MARCEL DE CORTE: MAQUIÁVEL, EXPRESSÃO DO HOMEM MODERNO

MAQUIÁVEL: EXPRESSÃO DO HOMEM MODERNO
Marcel de Corte
[Tradução: Gederson Falcometa]

Não se pode compreender a obra de Maquiavel e o seu alcance, sem antes compreender a concepção do homem e de mundo que a governa.

O pensamento de Maquiavel muitas vezes é reduzido apenas ao estudo dos procedimentos, dos mecanismos, das armadilhas, e também das forcas, necessárias para conquistas e conservar o poder; o todo, bem temperado por uma sapiência psicológica de quando em quando é exaltado ou condenado.

Ora, este aspecto da obra de Maquiavel não é falso: é certo, isto é, que Maquiavel é o pai de todas as receitas maquiavélicas; mas é, além disso, verdadeiro que o maquiavelismo não esgota todo o pensamento de Maquiavel. Não existe obra de gênio que esgote todo o gênio que a criou. Platão é maior que o platonismo, porque carrega em si todo um mundo do qual a sua obra é apenas um fragmento. Balzac é maior que a “Comèdie humaine”. É característica do gênio ser inesgotável: ao contrário do tagarela, que diz sempre a mesma coisa sem jamais se cansar. É o que ocorre com Maquiavel. No intimo dos mecanismos políticos dos quais o Florentino desmonta pacientemente as engrenagens, existe certa visão do ser humano inserida no mundo, que lhe organiza as relações e lhes coordena as junturas. Os conselhos que Maquiavel dá a quem aspira ao poder adquirem o seu sentido somente se referidas à intuição filosófica e antropológica que estrategicamente o orienta. Para dar-lhes, e para estar certo de que fossem bem acolhidas, Maquiavel devia saber que coisa era o homem do seu tempo, e qual concepção este tinha de si e do seu lugar no universo. Não era do tipo que pregava a surdos.

Se não se enucleia esta concepção inicial, da qual nasce todo o pensamento de Maquiavel, como de uma espécie de fonte subterrânea, não resta da sua obra que um agrupamento informe de comportamentos, diretrizes, atitudes e artífices, sem ligame e sem unidade.

Neste erro caiu a maior parte dos exegetas de Maquiavel, os homens de ação que quiseram conformar a sua conduta as máximas do autor do “Príncipe”: construíram um Maquiavel convencional, fizeram dele uma espécie de virtuoso do maquiavelismo, o representaram como um puro técnico da política. Ora, se Maquiavel é uma raposa sempre no rastro da presa, é todavia uma raposa que pensa, as astúcias e artimanhas dependem do tipo de homem que ele vê na sua época, e do qual carrega em si mesmo a imagem. É muito inteligente para não superar em mil milhas o maquiavelismo vulgar ao qual muitas vezes é reduzido o seu pensamento: conhece o homem novo trazido pelo Renascimento, e realmente lhe fez, no íntimo, uma ideia exata, firme e lúcida. A sua arte de governar não é deixada aos árbitros do caso, a improvisação, mas nem  mesmo apenas aos conhecimentos dos motivos psicológicos do ânimo humano. Tudo isto ele conhece a fundo, de acordo, mas sobretudo conhece a natureza humana, como a concebe o Renascimento.

Para compreender a concepção de homem que está constantemente na base das implacáveis análises de Maquiavel, e que embora não apareça explicitamente em nenhum ponto, é preciso contrapô-la a concepção medieval.

O medievo é dominado pela concepção aristotélica do homem integrada no cristianismo pelo gênio de Santo Tomás. Do homem, medieval, se pode dizer, aproximadamente, que é o todo de uma só peça, sem quebras e rachaduras entre os componentes do seu ser, como um camponês a qual simplicidade ignora os conflitos psicológicos próprios do cidadão, solicitado em direções diversas das seduções da civilização urbana e levado assim muitas vezes a incitar ao extremo a sua visão cerebral do mundo. A sua atitude diante do real é sintética, não analítica, e ele reconhece a si mesmo como um todo, propriamente a maneira dos seres e das coisas da natureza que observa entorno a si e a qual vida se mistura. Uma árvore não é para ele raízes, mais um tronco e mais a fronde, porque as partes recebem a vida de um princípio único. Um animal não é uma adição de órgãos e de membros justapostos como as engrenagens de uma máquina, mas um ser vivente que tira a sua vida de uma entidade misteriosa serpejante, sem distinção, em todas as suas partes: aquela que os sapientes chamam alma. O universo aparece ao homem medieval como uma vasta rede de correspondências que concordam entre elas de forma orgânica. A sua concepção do homem e do mundo é essencialmente vitalista.

