LA CIVILTÀ CATTOLICA: COMENTÁRIO A CARTA ENCÍCLICA PASCENDI DOMINICI GREGIS DE SUA SANTIDADE PAPA PIO X - TEXTO II

O MODERNISMO REFORMISTA
La Civiltà Cattolica*
Roma 1908
Comentário a Carta Encíclica 
Pascendi Dominici Gregis
Tradução: Gederson Falcometa

O herético – que é anárquico na ordem religiosa e moral – insurge voluntariamente, como anárquico politico e social, em nome de qualquer ideia, ou melhor, de qualquer palavra sublime, particularmente ao som grandioso de renovação, de progresso e de reforma. Somente, quando da altura da especulação desce para a enormidade da aplicação, a prática, ele se descobre como é de fato: sob o manto do reformador audacioso um abjeto e orgulhoso pervertedor.  Toda a história dos séculos cristãos é plena deste fato: e o fato, de resto, tem a sua raiz no instinto, já frequentemente denunciado, do erro e do vicio, que é de transfigurar-se no semblante de verdade e de virtude. É então sumamente benemérito quem lhe arrebatando a máscara a tempo, coloca-lhe o nu da feia figura, antes que a simulação adquira crédito e potência em dano da religião e da moral, da Igreja e da sociedade. Ora, isto ocorreu ao modernismo, graças, sobretudo a vigorosa encíclica Pascendi: isto aparece na sua vergonhosa nudez, não sábio reformador, qual ostenta, mas destruidor insipiente e pervertedor. E tal devemos também mostra-lo agora brevemente, sobre os traços da encíclica, para concluir, com esta rápida olhada, o nosso já muito longo tratamento do modernismo.

 

I

Mas antes tratamos de avisar – para dissipar um equívoco, fútil, mas assaz cômodo aos modernistas e, porém muito abusado – e advertimos que, ele não é chamado modernismo pervertedor e destruidor apenas por denúncias de abusos ou demanda de reformas, longe disso: seria este um grande mérito de sinceridade e de zelo, onde se fizesse devidamente, como foi propriamente sempre das almas nobres, desinteressadas e santas. De fato, ou por abuso se entende mais propriamente o uso desordenado de algum poder ou direito legítimo, ou mais amplamente ai se compreende qualquer espécie de desordem, de inconveniência ou de defeito. Agora em um sentido e em outro é muito claro que nunca o abuso pode deixar, em longo prazo, de insinuar-se por uma parte em qualquer obra, sociedade ou instituição de criaturas racionais e livres, mas ao mesmo tempo deficiente e finito. Então, o denunciá-lo de forma apropriada e mais o trabalho para removê-lo é obra honesta: muitas vezes difícil, por vezes delicada, mas sempre necessária. E esta é a obra do reformador.

Portanto, nem a obra de reforma é própria da nossa idade, nem desta ou daquela idade: é de todos os tempos. Nem vale apenas para esta ou aquela condição de sociedade ou de vida, mas é necessidade, lei, é quase da essência, da própria vida humana, seja individual ou social. Mais, a reforma é lei e condição de progresso em todas as coisas sujeitas a mutabilidade, ao declínio ou ao incremento: então reforma de estudos de ideias na vida científica, reforma de costumes e de leis na vida moral do individuo e da sociedade, e assim por diante. Mais ainda; para chegar a razão ultima e profunda, esta lei ou condição de vida é inelutável e perpétua, como consequência intrínseca e necessária da defectibilidade por uma parte, e por outra da perfectibilidade do homem e de quanto é sujeito ao homem de cá embaixo. Do ser, isto é, defectível vem que a criatura pode decair passo a passo da sua nativa perfeição; do ser perfectível segue que pode ser reconduzido a perfeição antiga, que é como dizer, reformada. A defectibilidade torna o homem necessitado; a perfectibilidade o faz capaz de progresso, de emenda ou de reforma.    Já que, a respeito disso, o axioma bem velho na vida do espírito, diz que o mesmo non progredit retrogredit est.

