A Demolição da Exegese Católica

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Francesco Spadafora

Separação da exegese do dogma

O pesquisador católico, examinando um dos numerosos sistemas ou métodos postos pelos racionalistas para tirar todo traço de sobrenatural dos Evangelhos, não deveria ter dúvidas.

Ainda mais que o castelo imaginado por Bultmann e seus companheiros foi apresentado e refutado com igual precisão por críticos e exegetas competentes, não somente católicos mas também protestantes [1]. Nenhum compromisso era e é possível. Os jesuítas do Instituto Bíblico Pontifício, por outro lado, agiram de modo surpreendente, ao contrário. Para adotar na exegese dos Evangelhos o método dito «histórico-crítico», na realidade falsa crítica ou criticismo inconciliável com o dogma (inspiração divina, inerrância absoluta, historicidade, submissão ao Magistério), os jesuítas então renegaram a fé católica e «sic et simpliciter» jogaram fora as verdade de fé acima citadas.

Eles entraram – e é o cúmulo – em luta flagrante com o que era então a suprema Congregação do Santo Oficio. Instauraram no centro do próprio catolicismo uma diarquia oposta ao Magistério da Igreja, para os problemas bíblicos, o «magistério» dos jesuítas do Instituto Bíblico!

Esta diarquia significava praticamente a separação da exegese do dogma e, logo, da teologia dogmática. O padre Alonso Schökel disse claramente em seu artigo «manifesto». Monsenhor Romeo o estigmatizou claramente na sua resposta: «Com uma incrível desenvoltura, o padre Alonso nos declara que a inspiração e a hermenêutica, “a inerrância, a relação entre a autoridade da Escritura e do Magistério” não lhe concernem, porque os erros sobre este assunto “são mais teológicos do que exegéticos”, isto é, não se referem tanto à interpretação de textos concretos quanto aos princípios teológicos.

E ele repete: “O modo concreto da inspiração e da inerrância são problemas dos quais deve se

ocupar a teologia dogmática”. Então (…), como se trata de questões de teologia, a exegese católica nova, modernanão deveria ocupar-se de inspiração e de inerrância, mas somente de “interpretação de textos concretos” Esta opinião de considerar como estranha (a inspiração, a inerrância… ) aparece, a partir do texto considerado em si, tão grave em um eclesiástico que ensina a Sagrada Escritura em Roma, que preferimos supor que o padre Alonso não soube se expressar» [3]. E monsenhor Romeo acrescenta em nota: «a encíclica Humani Generis inclui a exegese bíblica entre “as partes da teologia” (Civ. Catt., 101 – 1950 III – pág. 465 no. 25). o que sempre foi considerado evidente tanto entre os católicos como entre os cristãos dissidentes de qualquer denominação» [4]. 

A confirmação do cardeal Ratzinger

Esta separação da exegese e do dogma e, pois, da teologia dogmática domina hoje, incontestada, na «nova» exegese. E o próprio cardeal Ratzinger, Prefeito da Congregação pela Fé, que o atesta em Esegesi Cristiana oggi [5]. Depois de haver lembrado, mesmo de modo meio misterioso e pouco claro, o principio dogmático fundamental da exegese católica: «Em matéria de fé e de costumes … deve-se considerar como verdadeiro sentido da Sagrada Escritura, aquele que nos deu e que nos dá nossa Santa Madre Igreja, que deve julgar o sentido e a interpretação autêntica da Sagrada Escritura: não é permitido interpretar a Sagrada Escritura contra este sentido e contra o consenso unânime dos Padres» [6], continua: «Mas esse critério teológico do método está incontestavelmente em oposição com a orientação metodológica do fundamento da exegese moderna: é precisamente, ao contrario, isto que a exegese [moderna] tenta eliminar a todo custo. Esta concepção moderna pode ser descrita do seguinte modo: ou bem a interpretação é crítica, ou então se remete à autoridade [ao Magistério da Igreja], as duas coisas não podem ser simultaneamente possíveis. Fazer uma leitura “critica” da Bíblia significa esquecer o recurso a uma autoridade na sua interpretação. É certo que a “tradição” … não deve ser totalmente excluída como meio de compreensão: mas ela conta somente na medida em que suas motivações resistem aos métodos “críticos” [senão é a Tradição que deve ceder em face à “crítica fantasista”]. Em nenhum caso a “tradição” pode ser o critério de interpretação. Tomada no seu conjunto, a interpretação tradicional é considerada como pré-científica e ingênua; somente a interpretação histórico-crítica parece capaz de desvendar realmente o texto». E continua: «Tomado este ponto de partida, a tarefa atribuída pelo Concílio à exegese – a saber, de ser ao mesmo tempo critica e dogmática [mas, veremos, isto é somente a tese do Instituto Bíblico] parece em si contraditória, sendo esses dois requisitos inconciliáveis para o pensamento teológico moderno. Pessoalmente estou convencido de que uma leitura atenta do texto inteiro da “Dei Verbum“, permitiria encontrar os elementos essenciais para uma síntese entre o método histórico [Formgeschichte e Redaktiongeschichte] e a hermenêutica teológica».

