P. GIOVANNI PERRONE, S.J.: A REGRA DE FÉ PROTESTANTE CONDUZ AO RACIONALISMO

 

Artigo III.

A regra protestante de fé, considerada teologicamente, se demonstra conduzir ao racionalismo.

Padre Giovanni Perro, S.J.
Professor de Teologia no Colégio Romano
    Tradução: Gederson Falcometa

O racionalismo, seja vulgar, científico ou filosófico, é a tumba das crenças religiosas ou da fé cristã. A razão humana se faz para este o arbitro e o juiz supremo da revelação ou para falar com maior precisão dos termos, substitui a revelação por si mesmo, destruindo e anulando, até extinguir a sua noção. O sobrenaturalismo por isso não tem mais lugar; lhe substitui o puro naturalismo. Os livros santos e as doutrinas contidas nos mesmos, não são mais a obra de Deus, mas sim dos frutos da razão elevada a mais alta potência. Pois bem: o racionalismo nasce de um parto com o protestantismo; ao invés disso, devemos dizer que este lhe é o princípio gerador, e aquele a sua prole natural.

Uma sútil análise do protestantismo nos convencerá da verdade do quanto afirmamos, apesar de que em um primeiro momento apareça como uma asserção inventada. Quem realmente reflete sobre o rígido dogmatismo de Lutero; a firme fé por ele requerida para a justificação; as fórmulas tão francas e se tira do reformador saxão; o empenho e energia no defendê-las, os duelos, as disputas sustentadas contra os mantenedores ou introdutores de doutrinas diversas das suas, se maravilhará de como se pode pronunciar com verdade ter nascido a um parto o protestantismo e o racionalismo, antes ser aquele, deste princípio gerado. Mas a dificuldade não é senão aparente. Emerge essa do confundir-se o fato com o direito, o princípio com a aplicação. Lutero, a fim de justificar a sua defecção ou rebelião contra a Igreja, estatui como ponto de partida o princípio da sola scriptura que no espírito de qualquer um entendida e interpretada constituí a regra de fé, e que por conseguinte cada um tem o direito de examinar, e então, admitir como de fé tudo quanto na bíblia tiver encontrado dever crer, e por converso rejeitar tudo quanto julgasse a ela não pertencer.

Sobre este princípio começou ele a dogmatizar sem nenhum respeito a autoridade da Igreja, nem ao testemunho dos Padres, nem ao sentido da tradicional antiguidade cristã. A quem pois lhe opunha essas fontes, ele respondia de trato ser tudo isto palavra do homem, enquanto não se deve crer senão na pura palavra de Deus: lema que foi repetido depois por todas as gerações protestantes, e nós acabamos de ouvi-la dos lábios do bispo protestante Nixon. Mas ele, então, foi fiel a seu princípio? Nada menos. Ele, que tinha proclamado a pura palavra de Deus, isto é, a bíblia, como única regra de fé e anunciada a liberdade de exame, deu a própria interpretação sua como norma de crença, e substitui a autoridade da Igreja, impondo tiranicamente aos seus sequazes o seu próprio dogmatismo. No que qualquer um vê uma incoerência patente deste grande reformador.

Tal é o fato ou a aplicação pessoal do princípio feito pelo fundador do protestantismo; agora vemos o direito e o princípio em si mesmo. Então, a bíblia pela razão individual interpretada, e o seu livre exame constituem a regra, o direito, o princípio, como eu denomino, no protestantismo. Ora, ele é precisamente esta regra, direito e princípio que eu afirmo conter como um germe, o racionalismo, o sepulcro da fé e da própria revelação. Isto não me é difícil de demonstrar seja na teoria ou na prática.