Então, nada a estranhar que o homem do medievo, formado pelo contato com a natureza, tenha adotado no seu comportamento, em modo cônscio para os cultos, incônscio para os incultos, a doutrina aristotélica, que se lhe adapta como uma luva. Para Aristóteles realmente a alma não é separada do corpo, nem o espírito da carne: as duas entidades, incompletas, existem uma para a outra. A alma penetra o corpo até a última fibra, o corpo impregna a alma até o seu íntimo profundo. Foi o aristotelismo cristão a orquestrar esta concepção unitária do homem, segundo a qual o espiritual é carnal, para repreender a fórmula de Péguy, homem do medievo encontrado por engano no século XIX. Sem dúvida, a graça é distinta da natureza, mas, longe de aboli-la, a leva a cumprimento, a encarnando. (1) Não é feito uma mão de pintura, ou um compensado deposto sobre o homem, mas é ao invés intimamente misturada a sua vida, como o nutrimento ao sangue, e constituí o princípio de todas as suas ações sobrenaturais e a origem das suas virtudes teologais. O aristotelismo cristão é governado pela lei da encarnação radical da graça e da alma no corpo, com o qual fazem um todo.

Não existe, então, para o homem medieval a alma de uma parte e o corpo da outra, como um piloto em uma caravela, mas um só ser todo de uma peça. Não existe de uma parte o sobrenatural e da outra o natural, mas um ser humano completo: o homem batizado completamente natural e completamente sobrenatural, na medida em que realiza em si as exigências da natureza e da graça. O ser humano é então, para o medievo, vale a pela dizer, é um individuo no sentido mais forte da palavra, um ser indiviso. Apenas a morte vem a romper esta unidade fundamental; mas a morte, na prospectiva cristã, não é outra coisa que a porta aberta para a ressurreição, na qual alma e corpo se reúnem, e se reconstitui a unidade concreta do ser humano. As cenas da ressurreição que se veem sobre os portais das catedrais românicas ou góticas do medievo não são apenas a tradução em imagens do juízo final, mas também o símbolo da reconstituição do ser humano integral, dotado de uma alma, provido de carne e ossos, destinado a uma alegria eterna, ou a um sofrimento eterno, segunda o modo como viveu. O dogma da ressurreição dos corpos está estritamente ligado à concepção unitária do homem passada do aristotelismo ao cristianismo.

O macrocosmo do universo não é outro que o gigantesco engrandecimento do microcosmo do homem. Mesmo isso está submetido à regra de ouro da unidade das partes que o compõem. Cada fenômeno terrestre tem o seu correspondente celeste, e vice-versa; o dogma do corpo místico da Igreja, no seu tríplice aspecto militante, padecente e triunfante, sublinha ainda uma vez a estreita solidariedade que existe entre a concepção hierarquizada e unitária do cosmos aristotélico e a teologia cristã.

O homem se encontra, então, em acordo fundamental com o universo no qual se insere por destino de nascimento. Sem dúvida, o pecado original afrouxou esta relação, mas não lhe rompeu completamente. O homem foi excluído do benefício da graça, mas a natureza nele, por mais que ferida, não estava corrupta ao ponto de não ser mais natureza. Cristo, por outro lado, veio para restaurar a unidade da criação e oferecê-la novamente, sublimada pelo seu sacrifício redentor, ao Pai, criador de todas as coisas, visíveis e invisíveis. O cristão que imita deste modo Cristo é um homem que, elevado pela graça sobrenatural, oferece a paternidade divina de si mesmo e o universo inteiro do qual faz parte.