Sua concordância, entretanto, não é imediatamente evidente. Assim, a recepção pós-conciliar da Constituição (recepção que é obra dos jesuítas) praticamente deixou cair a parte teológica da própria Constituição como uma concessão ao passado, compreendendo o texto unicamente como uma aprovação oficial e incondicional do método histórico crítico.

O fato é que, deste modo, depois do Concilio, as diferenças confessionais entre as exegeses católicas e protestantes praticamente desapareceram. Pode-se atribuir este fato a uma certa recepção unilateral do Concílio. Mas o aspecto negativo desse processo é que, mesmo no meio católico, o hiato entre a exegese e o dogma, de hoje em diante, é total.

Então a diarquia, atestada pelo Prefeito pela Fé com uma incrível desenvoltura, fica e prevalece sem ser aborrecida, e a «exegese cristã» (não se diz mais «católica») hoje, em ruptura e oposição com todo o passado, renega o sobrenatural, o dogma católico da inspiração e da inerrância absoluta, o Magistério constante e infalível da Igreja. Enquanto o cardeal Ratzinger, Prefeito pela Fé, estuda a quadratura do círculo, isto é, como fazer coexistir o erro e a heresia (Formengeschichte e Redaktiongeschichte) com as verdades reveladas e as normas irnprescritíveis do Magistério perene, fundamento e guarda de toda a exegese católica, e pergunta por isso de tempos em tempos. Ele não vê ou antes – é preciso dizer – ele não quer ver os efeitos desastrosos produzidos até agora na Igreja pelos «novos exegetas» que copiam os protestantes racionalistas alemães. Aliás, o cardeal Ratzinger se contradiz manifestamente.

Falando do sistema de Bultmann, ele reconhece que são infundados todos «os elementos principais do método e suas premissas» [7]. Mas como pode ele então falar de «inegáveis aquisições do método histórico» [8] e, no recente documento da Comissão Bíblica Pontifícia, [9] escreve: «Seria justo [sic! ] que o método histórico-crítico fosse aceito no trabalho teológico»?

Rejeição superficial dos dados históricos oferecidos pela tradição mais antiga

Com inacreditável ligeireza a «nova» exegese, lançada no domínio católico pelos jesuítas do Instituto Bíblico Pontifício imolou sobre o altar da Formengeschichte e da Redaktiongeschichte

os dados históricos, positivos, que resistiram a tantos ataques e que somente eles, corroborados pela crítica interna, permitiram e permitem à exegese católica afirmar e defender a historicidade dos fatos evangélicos, incluindo os sobrenaturais.

O valor histórico dos Evangelhos, de fato, além de ser para os católicos uma verdade de fé garantida pelo Magistério infalível da Igreja, «é evidentemente certo para o crítico» [10], para o pesquisador digno desse nome. Os autores dos Evangelhos são conhecidos: dois apóstolos, testemunhas oculares da vida de Jesus Nosso Senhor (Mateus e João) e dois discípulos (Marcos e Lucas) que narraram respectivamente a pregação de São Pedro e a de São Paulo.