E quanto a teoria, quem não vê, que fixado uma vez que a regra do crer e do operar é a escritura interpretada segundo a inteligência de qualquer um ou da razão individual, lhe segue que cada um se faz juiz da própria fé? Na verdade, a quem compete em tal hipótese o julgar se uma expressão deve ser entendida em sentido literal ou em sentido figurado?Se tenha por se interpretar um conselho ou um preceito? Se um fato tenha para se entender como miraculoso ou como natural?A razão individual unicamente. E para dar algum exemplo; as palavras de Cristo em S. João: Eu e o Pai somos uma só coisa, devemos entender uma unidade substancial ou uma unidade moral? As palavras da divina instituição da eucaristia: Isto é o meu corpo, são para se entenderem ao pé da letra ou em sentido figurado, e também é apenas de um rito mnemônico ou rememorativo? E assim diga-se de cem e mais cem outras passagens das quais da reta inteligência depende um dogma, um sacramento, uma grave obrigação. O decidir sobre estes pontos com a regra de que falamos, depende da interpretação de qualquer um. Dissentindo estes em seguida, como deve necessariamente acontecer, acerca da inteligência de tais passagens, que se deverá acreditar? Quem decidirá a controvérsia? Torno a repetir, a razão de qualquer um.

Nem tudo esta aqui. Devendo a razão individual ser juiz, ela, embatendo-se em alguma passagem a qual contenha algo verdadeiro, ponto que não entende, porque excede o objeto sobre o qual apenas pode se pronunciar, o que fará? Para um dos lados se virá entendido como soa, deve admitir como verdadeiro aquilo que lhe contrasta, um mistério que não compreende, uma ao menos aparente contradição; para outro lado muito bem conhecido é que não se pode rejeitar o que se encontra registrado abertamente no código divino. Então, a que se ater? Juiz supremo como ela é de sua fé, ao invés de se sujeitar si as escrituras e a revelação admitindo e acreditando no mistério no ponto em que não entende, pelo contrário o contradiz como contrário aos seus ditames naturais, sujeitando a escritura ou a revelação a si mesma; então, a interpreta a guisa, que nada apresente que não seja conforme a quanto ela entende. Por tal forma o mistério e o sobrenaturalismo devem ceder ao racionalismo.

Mais ainda: se a razão é aquela que deve em ultima instância pronunciar a sentença definitiva entorno ao sentido das escrituras, supondo-se que em alguma passagem se encontre muita oposição as propensões e as tendências de sua natureza corrupta, o interpreta de tal modo, que a oposição e a contrariedade esvaneçam, de forma que se possa acomodar tranquilamente  as inclinações da mesma. Que se encontra em algum traço que pareça favorecer as suas paixões, a agarra e se lhe faz uma sustentação para poder agir mais livremente. Nestes casos a escritura se torna nociva e mortal para o homem determinado a viver segundo os seus desejos, nem mais, nem menos do que fizeram não poucos dos antigos como dos filósofos modernos a respeito dos ditames da razão. Veio esta ser tratada a força, direi assim, para que servisse com distorcidas e violentas teorias a se fazerem patroas dos mais oprobriosos malfeitores. Por similar guisa a escritura abandonada a interpretação privada de cada individuo se faz servir de véu as mais torpes e ignominiosas paixões. Assim, não somente a fé, mas a moral vem de tal modo adulterada pela regra que serve de base ao protestantismo  [1].

Se dirá que estes são abusos da regra que por sua natureza não conduz a tais excessos. Conceda-se também serem estes meros abusos; mas eu pergunto: concederá ele, que sustenta e trabalha de tal forma, que sejam abusos ou ao invés, não sustentará que é interpretação legitima da pura palavra de Deus que ele assim vê, que ele assim entende? Quem poderá convence-lo do contrário em razão de sua regra? Não é ela a razão individual que deve julgar? Ninguém logicamente lhe poderá contradizer. E eis como por tais lógicos processos se vem a subverter e desorganizar a economia do cristianismo espoliando-lhe de todas as realidades sobrenaturais, de todos os mistérios, de todos os eventos extraordinários, que superam o ordinário curso da natureza, e todavia, de todos os vaticínios ou profecias as quais se explicam pela razão individual apenas como felizes conjecturas e nada mais. Além disso, se espolia dos documentos morais ou ao menos se tira a sua base, que é a fé nos mistérios, os quais ministram pela observância de seus preceitos os motivos mais fortes e mais galhardos.