Nem porque fazem parte da Igreja os homens, são simples fiéis, são pastores, perdem ponto ou uma ou outra propriedade intrinsecamente sua, onde são submetidos a abusos ou certo a deficiências, e permanecem, portanto, sempre necessitados e sempre capazes de aperfeiçoamento ou de reformas. Mas este elemento humano, assim mutável e imperfeito, que deve ser combinado ao elemento divino, constante e imutável na Igreja, porém, não deve nunca ser com esse confundido, que nunca se altera pelos abusos, nem por reformas o modificações, bem que o mantendo entre abusos e reformas imutado, lhe comprova com o próprio fato da sua história a natureza e a origem diversa, isto é divina.

Ora, no confundir um e outro elemento, peca antes de tudo o modernismo reformista: esse chama crise da Igreja, abusos e desordens da Igrejadaqueles que estão na Igreja; e com isto pervertem o próprio conceito da Igreja e lhe renega a origem e a vitalidade divina, atribuindo a ela, a sua essência, ao seu governo ou constituição essencial os abusos que são próprios dos seus membros enfermos, com a consequente necessidade de reformas. A Igreja, enquanto sociedade divina, qual nasce das mãos de Cristo fundador, não tem nem pode ter mácula, nem ruga e nem outra tal imperfeição. Com ela é Cristo, mestre e autor da santidade, até a consumação dos séculos; e Cristo a preserva da corrupção da culpa como do extravio para o erro, e assim intacta ele a guia, entre a pestilência do século e os obscuros  eventos da história, conservando-a sempre jovem e florescente para as núpcias eternas.

Então, embora o corpo inteiro da Igreja não é, nem nunca poderia dizer-se contaminado pelos abusos, nem nunca que lhes aprove ou lhes fomente. Porque, como escrevia a este propósito S. Agostinho, «a Igreja de Deus, assim colocada entre muita palha e muita cizânia, muitas coisas tolera; mas aqueles que são contra a fé ou a vida boa, ela não aprova, nem silencia e nem faz» [1].

A tal distinção, elementar mais vitalíssima, não colocando mente o modernista, e às vezes positivamente ridicularizando-a, ele se avizinha, ou pior vem primeiro dos hereges de todos os séculos passados, nominalmente ao protestante da pseudo-reforma do século XVI, ao jansenista do XVII, ao filósofo e libertino do XVIII e ao liberal do XIX. Todos eles de fato são concordes em gritar degenerada a Igreja pelos abusos de alguns de seus filhos, necessitada então de ser atualizada ou reformada a seu capricho sob um ou outro pretexto; embora para alguns o pretexto é a necessidade de reconduzi-la atrás a simplicidade dos primeiros séculos, a sublime pobreza das catacumbas – e o maligno acrescenta com sarcasmo, a palha de Belém – para outros é a necessidade de impulsioná-la a frente, a segunda da corrente corrente impetuosa dos tempos, de rejuvenescê-la no frescor perene do progresso; porque, feita agradável ao século, acorda com ele um novo conúbio.

Precisamente entre este duplo intento influenciam os sequazes do modernismo reformista; e se discordam entre eles, isto é apenas na aparência ou em qualquer propósito secundário: o princípio onde se movem a acusar a própria Igreja pelos verdadeiros abusos ou supostos de alguns filhos seus, é um em todos: o espirito do mundo e o desamor da Igreja. Então um é também em todos, o êxito final: a perversão, não a reforma.

II

E isto aparece também, com muita tristeza evidente, no estranho conteúdo e no modo com o qual estes novos falsos reformadores, a semelhança dos antigos, se fazem denunciadores de escândalos e de abusos. Aqui falamos de coisas notáveis a todos, em Itália e fora da Itália: e sem que nós o repitamos nem recorramos a mente de cada um dos autores. Como aqueles antigos, assim estes modernos inventam, agravam ou propalam injustamente; como aquelas antigas calúnias, de exageração e de fofoca. E este frenesi coloca língua em cada coisa; cada coisa maldiz ou deprime, lhe consideram a pessoa, se não seja modernista ou de qualquer forma anticatólica; e o que é pior, trocam as sombras com a realidade, dão como verdadeiros fatos e sonhos das distorcidas imaginações e dos maquinamentos das almas envenenadas ou enfim sobre uma tenuíssima trama de verdades vem bordando toda uma tela fantástica de acusações, de insinuações, de exagerações e em suma de denúncias injustas; as quais então, engrossadas deformadamente, vão propalando contra toda razão de justiça, bem como de caridade e de conveniência. Tudo isto em nome da sinceridade e da lealdade; da qual se atribuem esses o orgulho e por pouco o monopólio. Mas nós apenas diremos aqui, com toda mansidão isto era o que se escrevia, já, a mais de um século atrás, pelos modernistas de então, também ansiosos para propalar escândalos e abusos:

