Padre Sisto Cartechini, S.J.: Da proposição próxima da heresia, escandalosa, ofensiva, que soa mal.
Capítulo XII
DA PROPOSIÇÃO PRÓXIMA
DA HERESIA, ESCANDALOSA,
OFENSIVA, QUE SOA MAL.
Extraído do livro:
Da opinião ao dogma
Padre Sisto Cartechini, S.J.
Roma, 1953
[Tradução: Gederson Falcometa]
Próxima da heresia
Uma proposição se diz próxima da heresia quando, não todos, mas muitos doutores, e com grave fundamento dizem que é herética.
Assim, se qualquer um dissesse: as crianças não tem justiça inerente, seria próximo da heresia, porque muitos teólogos dizem que no Concílio Tridentino foi definida a justiça como inerente universalmente para todos, se bem que o decreto trate explicitamente apenas da justificação dos adultos. Ele diz que a justificação “não é apenas remissão dos pecados mas também santificação e renovação do homem interior por voluntária aceitação da graça e dos dons, onde o homem de injusto se torna justo, de inimigo amigo, a fim que, segundo a esperança seja herdeiro da vida eterna (Tit. 3, 7)» (D. 799). E aprendidas:
«Ainda que ninguém possa ser justo senão aquele ao qual vem comunicados os méritos da paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo, isto todavia advém na justificação do ímpio quando, por mérito da mesma santíssima paixão “por meio do Espírito Santo a caridade de Deus se difunde nos corações” (Rom. 5, 5) daqueles que vem justificados e se insere nesses (D. 8oo). E depois no can. 11 se diz: «Se qualquer um disser que os homens vem justificados ou por apenas atribuição da justiça de Cristo, ou por apenas remissão dos pecados, esclusa a graça e a caridade, que nos seus corações seja difusa por meio do Espírito Santo e seja nesse inerente, ou disser que a graça, com que somos justificados, seja apenas um favor de Deus: Anathema sit » (D. 821).
Meu próprio modo seria próximo a heresia se a alguém dissesse: São Luís não está no paraíso; o Papa não é infalível na canonização dos Santos.
Próxima ao erro se diz daquela proposição que nega uma proposição que aos mais parece ser uma conclusão teologicamente certa, mas não a todos.
De fato, uma conclusão teologicamente certa poderia parecer às vezes menos certa ou porque é deduzida de uma proposição evidente e de uma outra que os mais, ainda que não todos, julguem ser de fé, ou porque se deduz de uma certamente revelada e de uma outra evidente, per ilação que os mais, mas não todos, julgam evidente.
Damos um exemplo: que o Filho de Deus proceda do Pai pelo intelecto, seria conclusão teologicamente certa para todos se fosse absolutamente certo que a palavra «Verbo» fosse nome próprio do Filho e não apenas nome apropriado. É verdadeiro que nos manuais escolásticos se diz teológicamente certo que o Filho de Deus proceda por intelecto, porque quase todos qualificam esta proposição como teologicamente certa. Quem negasse isto dir-se-ia próximo do erro. O mesmo se diga quanto a processão do Espírito Santo por vontade.
Que sabe da heresia
Uma proposição se diz que sabe da heresia (sapiens haeresim) e é suspeita, quando faz nascer o temor que o autor daquela tenha caído na heresia ou em qualquer erro de que tenha origem aquela proposição; o fundamento, porém, ainda que real, não é suficiente para julgar com absoluta certeza que se trate verdadeiramente de heresia ou de erro. Assim Joao XII condenou alguns artigos de Eckart (D. 516-526) como mal sonantes, temerários e suspeitos de heresia, se bem que com oportunas clarificações poderiam haver também um sentido católico, como advém para muitas expressões que se encontram junto aos místicos.
Escandalosa
Uma proposição se diz escandalosa quando oferece ocasião de ruína, fazendo inclinar os ouvintes ao pecado ou distanciando-lhes do exercício das virtudes.