Que advém do cristianismo quando se tira os mistérios da encarnação e da redenção? Os dogmas da futura ressurreição dos corpos e da eternidade das penas? Torna-se um esqueleto, uma larva, uma sombra. Torna-se uma escola filosófica. Pois bem: abandonada a escritura a inteligência e a interpretação individual, elas tombam e estragam.
Pois que, já não é a razão por si mesma que ao ler a bíblia tenha encontrado tais mistérios e tais dogmas, mas unicamente lhe tem do sentido tradicional mantido e propagado pelo magistério sempre vivente da Igreja. Dê-se a escritura sem outra explicação e comentário ao mais sábio dos mandarins chineses alheio a tudo da religião cristã, ali encontrará ele no sentido em que crê o cristianismo o mistério de um Deus feito homem, de um só sujeito reunindo em si a dualidade de naturezas divina e humana? Ali encontrará este homem Deus morto para a expiação dos pecados de todo o gênero humano, em sacrifício de redenção? Particularmente penso que não; e tanto menos o penso enquanto vejo homens criados e nutridos desde a infância nesta ideia de cristianismo, versatilíssimo no estudo da escritura, possuidores de dotes não ordinários de engenho e de erudição, que ainda não lhe vejo. Dirão os protestantes estarem estes de má fé; mas como o provarão? Certo é que esses o negam e asseguram de serem assim persuadidos e convencidos por uma acurada e profunda investigação da própria escritura, que pelo contrário isto é o resultado do exame consciencioso que lhe é feito, do seu estudo bíblico. Eu tenho a intima convicção que Lutero, e o mesmo diga-se dos outros assim chamados reformadores, como já por mais vezes foi inculcado, não teriam por si mesmos encontrado tais dogmas na bíblia, se não lhes tivesse aprendido da Igreja com o leite. São nisto os protestantes similares aos filósofos ou incrédulos, do século XVIII, os quais depois de terem desde a infância aprendido os ensinamentos da moral cristã, pretenderam fazer abstrações dela, e dar de si, como mestres independentes, lições de ética sublime, sem perceber a influência que as passadas reminiscências exercitavam sobre suas mentes.

E que seja realmente assim, basta refletir que muitos entre os protestantes com o tempo e com suas investigações perderam estes dogmas fundamentais do cristianismo, como é notável, e logo mais o demonstrarei. Ora, eu pergunto, como haveriam por si mesmos de encontrar com sua razão na bíblia tais mistérios, já recebidos e professados, e depois perder com a sua razão exploradora e com seu estudo bíblico? Ou qual é o caminho que percorreram para tal perdição? Precisamente a regra de fé adotada pelo protestantismo, a razão intérprete e juíza suprema do sentido da escritura. Por este caminho Lutero, encontrando absurda a noção de transubstanciação na eucaristia, rejeitou um dogma; por esta via Zwinglio e Calvino encontrando absurda a real e substancial presença do corpo e do sangue do Redentor na mesma, rejeitaram ambos este outro dogma: por este caminho, encontrando Münzer absurdo que as crianças que não tem o ato do crer pudessem ser regeneradas pelo batismo, rejeitou ele também este dogma. Exatamente por este mesmo caminho, encontrando Fausto Socino absurdo o dogma da trindade das pessoas divinas distintas em numérica unidade de essência; o dogma da encarnação, pelo qual duas distintas naturezas subsistem em uma só pessoa, absurdo o dogma da redenção operado pela morte de um inocente, como se Deus tivesse necessidade de tais vítimas para se reconciliar com o homem culpado, absurdo o pensar que por uma culpa passageira tivesse uma criatura que ser atormentada eternamente, rejeitou, eliminou do cristianismo com um só golpe todos estes dogmas fundamentais. Já não está na escritura, não se encontram numerosos textos e suficientemente claros para constatar-lhe a sua verdade, mas a razão individual, suprema intérprete dessa, ou não quer lhes ver ou se lhes vê os entende em outro sentido que lhe enfraquece, para que tais nada mais contivessem do quanto tinha visto se chocar com ela, e lhe levar ao nível de seu alcance.

