Do Amor
CAPÍTULO SÉTIMO
DO AMOR
EXTRAÍDO DO LIVRO:
A MEDICINA DAS PAIXÕES
JEAN BAPTISTE DESCURET
[Tradução: Gederson Falcometa]
O amor é uma paixão só:
desta ela reúne todas as outras.
A senhora de Suza.
Definições e sinônimos
O amor, no seu mais extenso conceito, é aquele irresistível encanto que atraí todos os seres, é aquela afinidade secreta que lhes une, é a celeste centelha que lhe perpetua: neste sentido tudo é amor na criação¹.
Considerado sob o aspecto moral, o amor é uma tendência da alma para o verdadeiro, o belo e o bom.
Na relação religiosa, Deus é amor, e amor é toda a sua lei. No amor de Deus então, sumo bem e criador de todas as coisas: no amor dos homens, a mais nobre entre as suas criações, é resumida na teoria cristã do amor.
Do amor de Deus, que é o amor em toda a sua plenitude, deriva a lei harmônica do amor dos homens, que abraça de uma vez família, pátria e humanidade, grandíssima família que tem Deus por pai e por pátria o mundo.
Aqui me limito a recordar estes diversos sentimentos, como também o egoísmo e o amor próprio, este o mais vivaz, aquele o mais exclusivo dos nossos afetos; e passo a me ocupar unicamente do amor considerado entre os dois sexos.
«Muito difícil, assegura La Rochefoucauld, é definir o amor: estando a sua opinião seria na alma uma paixão a reinar, no espírito uma simpatia, no corpo um querer escondido e delicado de possuir depois de muitos mistérios o objeto que se ama». La Rochefoucauld confunde aqui a galanteria com amor: o verdadeiro amor não sonha apenas reinar; sua felicidade é a felicidade do objeto amado, e muitas vezes também vai beato da própria submissão.
Bernis questiona:
«Conheceis o fogo que toma cada forma dada-lhe pelo sopro, e que irrompe ou se enfraquece segundo a impressão do ar mais viva ou mais moderada? Se separa, se reúne, se abaixa, se levanta; mas o sopro potente que o guia, que o agita só para anima-lo, jamais para extingui-lo: aquele sopro é o amor, este fogo são as nossas almas».
A definição de Bernis é muito animada, mas temo não seja muito longa, e mais ainda muito procurada.
Me absterei de reportar aquela de Chamfort que me parece ser, sim, precisa e original, mas muito cínica.
Para os fisiologistas, o amor é uma tendência imperiosa que atrai os sexos um para o outro, a qual escopo providencial é a reprodução da espécie. Nas bestas o amor poderá ser uma necessidade física e nada além, um ímpeto passageiro; mas no homem, e principalmente no homem civilizado, não deve considerar-se separado da necessidade moral, de um sentimento que lhe acrescenta a atração e a duração; este sentimento é amizade, que eu voluntariamente definirei a metade do amor, mas a metade mais pura, mais bela e durável.
Esta paixão, que o Buffon e outros escritores fizeram muito material, considerando lhe como a mais simples de todas, para mim ao invés, estudada no homem, uma das mais complicadas. Quantos diversos elementos se vêem nela! Em primeiro lugar o amor físico ou a necessidade dos sentidos, instinto propagador excitado pela beleza e pela graça ainda mais que aquela sedutora; depois a necessidade de afeto, fundada especialmente sobre a estima da qualidade moral, das virtudes; em seguida o amor próprio, que se insere em toda parte; muitas vezes também a curiosidade e a paquera; um pouco de temor, e por consequência uma pontada de ciúme; por último, a imaginação, esta maga que com um prisma enganador multiplica as qualidades sedutoras do objeto amado, e que muitas vezes ela mostra até onde um mente mais sã não veria nada além de defeitos.
A maior dos moralistas parecem ser concordes no confundir a galanteria com o amor, e então a tal confusão deve-se atribuir a discrepância que reina naquilo que escreveram sobre a paixão da qual trato. E, no entanto, quanta diferença! Menos viva, menos séria, mas mais iluminada e mais sensual que o amor, a galanteria busca mais a beleza física que a beleza moral. O amor nos abre sem reserva apenas ao objeto amado; a galanteria, ao invés, tem, por assim dizer, o coração móvel; nessa existe um pouco de brincadeira de mau gosto e muito egoísmo. É bem raro que a um verdadeiro amor se tenha posteriormente um segundo e menos ainda um terceiro: o sentimento não pode sofrer tanta prodigalidade. Em muitos indivíduos as galanterias são inumeráveis; muitas vezes não passam de um passatempo, um hábito que degenera em uma vergonhosa e abjeta libertinagem.
O amor, impropriadamente chamado de platônico², vale dizer, privado de qualquer desejo erótico, não deve, por bem compreender as definições, conservar o nome de amor; é amizade, ou algumas vezes o êxtase desta. Tal sentimento pode existir entre duas pessoas de sexo diverso; mas para que seja durável exige grande calma dos sentidos e grande pureza de coração. Sem esta dupla condição seria perigosíssimo ter uma amiga que reunisse as graças da juventude e os atrativos da beleza. Certo, no adolescente e no adulto não corrupto o primeiro amor é em seu princípio inteiramente ideal, e tal pode existir por algum tempo sem que idéias sensuais lhe alterem a pureza; mas na nossa pobre natureza, servindo o físico de instrumento a moral, o sentimento pouco a pouco se materializa e logo com a alma os sentidos se inflamam e confundem.
A paquera, a propósito mal confundida com a galanteria, é vocábulo de origem francesa, com o qual se acena as astúcias do amor ou da vaidade, que buscam fazer nascer desejos mediante uma provocação indireta, e também com uma fuga simulada; na mulher é a perpetua fadiga da arte de agradar outros, se lhe encontra qualquer vestígio até nas bestas femininas.
«Nos seus amores, diz Rousseau, vejo caprichos, escolhas, recusas concertadas, que assemelhem muito a máxima que tem as mulheres de irritar a paixão por meio de obstáculos. Dois pombinhos no beato tempo dos seus primeiros amores, me oferecem um quadro bem diverso da tola brutalidade atribuída a eles pelas nossas pretensões sapientes. A branca pomba segue passo a passo o seu caro, e se retrai não apenas se volta a ele. Se ele permanece imóvel, o excita com ligeiras bicadas; se si distancia, o segue; se si ensaia, um pequeno vôo de seis passos o atrai de novo: a inocência da natureza usa ora o excitamento ora a fraca resistência com tal arte que apenas se encontra na mais destra paquera. Não, a brincalhona Galatea não fazia melhor, e Vírgilio poderia extrair de um pombal uma das suas mais gentis imagens».
Notas:
1 – Ndt.: Isso lembra “L’amor che muove il sole e l’altri stelle”, que dizia Dante na Divina Comédia, e por aqui gerou um comentário interessante em uma disputa do nosso Gustavo Corção].
2 – Platão, jamais entendeu que o amor deveria ser totalmente ideal, puramente metafísico; ele quer que o homem honesto prefira as qualidades da alma, fonte ineuxarida de prazeres, aos pregos do corpo, muito mesquinhos, monótonos e passageiros.
«Digo homem vicioso, ele acrescenta. Aquele amante vulgar que ama o corpo mais que a alma; o seu amor terá breve duração, já que ama coisa que não dura. Não apenas as flores da beleza por ele amada são viciadas, o vê em busca de outro lugar, memória dos seus belos discursos e de suas belas promessas. Assim, não acontece a quem ama uma bela alma; lhe permanece fiel toda a vida, porque ama coisa que jamais muda».
Continua…
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