«Pode dar-se que esta espécie de mania seja zelo: mas pode dar-se que também seja aversão e amor próprio. Se ela é zelo, tira a sua origem em um coração reto, deve acompanhar-se com caridade e com imparcialidade. Neste caso, não se ouviram fremir as nossas bocas, quando nos será ocasião de falar das desordens do clero, não se tingiram de sangue os nossos olhos, não buscaremos companhia nas nossas impetuosas declamações, e não acreditaremos muito voluntários em tudo aquilo que nos seja contado de tais desordens. Mas se ela então, é aversão e amor próprio, as invectivas se reunirão com desordem sobre as nossas bocas, voltaremos as costas a qualquer um que ouse defender a fama do clero, e se provará uma secreta complacência de seus males e de suas desventuras. Os Judeus, os Turcos, os heréticos serão nossos tenros irmãos, porque não colocam nenhum obstáculo as nossas paixões, e porque conosco igualam a língua em maldizer os Padres e os clausurados», etc.

Assim escrevia o douto e pio Affonso Muzzarelli [2], ao entrar no século passado, e as suas palavras pareciam de ontem: tanto bem se aplicam aos modernistas; se não que estes ao ter irmãos, nominados acima, acrescentam ateus, socialistas, maçons e toda similar geração de inimigos da Igreja e com eles igualam a língua em maldizer não apenas o clero, mas aquilo que é de mais sagrado e reverente no magistério, no culto, no governo, na moral e em cada coisa.

Nem é necessário que andemos aqui em citações: sabemos bem, por via de exemplo, a memória de todas as maledicências do «Santo» modernista e dos seus devotos: «a Igreja neutraliza a busca da verdade»… a Igreja «acorrenta e sufoca tudo que dentro dela vive juvenilmente»… a Igreja «é hostil a quem quer questionar aos inimigos de Cristo a direção do progresso social»…  Pior ainda – assaz pior daquilo que blasfemavam os jansenistas – a Igreja esta enferma, se não moribunda mesmo, como outros a querem: quatro espíritos malignos «entraram no seu corpo para fazer guerra ao Espírito Santo» e são o espírito de mentira, espírito de dominação do clero, espírito de avareza e espírito de imobilidade. E como se não bastasse, outra grande praga se acrescenta: o «defeito de coragem moral»; onde «antes de colocar-se em conflito com os superiores, nos coloca em conflito com Deus…» ; e com isto um cumulo de outras desordens e abusos.

Mas note-se que aqui, como também, o escritor, digno de melhor sujeito, é um eco simples de declamações apaixonadas de homens ambiciosos e frívolos, os quais a anos, mais de um decênio, vinham enchendo de similares feiuras as colônias dos seus jornais e periódicos, qual, por ex. a Cultura Social, abusando da longânime tolerância dos caluniados e da própria autoridade da Igreja. Sobre estas colônias, para lhe citar um ensaio, se podia escrever (agosto de 1905) que «da época da Santa Aliança… a nossa vida pública foi e continua a ser uma grande mentira, dirigida contra os interesses dos humildes, do povo, da verdade e da justiça, e contra o conteúdo social do cristianismo, sufocado pelas aparências da reação»!  Assim, um mestre de vida pública modernista, que sonha a aliança com o socialismo ateu. E outras insolências não menos belas se aventam periodicamente contra os abusos da vida privada dos católicos, e em gênero de toda a vida religiosa, pelo mesmo mestre do modernismo reformista, o qual reservava ao invés, mil carinhosas lisonjas pelos «tenros irmãos», inimigos de Deus e de toda religião.