A prospectiva aristotélica e cristã do medievo é então, decididamente vitalista, consonantal e otimista. A vida fervilhante da natureza vem de Deus e retorna a Deus por meio de Cristo, “per ipsum et cum ipso et in ipso est tibi, Deo Patri omnipotenti, in unitate Spiritus Sancti, omnis honor et gloria”. Esta grandiosa visão teológica de um mundo a qual multiplicidade é também unidade, não seria possível sem o longo trabalho de sistematização empreendido por Aristóteles que leva ao seu perfeito cumprimento a ideia grega do universo ordenado como um coro; o cosmos suspenso, por amor, a um Bem supremo que é Deus. O espírito medieval se aplicará, então, como aquele grego, a ordenar a convergência de todos os seres, de todos os bens para o Bem, de todos os interesses materiais, intelectuais e espirituais para a harmonia universal. A cristandade do medievo é deste modo herdeira direta do cosmos grego e a sua transposição ao plano superior do sobrenatural.

Ora, este universo é tanto mais ordenado quando mais os seus membros dependem até a última raiz de um Deus criador. Qualquer um tem no universo um lugar predestinado, qualquer um representa aquilo que quer a vontade divina, sem poder acrescentar nada a sua figura, sem poder se tornar diverso daquilo que é, sem poder evadir do seu próprio ser. Superar-se, andar além do poder que Deus destinou a qualquer uma de suas criaturas, constitui o pecado por excelência: o orgulho, que precipita quem lhe é presa pela desordem, fora da criação divina, e o faz cair entre as mãos do demônio.

Aqui também, a concepção cristã do pecado como ruptura da lei divina se encontra com a concepção grega da desproporção, do orgulho, segundo o qual todo homem que exagera do poder de que dispõe e ultrapassa os seus limites, é imediatamente castigado pela sua temeridade com a destruição da sua potência.

Querer ser mais do que se é, exclui o homem da ordem universal. Todos os abusos de poder são imediatamente punidos: qualquer um que infrinja os limites da condição humana para erigir-se em super-homem, ou Deus se subtrai a esta harmonia.

Esta concepção foi demolida no Renascimento. Por difícil que seja em poucas palavras este prodigioso movimento, o mínimo que se possa dizer é que as influências aristotélicas e cristãs, que com tanta força se exercitaram no medievo, se atenuam, e terminam em certos casos por desaparecer. A escola de Pádua permanece sim fiel a Aristóteles, mas o aristotelismo que essa divulga não há mais nada a ver com aquele grego e tomista. É assim fortemente colorido de averroísmo, que se sofre para reconhecer. O lugar de Aristóteles vem tomado por Platão, ou melhor, por sua transposição neoplatônica, e mesmo o aristotelismo padovano não é mais que um neoplatonismo camuflado, propriamente como o averroísmo do qual sofreu influência. Do Renascimento em diante, não existe mais um só filósofo peripatético de relevância.

Assim também, a estrutura solidamente campesina da fé cristã se altera, e se deixa invadir por elementos que lhe separam as robustas relações estreitas entre a sobrenatureza e a natureza. Enquanto a natureza, no sentido medieval do termo, é o conjunto dos seres criados reunidos na criação e concretamente submetidos ao Criador, a natureza, no sentido novo do termo, se torna abstrata e degenera em naturalismo, vale dizer em uma doutrina que subtrai o universo e a conduta humana aos imperativos da lei divina transcendente.

Privada do seu substrato natural, a fé cristã se transforma: perde o seu caráter carnal e se imanentiza; é muito mais pensada que vivida, transformando-se em puro fideísmo. Certo, o homem do Renascimento permanece um crente, mas a sua convicção se mistura com todas as elucubrações sobre o universo, e se fecha em si mesma, e rompe todas as relações que o medievo havia solidamente estreitado entre a filosofia, campo da prova, e a teologia, campo da revelação. Escrevia Poggio Bracciolini do seu amigo Lorenzo Valla: “Ele condena a física de Aristóteles, destrói a religião, professa ideias heréticas, despreza a Bíblia. E não há, talvez, professado que a religião cristã não se funda sobre provas, mas sobre fé, superior a toda prova?”. Como se vê, o Renascimento rompe com Aristóteles e com a teologia cristã tradicional.