Assim falar mal do estado religioso, como acontece às vezes nas famílias quando qualquer filho quer fazer-se religioso ou clérigo, é proposição escandalosa. Exagerar os perigos dos exercícios de piedade; dizer na presença do povo: «Quem sabe se esta hóstia é consagrada», «Quem sabe se este corpo aqui venerado é daquele santo ou é o corpo de qualquer malfeitor»? Todas estas e similares expressões podem absolutamente em qualquer caso ser verdadeiras e não ser contra a fé, mas suscitam escândalo e distanciam os homens da piedade. Inocêncio XI assim concluí o decreto do S. Ofício de 4 de março de 1679 acerca dos vários erros morais: «Finalmente, a fim de que os doutores, ou seja, os escolásticos ou qualquer um no futuro, se abstenham de disputas injuriosas, e para que se providencie conservar a paz e a caridade, o mesmo Santíssimo, em virtude da Santa Obediência, manda a eles que tanto nos livros a serem impressos ou manuscritos, quanto nas teses, nas disputas, nas pregações se guardem de cada censura e nota; no mais se guardem de qualquer derrisão contra aquelas proposições que ainda aqui e lá são controversas, a fim de que da Santa Sé, conhecida a coisa, não venha pronunciado um juízo sobre as mesmas proposições» (D. 1216).
Que soa mal
Uma proposição que soa mal (male sonans), ainda que não dê fundamento aos ouvintes de julgar ou supeitar que contenha heresia, é reprovável pelo abuso de palavras tomadas em sentido e tom diverso daquele que costuma ser tomado comumente pelos fiéis. Assim se alguém dissesse: «É perigoso enriquecer o clero»; «O papa não deve dizer se “santíssimo” por razão do seu ofício»; «Em Deus são três essências relativas»: são proposições que soam mal. Esta ultima não é suspeita de heresia em quem a profere, mas soa mal porque o nome de essência é reservado pelos doutores para indicar apenas aquilo que é comum a todas as três divinas pessoas.
Ofensiva
A proposição ofensiva aos pios ouvidos (piarum aurium offensiva) é aquela que tem em si alguma coisa de indigno ou indecente em matéria de religião.
Como de fato todos os outros sentidos têm as suas repugnâncias, assim os ouvidos têm o seu modo de reagir e de repelir os sons estranhos e desagradáveis. Suponhamos que alguém tenha sido excomungado, e que, reconciliado com Deus com a contrição e a penitência, venha morto pela fé e morra mártir antes de ser absolvido da censura: ele é um verdadeiro mártir; ora se alguém dissesse; «Hoje honramos um excomungado público», ofenderia os pios ouvidos dos fiéis. Assim se alguém disser quando a alguns fatos não provados historicamente contidos no breviário: «A Igreja no Breviário nos conta fábulas e não fatos historicamente verdadeiros». O mesmo se alguém dissesse: «Santa Maria Madalena meretriz, rogai por nós»; «São Pedro, perjurioso e apóstata, rogai por nós». Isto deve ser tido presente para não se dizer coisa indecorosa, devendo falar às vezes de qualquer santo que tenha sito grande pecador; uma vez que nem tudo aquilo que é verdadeiro pode dizer-se também por toda parte, em qualquer modo, e em público.
Se a Igreja é infalível no dar uma censura inferior a heresia
Aqui surge o problema: quando a Igreja condena uma proposição qualificando-a com estas censuras de grau inferior, é infalível?
Porque vimos que uma proposição, não dizemos comum e certa, mas apenas comum, absolutamente pode ser falsa; em outras palavras, às vezes pode acontecer que seja verdadeira afirmação temerário; que aquilo que apareça dito com imprudência possa absolutamente ser verdadeiro; de modo que não repugna que uma afirmação condenada como temerária, absolutamente falando, possa em seguida, mudadas as circunstâncias, não ser mais uma afirmação temerária. Assim, por exemplo, entre os vários erros morais condenados por Inocêncio XI existe este:
«Já que o denário presente é mais precioso de um denário que se espera, e ninguém existe que não dê maior importância ao denário presente que aquele futuro, pode o credor exigir qualquer coisa mais do mutuário e a este título estar livre da acusação usurário (D. 1191). Hoje esta proposição, tento mudada as circunstâncias [1], não é considerada como escandalosa. É claro que os dogmas não estão sujeitos a estas mudanças, porque são verdades absolutas pronunciadas por Deus e por isso não dependem de novas circunstâncias e da mudança das coisas.