Em suma lhe é irrepugnável que pelo mesmo motivo onde os primeiros reformadores deram ou atribuíram a escritura um sentido diverso daquele que ela tem segundo a interpretação tradicional da Igreja a respeito da eucaristia, do batismo e das outras verdades católicas, por este e não outro motivo, os socianos deram e atribuíram um diverso sentido a todas as passagens nas quais se contém os mistérios e dogmas, onde todos passaram estas passagens e todas as outras por uma revisão. Então, os dogmas que foram desconhecidos e negados, o foram em razão da regra do protestantismo [2].

Vejamos agora a ultima passagem que permanecia a se fazer passar pelo trânsito do socianismo ao mais abjeto racionalismo. Se premendo os passos dos primeiros reformadores, isto é, daqueles que em virtude da regra ou princípio proclamado por si reformaram a Igreja, os socianos em virtude da própria regra reformaram a reforma, os racionalistas por sua vez reformaram a reforma da reforma. Realmente tomando eles a mesma norma, a sua razão encontrou absurda a imediata comunicação da divindade com o homem.  Encontraram eles supérflua uma revelação sobrenatural quando Deus já tinha suficientemente provido o homem com a revelação interna, universal, comum, não a todo gênero humano, mas ainda bem especial a cada individuo. Encontraram está revelação interna, ou seja, a razão, que é susceptível de aperfeiçoamento e progresso sempre ulteriores e indefinidos, e porém, que basta a si mesma. Encontraram que realmente em certas épocas determinadas sob os auspícios de felizes combinações e mediante o impulso de homens dotados de gênio superior ao comum de seus contemporâneos, esta razão fez na espécie humana progressos maravilhosos. Entre estes homens, assim privilegiados pela natureza e suscitados pela divina providência, a tenor da exigência dos tempos em assinalar-se, devem constar um Moisés e um Confúcio, então um Jesus e um Maomé, e enfim um Lutero e outros grandes pares. Todos beneméritos em sumo grau do gênero humano. Os seus livros foram escritos sob a inspiração de tal gênio; e porém, naquela mesma guisa que nós dizemos inspirados os poetas, que chamam divino Platão e Túlio, assim são do parecer de se dever chamar divinos e inspirados os livros santos. De fato, esses contém documentos morais assaz bons; nem lhe falta a sua poesia, a sua parte mitológica. Se encontram mitos históricos, mitos poéticos, mitos morais. O primeiro mito é aquele da criação do homem; um segundo da formação da mulher; um terceiro na queda do homem, e assim passo a passo, até o Evangelho, o qual da mesma maneira é rico de mitos, a anunciação da Virgem de Nazaré, o nascimento de Cristo, os contos prodigiosos, a ressurreição, a assunção ao céu, e assim por diante [3].

É bem verdadeiro que depois deste racionalismo vulgar surge-lhe um outro científico e filosófico no seio da reforma. Kant foi o seu primeiro promotor, e vem aperfeiçoado por Schelling, então por Fichte e por Hegel. Fichte, como já disse, o propõem na apressada escola de se criar Deus. Hegel depois o propõe no desenvolvimento da ideia, que se desenvolve na história. A história por conseguinte outro não é que Deus, ou a ideia que desenvolve a si mesma com leis imutáveis e inflexíveis como a geometria. O homem não é senão a manifestação deste Deus no seu mais alto grau, a qual passageira manifestação retorna no oceano das ondas onde teve origem perdendo toda personalidade, e neste sentido, apenas o homem é verdadeiramente imortal. A história bíblica do velho e do novo testamento faz parte de tal desenvolvimento perpétuo [4].