Isto é atestado por uma tradição muito antiga e ininterrupta. que remonta ao próprio primeiro século e que é confirmada pela filologia (por exemplo, São Paulo, nas cartas aos Tessalonissenses, escritas por volta do ano 51, cita o trecho grego do Evangelho de São Mateus que, então, o precede) e pela arqueologia (por exemplo, o papiro Rylands para o Evangelho de São João e, recentemente. o fragmento de papiro da sétima gruta de Qumran, para o Evangelho de São Marcos). Então, se o exegeta é livre de discutir, faltando argumentos decisivos a favor ou contra a historicidade (se ela é inteira ou parcial, ou se se trata somente de uma com posição didática) de diversos livros do Antigo Testamento, não é assim para o Novo, tais as fontes, e tão numerosas, que atestam a autenticidade e a historicidade. Era isto, justamente, que Mons. Romeo fazia observar na sua resposta ao jesuíta Schökel [11], que punha no mesmo plano «aquele que afirma a historicidade integral do livro de Judite» e «aquele que nega toda historicidade do Capitulo XVI de São Mateus»: «Que analogia há, inclusive sobre o simples ponto de vista “crítico”, entre o caráter histórico de um livro remontando a um período muito obscuro e a historicidade de alguns versículos de um capítulo do Evangelho sobre os quais se baseia o dogma católico do Primado?»

O valor histórico dos Evangelhos é, inclusive «sob o simples ângulo visual crítico», um valor histórico de primeira ordem, ou antes de toda primeira ordem, dado que nenhum livro de história profana pode se vangloriar de ser seu igual. E, por outro lado, vemos como é tratado «hoje» (advérbio da moda, mas que deveria dar o alarme) a historicidade dos Evangelhos na tese de um estudante da Gregoriana.

Um caso entre muitos outros

Trata-se de Francesco Lambiasi, L’ autenticitá storica dei Vangeli – A autenticidade histórica dos Evangelhos [12], com uma apresentação do padre René Latourelle S.J., decano da Faculdade de Teologia na Universidade Pontifical Gregoriana, que escreve: «Trata-se de estabelecer critérios de historicidade propriamente dita, critérios válidos e criticamente aprovados, que permitam descobrir e isolar as matérias evangélicas que remontam ao próprio Jesus» (pág. 5), ou ainda remontar, ao modo modernista, ao «Jesus da história», demolindo o «Jesus da fé» de nossos Evangelhos que, segundo a Formgeschichte, seria uma criação da comunidade primitiva. E Lambiasi, aluno do jesuíta Latourelle, acrescenta: «Os estudos mais recentes [história das formas da redação] depois de Bultmann (1920)… depois de Kasemann (1954) até nós (1978), expuseram o problema da historicidade dos Evangelhos de uma forma diferente. Até mais ou menos 1950, era resolvido habitualmente sobre a base da critica externa … agora somente sobre a crítica interna». É evidente que para Lambiasi, como para toda a jovem geração, a Formgeschichte e a Redktiongeschichte não somente não contradizem (ou antes, pouco importa que contradigam) os dogmas fundamentais da exegese católica, mas se identificam com a exegese científica ou mesmo com a exegese tout court, e este discípulo de Latourelle nem mesmo supõe que os critérios externos (testemunhos das fontes históricas), por sua objetividade, têm a preeminência e são decisivos em relação aos critérios internos (estilo, conteúdo, pureza de linguagem, detalhes históricos e geográficos, etc … ) cuja apreciação depende quase sempre da capacidade subjetiva da avaliação [13].

Lambiasi explica em seguida a significação do titulo «autenticidade histórica dos Evangelhos». Ele pretende excluir dos Evangelhos a história propriamente dita, e admite somente o kerygma ou ainda a pregação: a Geschichte, repetindo assim a famosa distinção de Bultmann, pai da Formgeschichte. É preciso saber, de fato, que para impressionar e confundir os pobres leitores, os inventores dessas nebulosas teorias e seus discípulos forjam grandes palavras, aparentemente difíceis para iniciantes, variações de termos usuais, aos quais eles atribuem  uma significação diferente, pura criação de seu cérebro fantasioso. Assim o Kerigma, misterioso e em moda, é simplesmente a «pregação» na Igreja primitiva, pregação da qual o duo Bultmann-Dibelius quis fazer a pré-história das matérias evangélicas.