De resto, sobre tais insipiências dos novos reformistas não é preciso mais insistir: esses se mostram por si mesmos, na abjeta linguagem, com a velha marca dos pseudo-reformadores, isto é, dizer destruidores insipientes e pervertedores.

III

Mas muito assazes se mostram tais, quando para fazer reparo aos abusos verdadeiros ou falsos, que esses denunciam assim superficialmente, se colocam a apresentar as suas grandiosas propostas de reforma. Destes, como de ponto mais vital para a questão de princípio, fala energicamente a encíclica, e lhe descreve bem ao vivo, aquilo que andamos dizendo, como as ruínas se multiplicam sob os golpes do modernismo reformador.

Isto de fato, mais que o liberalismo, mira ao coração: que se reformar antes de tudo a doutrina; então reformada a formação filosófica e teológica das jovens esperanças da Igreja, com a supressão da filosofia escolástica e da teologia racional; então reformada a instrução dos fiéis, com a supressão ou mutação radical do catecismo, transformado segundo alguns em «um tratado sibilino de escolástica». Em seguida, e logicamente, quer reformado o culto, particularmente com a diminuição arbitraria ou a supressão das devoções externas. Assim também reformado o governo e a constituição eclesiástica, maximamente para a parte disciplinar e dogmática, introduzindo lhe mais amplamente o clero inferior e o laicato, e diminuindo a excessiva centralização da autoridade; reformados os órgãos da autoridade que são as congregações romanas, particularmente aquelas mais incomodas do Santo Ofício e do índice (Ndt.: Index Librorum Prohibitorum); reformada a atitude da própria autoridade nas questões políticas e sociais. Enfim quer reformar a moral, e então a vida toda do povo cristão, singularmente dando prevalecência as virtudes ativas sobre as assim ditas passivas; e com isto também reformado o clero, reconduzindo-lhe a antiga pobreza, mas junto a nova liberdade do modernismo, a qual, segundo algumas pessoas, querem também suprimido o celibato; reformada em suma toda coisa, salvo a vida dos próprios novos reformadores. Assim, a sua mania de inovação, como fala a encíclica, «tem por objeto  tudo que existe no catolicismo».

E em todas essas propostas e em outras um pouco menos letais, os novos reformistas procedem rápidos e resolutos. Descoberto, ou assim acreditado, o abuso, tem prontamente o remédio: colocar a mão na raiz, e com um golpe cortá-la. Nem a raiz, segundo esses, é a defectibilidade ou a culpa do individuo: é a própria autoridade, o poder o direito, do qual se faz ou se pode fazer abuso; é o sujeito, é a instituição na qual o próprio abuso aparece. Então, atenuando esses ou rejeitando em tudo a legitimidade da existência daquela instituição, autoridade ou poder, daquele do qual veem ou acreditam ver o abuso; e procedendo  consequentes aos princípios querem cortado de repente e destruído, onde se encontra, o sujeito dos abusos, dos inconvenientes e dos defeitos, que a eles desagradam.

Assim é sujeito de abuso ou de inconveniente a instituição rigidamente escolástica; é muito austera, é complicada para a anemia intelectual moderna: então se suprima. É sujeito de abuso ou de inconveniente a instrução popular, estreitamente catequista; é muito árida, é dura para a frivolidade das mentes contemporâneas: então seja abolida. E depois disto, a pequena escolástica se substituirá com a positiva «evolucionista»; a catequética pedestre com a conferência «alada». Similarmente é, ou parece, sujeito de abuso o culto externo; muitas manifestações suas contrastam a delicadeza dos nossos tempos: então se deprima, se diminua até reduzi-lo aos mínimos termos; e a «religião exterior» sob a «religião interior», a religião do espírito, sem maior constrangimento dos dogmas, das fórmulas e dos ritos.

O mesmo se diga naquilo que diz respeito a administração e o governo, os decretos da autoridade e dos seus órgãos autênticos, as congregações romanas e os seus ordenamentos, as instruções religiosas, os seus endereços, as obrigações do povo e aquelas do clero; se corre a negação, se grita a abolição ou a transformação de quanto mostra qualquer lado defeituoso e qualquer abuso.