Depois disso poderá ele ainda falar de fé, de mistérios, de dogmas e de moral? Poderá ainda falar de revelação, de inspiração, de escritura e de cristianismo? E em verdade os nossos racionalistas sustentam que o filósofo deve do próprio fundo, ou seja, da própria razão unicamente sacar a sua religião. Ela basta a si mesma sem que lhe seja adequado recorrer a alguma aminiculo externo. A religião positiva ou revelada, como eles dizem, eve ser deixada apenas para o não filósofo, para aqueles que pelo seu grau de cultura não se erguem tanto para poderem se formarem por si mesmos, ou seja, pelo vulgo, ao qual convém deixar a bíblia e um culto externo qualquer como suplemento a sua incapacidade [5].

Ora, esta tumba de todas as crenças, como se vê, este sepulcro do cristianismo é uma inferência lógica, uma rigorosa conclusão da teoria e da obra prática do protestantismo ou melhor dizendo, da regra de fé pela qual nasce o protestantismo, se estabelece e se desenvolve. Nos primórdios não era claro este nexo intimo e esta dependência, porque os protestantes foram muito tenros nos seus primeiros movimentos, e ainda estavam impregnados sem aperceberem-se do princípio católico, atinham-se, ao menos na prática quase por hábito em grande parte ao andamento católico. Bem haviam eles provado imenso horror ao suspeitar ainda de longe o abismo e a voragem que andavam cavando com a sua regra, e se em qualquer lúcido intervalo esqueciam da sua mente, logo distraiam o pensamento. Não apreciaram subitamente a força de seu princípio, e exatamente por esta cega inconsideração eles admitiram o dogmatismo como foi imposto pelos seus chefes. Daqui também tiveram origem tantas profissões de fé em seus frequentes congressos, colóquios ou sínodos reparadores; aqui os seus litígios intermináveis, as suas divergências de seita, a sua intolerância com todas as consequências que lhe brotavam. Percebiam bem que de quando em quando a fé deles era vacilante, que móvel era o solo sobre o qual caminhavam, e que qualquer vento, que pouco intenso soprasse, ameaçava arruinar o edifício mal firmado; mas também ainda não se viam no precipício arruinante que se preparavam. Não compreenderam, digamos rapidamente, a natureza do protestantismo. Precisavam do tempo, aquele severo descobridor das coisas, para que colocasse em aberto o mal que o protestantismo encerrava em seu seio; que fizesse brotar, explicar e vir a maturar os frutos que continham apenas como em sementes no seu nascimento. Precisamente três séculos de deduções lógicas fizeram ao fim claro até a evidência toda a monstruosidade da regra que examinamos [6]. Ora, em todas as partes os protestantes liberais e racionalistas confessam abertamente que os seus maiores não compreenderam a verdadeira natureza do protestantismo, que foram enganados de partido quando quiseram impor o fardo das confissões de fé positivas, formularias e dos livros simbólicos. Assim na Helvécia (Ndt.: Suiça), assim na Holanda, assim na França, assim na Alemanha, e assim também na Inglaterra onde o socinianismo e o racionalismo vão ganhando terreno [7].  Não existe outro sincero e genuíno protestantismo fora daquele que vem nestes últimos tempos definido: o poder de acreditar naquilo que se quer, e o operar aquilo que se acredita.

Face ao exposto, não chegam talvez até ao ridículo aquelas polemicas vulgares do protestantismo, em que todos os dias eles produzem seus tratados para impugnar a Igreja Católica a respeito de alguns dogmas secundários e adiáfora a substância da religião? Lhe vejam todos os intentos ao aborrecer o catolicismo pela invocação dos santos, pela veneração que professa as imagens e as relíquias sagradas; depois que eles não só rejeitaram todos os símbolos, mas também cavaram os fundamentos do cristianismo. Não se assemelham estes vãos declamadores àqueles, os quais, enquanto tem um fogo devorador na própria casa que tudo consome, arde e destrói, como a nada que lhes mova a solicitude, volvessem toda a sua solicitude e ânsia para a casa de um vizinho por algumas teias de aranhas pendentes nas paredes? Pior se depois tais teias não existissem fora de sua imaginação ou de seus olhos. Mas tanto é o homem, que muitas vezes é engenhoso em iludir a si mesmo.