Assim mesmo, Bultmann, para negar aos Evangelhos todo valor histórico, inventou com todas as peças a distinção entre história, que seria a história propriamente dita e geschichte, que seria uma narração de fatos não verídicos, mas que entretanto podem ser úteis para a espiritualidade ou a fé (no sentido protestante). E Lambiasi, aluno da Gregoriana, vem nos repetir sob a direção do jesuíta Latourelle que nossos Evangelhos não são «história», isto é, história propriamente dita, mas sim «geschichte», ou ainda invenções, frutos da «fé» (?) da comunidade primitiva cheia de imaginação! Bravo para Lambiasi, e bravo para seu professor da Companhia (que não é mais) de Jesus! E não se trata de um caso isolado, trata-se de uma moda que se espalha. Basta citar alguns nomes: Pierre Brelot e X. León Dufour, na França; R. Latourelle S.J. na Gregoriana; lgnace de la Potterie S.J. do Instituto Bíblico Pontifício; com a nova geração: Rinaldo Fabris. Giuseppe Ghidelli. Gianfranco Ravasi, etc … na Itália.

Lambiasi foi encarregado, na Gregoriana, do seminário de exegese sobre historicidade (Geschichte) dos Evangelhos. As matérias propostas aos alunos compreendiam os escritos de Bultmann, dos adeptos da «história da redação»: H. Conzelmann, J. Jeremias, E. Käsemann e de autores católicos que os seguem como A. Deschamps (que foi até secretário da Comissão Bíblica Pontifícia). H. Schürmann, etc. Aos alunos que perguntaram qual é a posição do Magistério no que concerne à autenticidade e historicidade dos Evangelhos, Lambiasi respondeu que a questão sai do seu tema e que é «exegética». É a diarquia de que falamos acima, em ação.

Uma confusão provocada

A confusão provocada é a que identifica Formgeschichte ou Redaktiongeschichte com o estudo do gênero literário eventualmente utilizado pelo escritor sagrado.

Mons. Romeo o revela na sua resposta ao jesuíta Schökel sobre as «novidades» que Pio XII teria introduzido em Divino Afflante Spiritu, «Ele (Schökel) quer talvez indicar como novidade o convite para o exegeta pesquisar os gêneros literários? (…). Mas todos os bons manuais bíblicos falam disto há decênios». Em seguida, para os Evangelhos, bem antes que nascesse a Formgeschichte, exegetas e críticos católicos e não católicos, de valor indiscutível, consagraram-se ao estudo de seu «gênero literário», e o fizeram com argumentos de critica externa e interna.

Mateus, Marcos e João escreveram como se lembravam (Marcos repetindo a narraçãopregação

de Pedro). É o mais antigo atestado dos Padres. São Justino chama de modo repetitivo os Evangelhos: «Memorabilia apostolorum», «apomnemoneumata tòn apostòlon»

[15], isto é, «Memórias dos Apóstolos». Memórias, portanto, de fatos históricos, que são realmente acontecimentos, sem nenhuma preocupação de caráter literário, acrescenta lealmente J. Weiss [16]. É neste sentido que deve ser estudado o «gênero literário» dos Evangelhos, como fez o padre Léonce de Grandmaison (Jésus Christ, I. págs. 38-56) e Marie Joseph Lagrange (Mc. p. CXXVIII e segs.: Mt. p. CXXIV e segs.).

«Nascidos em circunstâncias de poderosa originalidade, os Evangelhos constituem uma variedade nova na literatura geral. Nenhuma das formas da literatura clássica nem da literatura popular grega serviu de modelo» escreveu o não católico A. Puech com a competência que todos lhe reconhecem [17]. O que tem então a ver o estudo dos «gêneros literários» dos Evangelhos com a Formgeschichte, que lhes nega desde o inicio a historicidade?