IV

Ora, este proceder assim expresso dos modernistas, a cortar e abolir o sujeito para reformar lhe o abuso verdadeiro ou suposto que seja, é movido por um princípio absurdo, por um sofisma. Por aquele sofisma que os lógicos chamam de falácia do acidente, atribuem esses a natureza da coisa aquilo que lhe convém apenas em modo contingente e variável, como seria dizer, por caso ou por abuso, por insipiência ou por malícia do homem. Ou por outro sofisma similar ao precedente – o sofisma da falsidade da causa(non causa pro causa) – imputam, quase a causa própria ao sujeito ou a coisa em si, como a autoridade, a lei, ao método, o efeito do abuso, por uma simples razão de concomitância, de sucessão ou similar, que aparece, como seria porque o efeito do abuso o acompanha ou o segue em qualquer caso particular, ou, dizemos também, em muitos. Sofisma frequente um e outra para certa exuberância fácil; mas tanto mais odioso em cada parte da ciência e da vida, tanto mais repugnante a causa, como sabe todo noviço de lógica, ao contrário de todo simples sequaz do senso comum.

Que o modernismo reformista se move por um princípio assim absurdo, não faz maravilha que se coloca por uma via falsa e chega a absurdas consequências: a erros ou heresias na ordem especulativa; a remédios piores que o mal e a ruína na ordem prática.

São Erros, e muitas vezes heresias, as negações a qual isso passa da legitimidade, da razoabilidade ou do débito daquilo que se encontra pelo destino sujeito a abusos. São remédios piores que o mal, isto é ruína ordem prática, aqueles remédios práticos e radicais que isso propõe de prejuízos, de abolições ou transformações, em troca da reforma. Tanto mais que, admito o seu princípio ou norma prática de reforma –  aquela de correr em breve a renegar a legitimidade especulativamente, e praticamente destruir a existência daquilo que vai de encontro aos abusos – nada mais subsiste, em qualquer ordem, de intacto e de seguro.

Não na ordem prática; porque não leva afinal grande experiência, nem grande perspicácia de raciocínio a estar convencido de que não se dá nada ao mundo, no qual ou por insipiência ou por malícia do homem não pode e em longo prazo não chega a insinuar-se qualquer abuso. E os próprios modernistas, por quanto se suponham otimistas, que são ingênuos além de toda crença, nas propostas de reformas sem fim, e todas rápidas e radicais, que nos fazem, não ousaram talvez esperar tanto.

Não na ordem especulativa; porque como o erro do campo das ideias passa, por natural extensão, a ordem dos fatos, a prática; assim, para um fácil recâmbio, do campo dos fatos volta àquele das ideias, sem dizer que já a culpa chama seco ou pressupõe uma ignorância ou um erro. Conforme a isto, toda desordem ou abuso é fácil ocasião de errar; enquanto quem o sustenta busca em um falso princípio a própria justificação, e quem o condena encontra no próprio fato do abuso um pretexto para tirar-lhe qualquer falsa conclusão.

Mas em um e no outro caso, como se notou mais vezes na história do erro, se move por um mesmo pressuposto falso e disso logicamente se tiram conclusões contraditórias.

O falso pressuposto é o de confundir o direito com o uso, o dever ou poder com a atuação ou o exercício. Portanto, a conclusão de alguns, que a legitimidade daquilo desculpe ou legitime a desordem disto, isto é, o abuso. E então também a conclusão dos outros que a ilegitimidade disto mostra evidente a ilegitimidade daquilo, isto é, do direito,  e portanto a necessidade de abolir o próprio direito ou o sujeito do abuso, para que seja eficaz a reforma. São conclusões opostas entre si e em si absurdas, como cada um vê, mas deduzido logicamente de um mesmo princípio. E porém, se vale ainda qualquer coisa, a lógica, eles se bastariam por si só, quando outro não houve, a demonstrar a falsidade do próprio princípio. Da falsidade e da contradição do resultado não se pode que remontar a falsidade do antecedente; como apenas de uma absurdidade do princípio se pode ir logicamente a uma absurdidade de conclusões, por uma parte assim oposta e por outra, assim concordes em errar.