Para as pessoas instruídas e versadas na polêmica religiosa não existe nada do que dissemos que não conheçam, mas não é assim para as menos versadas em tal gênero de estudo. Estes podem, talvez, suspeitar que exista exagero ao menos em alguns pontos tocados acima. Embora por estes me seja tida a grande peça abaixo da realidade. É coisa certa que o protestantismo transformado-se em racionalismo em força da sua regra precipitou-se em tais excessos a fazer arrepiar qualquer um que não tenha de todo perdido todo avanço de fé. A religião cristã se mudou em mera filosofia, a razão tomou o lugar da revelação. O Cristo some.

Daqui Marheinecke, célebre pregador de Berlim, pretende explicar nos seus discursos os dogmas luteranos por meio da filosofia idealista hegeliana, Strauss lhe fez a aplicação no cristianismo inteiro. Ele que na vida de Jesus já tinha provado, se bem que tentando, a restabelecer um Cristo da religião, depois de ter anulado aquele da história por meio da crítica. Tinha ele afirmado que os cristãos dos primeiros séculos tinham revestido de uma forma histórica a imagem do Messias, que era viva neles, e porém, já tinha falado no sentido dos hegelianos, que afirmam que o espírito humano, como por pressentimento da sua filosofia futura, tinha dado uma forma histórica aos dogmas do pecado original, da Trindade e do Homem-Deus. Strauss acusado por esta passagem no campo da filosofia, o confessou, persistindo não menos a crer que também permanecia-lhe um dado positivo na história do cristianismo [8]. Mas depois na sua dogmática se é tirado o empenho de demonstrar que a filosofia tornou-se assim a soberana, o Cristo de Hegel cancelará para sempre a memória do Cristo evangélico.

E eis como, seguindo logicamente a regra protestante, se perderam os mistérios, se perderam todos os dogmas, e também a própria noção de fé, de maneira que já pode o próprio Harms, protestante, censurar a reforma, que se pode escrever sobre as garras do dito as doutrinas geralmente reconhecidas [9]. E ainda mais explicitamente Smaltz: O protestantismo, escreve, impulsionou á frente o seu gosto por reformas, que isso agora não oferece mais que uma série de zeros sem cifras numéricas [10]. Nem aqui ficou, mas o protestantismo passou a transformar-se não apenas em racionalismo, mas em um tal filosofismo que absorve o cristianismo todo e reduz a uma mera idéia o próprio autor do cristianismo. As outras impiedades que se lhe seguiram serão em outro lugar referenciadas. Entretanto, basta o quanto discursamos a prova evidente do assunto.

R. Padre Giovanni Perrone S.J.
Professor de Teologia no Colégio Romano

Notas:

[1] Aqui bem cai apropriado o quanto refere Lingard na História da Inglaterra (tom, III, cap. 18, pág. 386. Páris 1843), entorno aos ultimos instantes de Cromwell, tenaz do dogma calvinista da inadmissibilidade da graça. «O protetor de Cromwell, escreve ele, esperava em White-hall a hora de render a Deus a sua bela alma. Vendo sem dúvida errar entorno ao seu leito a sombra ensanguentada do seu rei e aquelas de tantos milhares de ingleses e de irlandeses imolados a sua ambição e a glorificação do puro Evangelho, se dirige para um de seus capelães: Diz-me, Sterry, é possível decair do estado de graça? – Isto não é possível, responde o ministro. Então, disse o moribundo: Eu estou em segurança; pois eu sei que estive uma vez em estado de graça. Nesta convicção ele empregou o que lhe restava de vida e com suas forças rezou, não por si, mas pelo povo de Deus.