A precedente pergunta, então, é preciso responder assim: Aquilo, e nem mais nem menos, é infalivelmente verdadeiro, que a Igreja entende definir com as suas palavras. Se, então, a Igreja define que uma doutrina é revelada, como por exemplo a Imaculada Conceição, não apenas a própria doutrina é infalivelmente verdadeira, mas também o fato que é revelada é infalivelmente verdadeiro. Se qualquer afirmação vem condenada como falsa e errônea, a sua contraditória é necessariamente verdadeira, mas não é definida se seja também revelada ou apenas conexa a revelação. Foi condenado, por exemplo, por Pio VI o erro do 16º Sínodo Pistoiense relativo ao feliz estado de inocência de Adão, que, segundo o sínodo, teria sido consequência necessária da criação, devida por natural exigência a condição da natureza humana e então não um benefício gratuito de Deus (D. 1516): condenada como falsa e errônea; e então de tal condenação se deduz como teologicamente certo que o estado de Adão foi sobrenatural quanto a substância; mas não se pode deduzir como dogma. Se então uma proposição é condenada como temerária, é infalivelmente verdadeiro isto: ao menos atualmente tal asserção é temerária, mas do futuro não se diz nada. Se uma asserção é condenada como escandalosa e ofensiva, é verdadeiro que ao menos hoje é escandalosa e ofensiva ou está escandalosa assim como é formulada. Lhe oferece um exemplo o n. 9 dos erros morais condenados por Inocêncio XI: «O ato do matrimônio exercitado apenas por volúpia é totalmente isento de culpa e de qualquer defeito, mesmo venial» (D. 1159). Tal afirmação, ainda que em certo sentido, isto é, se não se faça nada de mal, seja verdadeira, não convém prega-la porque favoreceria uma coisa che deve ser freada. Por isto na condenação é dito que tais proposições são danosas na prática.
Em que sentido a infalibilidade e a fé supõem cognições humanas
Concluindo, devemos admitir como verdade teologicamente certa que o Papa no pronunciar estas censuras ainda que em grau inferior, como são: temerária, sabe da heresia, soa mal, etc, não pode errar. É verdadeiro, sim, que o juízo expresso nestas qualificações, depende da cognição humana não revelada, como seria o conhecer qual seja o parecer dos padres de que se distancia a proposição temerária, o significado das palavras e o sentido que dão os seus ouvintes, a impressão que fazem neles; mas isto não retira que o Papa seja em tais declarações infalível. Assim, todo ato de fé, toda cognição sobrenatural depende de qualquer notícia humana; mas uma vez que a cognição humana é antes condição e não causa do ato de fé, isso permanece sempre ato de fé divino e sobrenatural.
Deus, então, não pode permitir o erro do Papa no formular tais juízos, devendo o supremo pastor visível indicar aos fiéis os escolhos a evitar e a linguagem própria que devem ter e da qual fugir, para falar com exatidão das coisas que dizem respeito a eterna saúde.
Nota:
[1] O dinheiro em si mesmo não é um bem capital frutífero, e dos fatos nos tempos antigos não era tal; mas esse hoje tem mudado em qualquer modo mudado a sua natureza enquanto tem condições econômicas da sociedade moderna adquirido a propriedade de um bem frutífero. Enquanto, de fato, antigamente se podia de ordinário comprar apenas aqueles bens que são necessários ao uso da vida quotidiana, quais sejam por exemplo vinho, óleo, trigo: o dinheiro havia por si uma função de apenas representar aqueles bens e a esses era equiparado quanto ao valor. Então, não teria sido justo, ao menos nos casos ordinários, dar o dinheiro em empréstimo com interesses. Hoje ao invés, é continua a ocasião de comprar bens frutíferos, pela extraordinária facilidade da comunicação, pela liberdade de comércio e de indústria, pela grande diversidade e número de negócios, pela frequente divisão e veda de terras; e então o próprio dinheiro se pode enumerar quanto ao valor entre os bens frutíferos. Acontece portanto, que emprestando o dinheiro, o credor em qualquer modo torna vulnerável a sua condição econômica, ou lhe rompe a eficiência; como da outra parte a vacilante posição econômica do credor poderia fazer prever a restituição do dinheiro incerta ou ao menos diferida. Estas quatro circunstâncias: dano emergente, lucro cessante, risco da coisa, perigo de dilação tem valor econômico, e então podem, verificando-se de fato, constituir os mesmos títulos ao direito de proporcionada compensação, além da restituição do dinheiro emprestado.
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