Quem então, segundo o ditado da antiga sapiência, quer evitar as consequências, precisa que mude os princípios, de onde estes resultam em: Muta antecedentia, si vis vitare sequentia.

V.

De todas as coisas ditas se confirma novamente, que nem sequer neste ultimo extremo de seu sistema os modernistas são moderno: eles continuam ainda aqui a velha tradição do vício e do erro.

E o similar notava já, até a primeira metade do século XVI, o grande chanceler parisiense, Gerson, a propósito de muitos heréticos, mesmo de seu tempo; que tinham tomado os movimentos para enganar por falso zelo ou por pretexto «de remover os escândalos da casa de Deus por está ou aquela via de pregação». De quem – escrevia ele – as heresias contra o primado da Igreja romana, que sem ela você tem saúde; contra as dotações da Igreja universal, que foram quase venenos espalhados sobre ela e oficina de toda espécie de simonia; contra a condição esplendida e a ampla família dos prelados, e então se poderia tomar dos seculares cada coisa; contra a observância dos religiosos, quase que contratam a liberdade da lei de Cristo… e assim de muitas outras coisas. Enquanto desagradavam os costumes, nasceram os erros: foi condenada por alcançar o estado, enquanto lá avistava desagradável abuso, a exemplo do médico estulto que destruí o sujeito, enquanto se esforça para caçar-lhe a doença. » [3].

E não menos orgulhoso de Gerson insurgia contra a hipocrisia e a sofistica dos falsos reformadores Pietro d’Ailly, no Concílio de Constança, com as palavras esculturais nas quais vibra verdadeiramente o palpite da atualidade e que nós também repetimos aos modernistas [4].

Saindo então da idade da pseudo-reforma e caminhando até aquela do jansenismo, do galicanismo, do liberalismo dos nossos tempos, as testemunhas desta sofistica nos pretensos reformadores são tantas e assim palpáveis que se torna inútil o fazer-vos insistência.

VI

Pelo contrário é para deplorar de novo, que o modernismo reformista também piore muito esta velha sofistica; e, que é pior ainda, a enderece a mover furtivamente os próprios fundamentos da Igreja, sob as cores de reforma. Quem nos manteve atrás até aqui, não lhe terá mais dúvida: quem dele ainda retivesse qualquer sombra, e examinar calmamente os quatro chefes das reformas, a que se podem reduzir as propostas mencionadas pela encíclica e por nós acima recordadas em compêndio: ensinamento, culto, constituição ou governo e costumes.

Ainda sem um longo tratado – qual poderia também fazer-se para cada uma de tais propostas em particular – aparecerá manifesto na primeira parte, com esse portando consigo uma infinidade de inovações, especulativas e praticas, as mais radicais; onde enfim o pervertimento e a destruição daquilo que é a própria essência da Igreja. Assim, o ensinamento, reformado sobre as ruínas da escolástica e do catecismo, na instituição científica e na instrução popular, quer acabar com a destruição de todo edifício doutrinal do catolicismo, que é de todo cristianismo dogmático, para introduzir em seu lugar um «cristianismo ético» em perpétua evolução, com uma nova forma de religião ou religiosidade do futuro.

Da mesma forma o culto, reformado pelo modernista ou pelo contrário debilitado, se não totalmente abolido, em todas ou quase todas as manifestações exteriores, chega a romper ou a relaxar o vínculo social da religião, a sufocar ou esfriar o fervor da religião interna, que dada a natureza do homem, composta de alma e de corpo, deve expandir-se da necessidade em atos também exteriores; enfim chega a distorcer o próprio conceito de culto devido a Deus, o qual culto não é restrito apenas ao espírito do homem, mas a todo homem, do qual Deus é o autor. Que embora se queira conservado o culto externo segundo as placitas do simbolismo modernista, isso é reduzido a uma sombra, a um cadáver de culto, sem espírito nem vida, ou mais verdadeiramente a uma forma de impostura.