[2] «Lutero, bem disse Newman no Hist. du développement, se move de uma dupla base, porque o seu princípio dogmático era contradito pelo seu direito de juízo privado, e o seu princípio sacramental da sua teoria da justificação. O elemento sacramental não mostrou jamais sinal de vida; mas na sua morte, aquilo que representava na sua pessoa, como ensinante, isto é o princípio dogmático, ganhou a ascendência, e cada expressão dele sobre pontos controversos tornou-se norma para as seitas das quais em qualquer tempo a mais vasta (a luterana) foi enfim coestendida (quase) com a própria Igreja. Esta quase idolátrica veneração foi talvez acrescida pela escolha feita nos livros simbólicos da sua igreja de declaração de fé, a qual substância no todo junto era sua.» (São palavras de Pusey sobre o racionalismo alemão, pag. 21 In nota). «Depois teve lugar uma reação. O juízo privado foi restituído ao seu primado. Calixto mede a razão, Spener a assim dita religião do coração em lugar da exatidão dogmática. O pietismo para o presente prevalece; mas o racionalismo se desenvolveu em Wolf, que professou provar todas as doutrinas ortodoxas, por um processo de raciocínio, de premissas a nível com a razão. Logo se conhece que o instrumento que Wolf tinha usado para a ortodoxia, podia com igual plausibilidade usar-se contra ela: nas suas mãos tinha provado o Credo; naquelas de Semler, d’Ernesti e outros destruiu a autoridade da escritura. Em que então devia fazer-se constituir a religião agora? Segue uma espécie de pietismo filosófico, ou melhor o pietismo de Spener, e a original teoria da justificação encontrada analizada mais inteiramente, e saíram várias teorias de panteísmo o que era em princípio no fundo da doutrina de Lutero e no seu caráter pessoal. E este parece ser o estado do luteranismo no presente, seja visto na filosofia de Kant, seja na aberta incredulidade de Strauss, como nas religiosas profissões da nova igreja evangélica da Prússia. Aplicando este exemplo ao argumento ao qual ilustrar foi aduto, direi que equanime e ordenado andamento, e natural sucessão de opiniões pelo qual o credo de Lutero foi mudado na filosofia incrédula ou herética dos seus presentes representantes, é uma prova que aquela mudança não foi perversão ou corrupção, mas fiel desenvolvimento da ideia original.» Até aqui Newman, como que esparge luz a quanto tratamos neste artigo.

[3] Entorno a este sistema mítico pode se ler com fruto Ranolder, Hermeneuticae biblicae generalis principia rationalia, christiana et catholica. Quinque-ecclesiis 1838. Appendix Pseudo-interpretationis species, § 75 e segg.

[4] Veja-se entorno a tal racionalismo a elaborada obra de Chassay, Défense du christianisme historique, sec. edit., ou Christe et l’évangile. Esta obra, como já advertido, é plena de preciosos documentos que descobrem o andamento do racionalismo alemão e francês da sua origem até estes últimos anos. É para ler-se o belo e bem feito prefácio do célebre autor. Ver do mesmo modo o opúsculo de Steininger, profess. di Treveri, Examen critique de la philosophie allemande. Treves 1840. — Amand Saintes, Hist. critique du rationalisme en Allemagne. Paris 1841. — A. Ott., Hegel et la philosophie allemande. Paris 1844.

