A mártir de Bruges, por Georges Bernanos

A mártir de Bruges
Extraído do livro:
Diário de um Pároco de Aldeia
Georges Bernanos

          “- Eu pergunto o que os senhores têm nas veias, hoje, vocês Padres moços! No meu tempo formavam-se homens da Igreja – não adianta franzir a testa, sinto vontade de esbofeteá-lo. Sim, homens capazes de governar. Essa gente dominava uma região inteira, sem outro gesto que o de levantar imperativamente o rosto. Oh! Já sei o que você vai dizer: eles comiam bem, bebiam melhor e não desprezavam o baralho. De acordo! Quando se faz convenientemente um trabalho, ele anda depressa e bem, sobrando tempo para descanso, o que é bom para toda a gente. Agora os seminários nos mandam coroinhas, pobres coitados que imaginam trabalhar mais que ninguém, porque não chegam ao fim de coisa alguma. Esses tipos choramingam, em vez de mandar. Lêem multidões de livros, mas nunca chegam a compreender – a compreender, está ouvindo? – a parábola do Esposo e da Esposa. Que é uma esposa, tal como desejaria encontrar um homem, se é bastante idiota para seguir o conselho de São Paulo? Não responda, porque iria dizer tolices. Pois, muito bem, é uma criatura forte e firme no trabalho, mas que se submete ao ritmo inexorável das coisas, sabendo que tudo deve ser recomeçado, até o fim. Por mais que se esforce, a Santa Igreja não conseguirá transformar este pobre mundo em um ostensório do Corpo de Deus [Neb*: Ótima crítica ao Cristo cósmico de Teilhard de Chardin…]! Tive em outros – tempos falo da minha antiga paróquia – uma empregada surpreendente, uma boa irmã de Bruges, secularizada em 1908, um grande coração. Nos oito primeiros dias, lustra que lustra, a casa de Deus se pôs a reluzir como um locutório de convento; não a conhecia mais, palavra de honra! Estávamos no tempo da colheita; quer dizer que não aparecia em minha casa nenhum gato, e a satânica velhinha exigia que eu tirasse os sapatos, a mim que tenho horror a chinelos! Penso que ela chegou a pagá-los de seu bolso. Toda manhã, bem entendido, encontrava uma nova camada de pó nos bancos, um ou dois cogumelos novinhos no tapete de couro, e teias de aranha – ah, meu pequeno! – teias de aranha o suficiente para fazer um enxoval de noiva.

        “Eu dizia a mim mesmo: lustre minha filha, você verá, domingo. E o domingo chegou. Oh! Um domingo como os outros, nada de festas com repiques de sino; a clientela ordinária, qual! Miséria! Enfim, à meia-noite, ela encerava e esfregava ainda, de vela na mão. E algumas semanas passadas mais tarde, no dia de Todos os Santos, uma missão de arrasar, pregada por dois Padres Redentoristas, dois tipos enormes! A infeliz passava suas noites de gatinha entre seu balde e seu escovão – molha que molha – de tal modo que o musgo começava a subir pela coluna acima, e ervas nasciam nas junturas dos ladrilhos. Não havia jeito de fazer a boa irmã raciocinar. Se eu fosse ouvi-la, ninguém transporia a minha porta, para que o próprio Deus não sujasse os seus pés na Igreja; imagine! Dizia-lhe: “A senhora me arruinará com a compra de remédios” – porque ela tossia, pobre velha! Afinal, caiu de cama, com uma crise de reumatismo articular, o coração fraquejou, e pluf! Eis uma boa irma diante de São Pedro! Em certo sentido, é uma mártir, não se pode sustentar o contrário. Seu erro não foi combater a imundície, é certo, mas ter querido acabar com ela, como se fosse possível. Uma paróquia é, forçosamente, suja. Uma cristandade é ainda mais suja. Espere o grande dia do Juízo Final, você há de ver o que os anjos terão de retirar dos conventos mais santos, às pás, – que lixo! Pois então, menino, isso prova que a Igreja deve ser uma boa dona de casa, sólida e razoável. Minha boa irmã não era uma verdadeira dona de casa: uma verdadeira dona de casa sabe que sua casa não é relicário. Mas, isso tudo são idéias de poeta!”

        Esperava que ele chegasse ai. Enquanto enchia de novo seu cachimbo, tentei, meio desajeitadamente, convencê-lo de que o exemplo não fora talvez bem escolhido; que essa religiosa que morreu de trabalhar nada tinha de comum com os coroinhas, os pobres diabos “que choramingam em vez de dar ordens”.