Não menos grave é a inovação que vaguejam na constituição e no governo da Igreja: essa importa a negação de não poucos dogmas, como da fundação divina da própria Igreja, da sua unidade monárquica, do primado de Pedro e dos seus sucessores, com todos os seus dotes e prerrogativas: e mais, uma introdução explícita da prevalecência democrática, que acabaria em uma anarquia na constituição e no governo eclesiástico: isso seria em suma, a distorção na sua tríplice função, legislativa, judiciária e executiva, segundo as teorias politicas de Rousseau, não sem muitos encontros com os antigos delirantes leguleios [Ndt.: Indivíduo que cumpre servilmente a lei.] e dos imperialistas medievais, dos jansenistas e dos galicanos – de quem a história recorda os pestíferos efeitos nas mais graves desordens – levando com eles uma inteira sublevação da disciplina e do dogma.

Não falamos então de reformas de costumes ou de moral; que aqui as propostas se multiplicam tanto mais facilmente, enquanto os modernistas falam sempre de reformar os outros e nunca de si mesmos, ao contrário dos santos. Esses, ao invés disso, se indignam como por insulto, contra qualquer um que fale deles por pensar algum pouco de si próprios, para reformar as suas ideias, os seus modos ou costumes. Na verdade o examinar-se, o arrepender-se o humilhar-se, o obedecer, o mortificar-se e em suma, todas as virtudes que são ordenadas ao ato, primeira e mais necessária ao individuo, para aperfeiçoar a si próprio, são por eles desprezadas com apelido de «passivas»; exaltadas em seus lugares, e somente a essas homenageiam com o título pleonástico de «ativas», as virtudes ordenadas a ação exterior, nas quais o homem se expande, se agita e se derrama todo no turbilhão da vida moderna, buscando os seus modelos, não sobre o Calvário ou Belém, mas lá, além dos mares,  «nos países de vida intensa».

Muito menos tocaremos agora nas propostas muito dubiamente sinceras, de retornar o clero a antiga pobreza, e menos ainda de outras mais delicadas, quais, por exemplo, a abolição do celibato e a co-educação dos dois sexos, defendida por Don Domenico Battaini, e esta por Dom Romolo Murri, os quais se olhariam bem por desmenti-lo.

Por hora nós queremos terminar aqui, com o encerramento doloroso do Nosso Santo Padre Pio X:

– « Que se deixa então de intacto na Igreja que não se deva a eles e segundo os seus princípios reformadores? » – E se é assim, não são esses reformadores sábios, mas destruidores insipientes e pervertedores. E tanto basta.

*La Civiltà Cattolica, anno 59°, vol. 4 (fasc. 1401, 29 outubro de 1908), Roma 1908, pag. 288-301.

NOTAS:

[1] «Ecclesia Dei inter multam paleam multaque zizania constituta, multa tolerat; et tamen quae sunt contra fidem vel bonam vitam non approbat, nec tacet, nec facit». Ep. 55 ad Ianuar. Cf. Migne, Patrol. lat., XXXII, 221 s.

[2] Il buon uso della logica in materia di religione. 4a ediz. Roma 1807. Tom. 1, p. 113 ss.

[3] Gerson, De consol. theol., lib. III, 2. Uma similar observação fazia também, com muita vivacidade, a propósito de Arnaldo de Brescia, un seu contemporâneo, Guntero cisterciense, no poema Ligurinus, escrito em louvor do Barba roxa (lib. III, v. 288; cf. MignePatrol. lat., CCXII, 370); onde se dói que o heresiarca de verdadeiros abusos dos clérigos deduz falsas consequências, e que das suas falsas consequências os clérigos tirassem pretexto para não se corrigirem dos abusos: onde ele exclama,  naqueles seus hexâmetros amáveis, mas eficazes:

«Et fateor, pulchram fallendi noverat artem,
Veris falsa probans quia tantum falsa loquendo

Fallere nemo potest; veri sub imagine falsum

Influit, et furtim deceptas occupat aures».

[4] Cf. Civ. Catt., 1906 (3 febb.), p. 257.

Fonte: Progetto Barruel

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