Deste modo seremos, de fato, em grau de superar todo gênero de tristeza, aquela que deriva em nós por um precedente ato de cólera, pela perda de um ganho, ou por um dano a nós infligido; e assim também a tristeza gerada em nós por uma injúria sofrida, ou nascida dentro de nós por qualquer pertubação da mente surgido sem motivo fundamentado, ou ainda criado em nós pelo efeito de uma mortífera desesperação. Assim, perseverando serenos e seguros das previsões dos bens futuros, sem deixar-nos vencer pelas vicissitudes do mundo presente quando essas nos são adversas, e sem nos deixar lisonjear quando essas retornam a nosso favor, poderemos considerar umas e outras como passageiras e destinadas a cair bem rápido.

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