Quanto à pretensão da Redaktiongeschichte de conferir diplomas de «teólogos» aos evangelistas (a correção levada à Formgeschichte por este último sistema racionalista, permanece justamente na reavaliação do papel dos evangelistas – simples redatores para a Formgeschichte! – exaltando sua personalidade até fazê-los «teólogos» no sentido inferior que o termo pode terna boca de um «crítico» racionalista), uma vez que esses dois sistemas racionalistas permanecem firmes na sua negação da historicidade dos fatos narrados, ou então, deformados segundo a visão «teológica» de cada um, esta pretensão se choca com a simplicidade do texto como uma onda espumante contra um alto rochedo. A começar pelo Evangelho de São Marcos. Escrevi em La Tradizione contro il concilio: “A tradição eclesiástica confirma as relações estreitas do apostolado de Marcos com Pedro. Papias (in Eus., H. R. III. 39: P.G. 20.300) o chama ermeneutès Pétru. Marcos não viu o Senhor, nem ouviu seus discursos (Papias, Eusébio, Jerônimo).

Os dados da tradição muito antiga (Papias, c.130), confirmados pelo exame interno, dão Marcos como autor do 2° Evangelho, eco fiel da catequese de Pedro, eu diria quase “estenógrafo” do príncipe dos Apóstolos, para a comunidade cristã de Roma (cf. Lagrange, págs. XVI; Uricchio Stano págs. 1-42). “Como foi o colaborador de Pedro na pregação do Evangelho, ele foi assim seu intérprete e seu porta voz autorizado na redação deste Evangelho, e por este meio transmitiu a catequese do príncipe dos Apóstolos tal qual ele pregava aos primeiros cristãos especialmente da Igreja de Roma“. (Vaccari)

Os críticos unânimes reconhecem em Marcos o narrador popular por excelência. O 2° Evangelho é – poderíamos dizer – como um riacho de água límpida que jorra da fonte, depois corre livre e rápido sem tardar, como ansioso para atingir seu fim.

Que plano se propõe Marcos escrevendo seu Evangelho, tão espontâneo, tão diferente dos outros? Nenhum, se se quer falar de um verdadeiro plano, que lhe seja próprio, pessoal.

Marcos quis colocar por escrito a Boa Nova e a encontrou como se estereotipada na narração de Pedro: escreveu o que tinha ouvido de Pedro (é o sentido de ermeneutes que lhe e dado por Papias). Por conseguinte, se um plano presidiu a composição do Evangelho, não foi de Marcos, mas de Pedro: ele dava seus ensinamentos conforme sua utilidade, para os ouvintes, não como alguém que faz a história propriamente dita da lòghia (isto é, das palavras e atos) do Senhor. Marcos se limitou a fixar por escrito a narração de Pedro; ele não elaborou seus materiais, adaptando-os a um esquema pessoal, não pretendia expor uma teologia «sua» (cf. A. Fernandez, L ‘Introduction à la Vie de Jesus, Roma, 1962).

Compreendemos assim Papias: Marcos não escreveu com ordem, isto é, não dispôs os materiais numa ordem lógica, como fez Mateus, não se preocupou com a ordem cronológica como fez Lucas (1. 1-4). Marcos é simples e imediato. com a rudeza da arte popular (J. Welhausen), com sua singular frescura, sua originalidade vivaz (Huby). Ele tem o dom de animar seus personagens, de os fazer passar diante de nós em quadros vivos. Marcos conta ao modo de pessoas simples, de gente do povo quando tem o dom de ver as coisas: colhe os detalhes pitorescos. Parece seguir as alternâncias como se elas se desenrolassem sob seus olhos, no lugar de dispor suas narrações como homem que domina suas lembranças. Marcos nos transmitiu as lembranças de uma testemunha ocular, a narração de Pedro, como as recolheu dos lábios do Apóstolo.

Como acontece sempre aos pescadores, habituados a perceber os menores sinais da presença de peixe, Pedro sabia «ver» … ele estava apto a observar os detalhes plásticos de uma cena: «toda a cidade se comprimia diante da porta» (1,33). «Entretanto. ele estava na popa, dormindo sobre a almofada» (4, 38 etc.). Contando a história de Cristo, ele a vivia de novo …

Sob a influência desta realidade vivida, Pedro reproduzia sem esforço o desenrolar histórico do ministério de Jesus. com seus pontos salientes (…). Compreende-se bem a sedução que produz Mc. sobre os críticos e os exegetas modernos (…).