[5] Para dar um esboço do estado em que não tem cura se vai a Prússia bastará referir aquilo que escreve um correspondente do Univers em 18 de julho de 1844:

«Berlin est le centre de la science protestante, qui, comme vous le savez, croit être arrivée au point de se trouver bien non seulement indépendante de toutes croyances religieuses, mais encore bien au dessus de toute vérité révélée. La philosophie du célèbre Hegel a fait, sous ce rapport, un mal immense, et que l’on n’a pas encore bien apprécié, que l’on sent cependant, et que le roi lui-même n’ignore aucunement. La philosophie de Berlin prétendait que la raison humaine était parvenue à un degré de développement et de maturité, qui la mettait en etat de parvenir, par ses propres forces, à la connaissance de toutes les vérités que l’homme avait autrefois acceptées comme venant d’une source supérieure, et lui étant communiquées par la révélation. Il soutenait, que la raison humaine pénétrait bien plus dans l’intelligence la plus intime de ces vérités, que ne l’auraient jamais pu faire les hommes qui, étant éclairés eux-mêmes d’une lumière surnaturelle, avaient tâché de les expliquer.

La religion et la philosophie, disait-il, ont le même objet; mais la seconde est bien plus supérieure á la première…. Ces idées ont été adoptées par la plus part des hommes distingués et savants de Berlin; voilà ce qui explique pourquoi ils n’expriment ni haine, ni aversion pour ceux, qui tiennent encore à des doctrines religieuses positives; ils prennent ces hommes en pitié, tout en honorant en eux leurs bonnes intentions. — Vous avez encore besoin d’une religion révélée, d’un culte extérieur, de cérémonies, vous disent-ils, c’est très-bien, nous comprenons parfaitement l’état dans lequel vous vous trouvez, car nous y étions aussi; mais vous en sortirez peut-être, si vous pénétrez plus avant dans les études philosophiques, si la lumière de la science éclaire enfin votre raison.»

[6] Aqui também Newman, na sua Hist. du développement, observou bem que «O princípio é melhor prova da heresia que a doutrina. Os heréticos são fiéis a seus princípios; mas mudam aqui e ali, a frente e atrás em opinião: porque doutrinas assaz opostas podem ser exemplificações do mesmo princípio. Assim, os antioquenos e outros heréticos as vezes foram arianos, as vezes sabelianos, outras vezes nestorianos, outras vezes ainda monofisistas, quase ao acaso por fiel ao seu capital princípio comum, que não existe mistério em teologia. Assim, os calvinistas se tornaram unitários pelo princípio do juízo privado. As doutrinas da heresia são acidentes e rápido correm para um termo; os seus princípios são sempre permanentes.

«O protestantismo visto no seu aspecto mais católico é doutrina sem princípios; visto no seu aspecto herético é princípio sem doutrina. Muitos faladores, por exemplo, usam eloquente e esplendida linguagem sobre a igreja e as suas características: alguns deles não realizam aquilo que dizem, mas usam altas palavras e afirmações gerais sobre fé e verdades primitivas, cisma e heresia a qual não dão algum sentido definitivo; enquanto outros falam de unidade, universalidade e catolicidade, e usam as palavras no seu próprio sentido e para as suas próprias ideias.

«O curso das heresias é sempre certo: é um estado intermediário entre a vida e a morte ou aquilo que é similar a morte: ou se não resulta em morte, é resoluto em qualquer nova, talvez o contrário, curso de erros, que não apresenta alguma razão de ser conexo com aquilo. E neste modo um princípio herético terá muitos anos de vida, correndo primeiro em um sentido, depois em um outro.» Sect. 3, § 1 e seg.

[7] Ved. Amand Saintes, Hist. critique du rationalisme en Allemagne. Paris 1841, pag. 314 e segg.

[8] Ver os escritos polêmicos dele na terceira parte.

[9] Eis as suas palavras: «L’on peut écrire sur l’ongle du doigt les doctrines généralement reconnues.» Presso l’Hoeninghaus, La réforme contre la réforme, tom. I, ch. 1, pag. 12.

[10] «Le protestantisme a poussé si loin son goût des réformes, qu’il n’offre plus maintenant qu’une série de zéros sans chiffre numérateur.» Ibid., pag. 37.

Extraído do livro “O protestantismo e a Regra de Fé, vol.I Milão-Genova 1854, pág. 208-220 Parte I. Seção II. Capítulo III

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