        – Desengane-se, disse-me ele secamente. A ilusão é a mesma. Só que os pobres diabos não tem a perseverança de minha boa irmã, eis tudo. A primeira tentativa, sob o pretexto de que a experiência do ministério não confirma suas ideiazinhas, desistem de tudo. Só servem para comer doces! E uma cristandade, como um homem, não se pode alimentar de confeitos. Nosso Senhor não escreve que somos o mel da terra, menino, mas o sal**. Ora, nosso pobre mundo se parece com o velho pai de Jó, na sua esterqueira, cheio de chagas e de úlceras. Sal, na chaga viva, queima. Mas impede também de apodrecer. Com a idéia de exterminar o diabo, outra mania de vocês é a de serem amados por causa de vocês mesmos, entenda-se. Um verdadeiro Padre nunca é amado; guarde isso. E quer que lhe diga? A Igreja pouco se lhe dá que vocês sejam amados, menino. Sejam primeiro respeitados, obedecidos. A Igreja precisa de ordem. Trate de ordenar as coisas durante o dia. Ponha as coisas em ordem, pensando que a desordem prevalecerá no dia seguinte, porque, ai de nós, é justamente na ordem as coisas que a noite desbarata seu trabalho da véspera – a noite pertence ao diabo”.

*Neb: Nota do editor do blog.

** Como nota Bernanos, Nosso Senhor não disse que somos o mel, e acrescento nem o fel, mas o sal da terra. O sal, pode-se dizer, é a caridade, sobre a qual diz São Pio X na sua primeira encíclica “E supremi apostolatus”, onde fez do “Instaurare omnia in Christo” o programa de seu pontificado:

A Caridade Cristã.

  1. Mas, para que esse zelo em ensinar produza os frutos que dele se esperam e sirva para formar Cristo em todos, nada mais eficaz do que a caridade; gravemos isto fortemente na nossa memória, ó Veneráveis Irmãos, pois o Senhor não está na comoção (III Rs 19,11). Debalde esperaríamos atrair as almas a Deus por um zelo impregnado de azedume; exprobrar duramente os erros, e repreender os vícios com aspereza, muitíssimas vezes causa mais dano do que proveito. Verdade é que o Apóstolo, exortando Timóteo, lhe dizia: Acusa, suplica, repreende, mas acrescentava: com toda paciência (II Tim 4,2). Nada mais conforme aos exemplos que Jesus Cristo nos deixou. É Ele quem nos dirige este convite: Vinde a mim vós todos que sofreis e que gemeis sob o fardo, e eu vos aliviarei (Mt 11,28). E, no seu pensamento, esses enfermos e esses oprimidos outros não eram senão os escravos do erro e do pecado. De feito, que mansidão nesse divino Mestre! Que ternura, que compaixão para com todos os infelizes! O seu divino Coração é-nos admiràvelmente pintado por Isaías nestes termos: Pousarei sobre ele o meu espírito; ele não contestará nem elevará a voz: jamais acabará de quebrar o caniço meio partido, nem extinguirá a mecha que ainda fumega (Is 42,1ss). Essa caridade paciente e benigna (I Cor 13,4) deverá ir ao encontro daqueles mesmos que são nossos adversários e nossos perseguidores. Eles nos maldizem, assim o proclamava São Paulo, e nós bendizemos; perseguem-nos, e nós suportamos; blasfemam-nos, e nós oramos (I Cor. 4,12,ss). Talvez que, afinal de contas, eles se mostrem piores do que são realmente. O contacto com os outros, os preconceitos, a influência das doutrinas e dos exemplos, enfim o respeito humano, conselheiro funesto, inscreveram-nos no partido da impiedade; mas, no fundo, a vontade deles não é tão depravada como eles se comprazem em fazer crer. Porque então não haveríamos de esperar que a chama da caridade dissipe enfim as trevas da alma deles, e faça reinar nelas, com a luz, a paz de Deus? Mais de uma vez o fruto do nosso trabalho talvez se faça esperar; mas a caridade não se cansa, persuadida de que Deus mede a suas recompensas não pelos resultados, mas pela boa vontade.

Há em nosso meio muita gente que confunde caridade com comoção. Pensam que caridade é exatamente “exprobar duramente os erros, e repreender muitas vezes não só os vícios, mas também as próprias pessoas aspereramente, mas isso, como nota São Pio X, causa mais dano que proveito: nós não somos nem o mel e nem o fel da terra, mas o sal! Não podemos fazer do combate ao erro uma neurótica mania de limpeza como fez a “mártir de Bruges”.

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