Para Lucas, basta ler o que ele próprio escreveu no seu prólogo [18].

Conclusão

A Formgeschichte e a Redaktionsgeschichte estão em oposição com a fé, com a lógica e os dados da verdadeira critica. Sua adoção no domínio católico, pelo Instituto Bíblico Pontifício, teve como único fruto a demolição da exegese católica, até fazer pôr em discussão os textos que tocam o dogma e dos quais já existe uma interpretação do Magistério solene. Assim para Mt. 16, 13-19 (a promessa do Primado!) o jesuíta Zerwick [19] e hoje Romano Penna da Universidade de Latrão; assim para Rm 5, 12 e segs, o jesuíta Lyonnet [20], sobre os passos do qual L. Algisi, na Bíblia em três volumes editada por Marietti, elimina toda alusão ao pecado original e ao Concílio de Trento, que em dois cânones, dá a interpretação autêntica de Rm 5, 12: «porque todos pecaram». Sem falar da distinção modernista entre o «Cristo histórico» e o «Cristo da fé», distinção corrente de hoje em diante, não obstante a condenação de Pascendi e do decreto Lamentabili.

É um fato muito grave que os professores de Sagrada Escritura das Universidades e dos Seminários não dêem importância aos princípios dogmáticos da exegese católica e desprezem o Magistério, persuadidos, ao contrário, de que é o Magistério, mesmo solene, que deveria esperar deles (os «novos» exegetas) o verdadeiro sentido das Sagradas Escrituras! Toda a fé católica se torna perturbada e desenraizada.

Espera-se. talvez em nenhum domínio tanto quanto no bíblico, com a confiança calma na divina assistência prometida à Igreja, a palavra solene da Igreja infalível, que virá sem falta – é de fé – depois de tantas dolorosas perdas.

Francesco Spadafora

Notas:

[1] Ver pág. 3 e segs., mesmo número.

[2] Ver Courrier de Rome, novembro de 1994

[3] A. Romeo «L’enciclica “Divino Afflante Spiritu” et les opiniones novae» in Divinitas 4 (1960)

[4] Idem.

[5] «L’esegesa cristiana oggi» (A exegese cristã hoje), em colaboração com o jesuíta Ignace de

la Potterie, do Instituto Bíblico Pontifical, ed. Piemme 1991. págs. 98 e segs.

[6] Concilio Vaticano I. sessão III – 24 de abril de 1870.

[7] Ver «L´esegí cristiana oggi», citada págs. 103-114.

[8] Idem.

[9] «Interpretazione della Biblia nella Chiesa». Livraria Editora Vaticana: ver Courrier de Rome,

abril 1994, págs. 4 e segs.

[10] Francisco De Vizmanos S. J. – lgnacio Riudor S. J. «Teologia Fundamental para seglares»,

Madrid. BAC 29. pág. 297.

[11] Ver Courrier de Rome, novembro de 1994.

[12] Ed. Dehoniane. Bolonha 1978

[13] Ver Leão XIII «Providentissimus Deus» E. B. 119

 [14] Ver Brunero Gherardini. La seconda riforma uomini e scuele del protestantismo moderno,

vol. 11. Morcelliana, Brescia. 1960. pág 366.

[15] Apol. 66-67; 2 Apol. 11-11: Dial. C. Tryph 100-107 três vezes.

[16] J. Weiss «Das Urchristentum» (O Cristianismo na origem). Göttingen, 1917, pág. 538.

nota 1.

[17] A. Puech «Histoire de la Littérature grecque chrétienne», I, Paris 1928, pág. 60.

[18] F. Spadafora «La Tradizione contro ii concilio», págs. 89-92.

[19] Rivista Biblica 8. 1960. págs. 80-82.

[20] Stanislas Lyonnet «Le péché originel et l´exégèse de Rom 5, 12-14» em «Recherches de

Science Religieuse» 44, 1956, págs. 63-84.

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