As duas fraturas são paralelas, e se reencontram, em graus diversos, em todos os espíritos da época: o homem do Renascimento não considera o mundo como um cosmos criado e resgatado por Deus, mas se coloca fora deste mundo que examina só que mais na sua dimensão puramente mundana.

Não deixemos nos enganar por metáforas que se empregam muitas vezes falando deste período histórico, segundo as quais o Renascimento teria substituído com o antropocentrismo o teocentrismo medieval. A imagem do “centro” é antes falsa. Melhor aquela do cerco: para o homem medieval, o ciclo do real vai de Deus como princípio a Deus como fim, passando pelos seres finitos, naturais e sobrenaturais. Este acordo circular é agora rompido: o homem se encontra no exterior do ciclo da realidade: não é mais um ser no mundo, mas um ser fora do mundo, diante a um universo espoliado da profundidade natural explorada pelo aristotelismo e pela profundidade sobrenatural comunicada pelo cristianismo. O mundo do Renascimento é “desnaturalizado e dessacralizado”. Não está mais no mundo o princípio vital de que falava Aristóteles; não mais o fermento da graça como dizia S. Paulo: o mundo é agora um mundo nu, desencantado. Não se buscaram mais os traços da inteligência divina que lhe criou, nem as vias do amor divino que lhe resgatou. Pode ser somente mais um objeto de conquista para o homem, que se lhe coloca na dianteira como o patrão diante do escravo ou artista diante da matéria a modelar.

Uma similar mudança de concepção terá como consequência pratica imediata a substituição dos filósofos e dos teólogos, isto é aos contemplativos do medievo, dos homens práticos: os artistas, os artesãos, os guerreiros, os conquistadores: em uma palavra, os técnicos. E uma vez que, para assenhorar-se do mundo e imprimir-lhe uma forma é necessário conhecer-lhe a resistência e a maleabilidade, assim precisará descobrir-lhe as linhas de força, propriamente como se o mundo fosse uma máquina a construir; porque o mundo não é mais um organismo como o pensava Aristóteles, mas um mecanismo, do qual é excluída toda ideia de causa, no qual existem só mais fenômenos que se sucedem e os quais antecedentes e consequentes se revelam invariáveis a observação. Como sublinha Emile Bréhier, a nova concepção de mundo é uma daquelas que se realizam, não uma daquelas que se pensam. O homem renascentista do qual Maquiavel analisa o comportamento é o primeiro homem faustiano: “Im Anfang, war die Tat!”. Se pode também dizer que é o primeiro marxista, se é verdadeiro que não se trata mais de conhecer o mundo, mas de muda-lo, como disse o profeta do comunismo.

Com extraordinária agudez, Maquiavel institui este aspecto novo do homem que nasce sob os seus olhos sobre o cenário da história; por isto, ele volta às costas resolutamente aos filósofos do Renascimento que permaneceram prisioneiros do velho esquema do universo, como Nicolau de Cusa e Campanella, e adota a nova visão da natureza, porque não quer versar o vinho novo, do qual vê a fermentação, nos velhos odres do passado. É a estrada dos grandes capitães, dos grandes chefes políticos e dos grandes artistas.

Para Maquiavel, como para os seus contemporâneos cônscios do advento do homem novo, não existe mais um universo harmonioso, articulado nas suas partes por Deus criador e salvador, mas existem de uma parte os homens, e da outra um mundo que os homens podem impunemente violar, contanto que sejam suficientemente inteligentes e astutos. Por liberdade, ele não entende mais, contrariamente ao medievo, a possibilidade de fazer o bem e evitar o mal, mas – vejam os “Discursos” – o poder de dominar um mundo tornado plástico e maleável, banal e profano, e tal que a razão lhe descobre só mais matéria perceptível com os sentidos. Fora deste mundo material, nada além que um distante sobrenatural, flutuante como balão sem amarras. Não que Maquiavel seja um ateu no sentido moderno do termo: ele permanece unido à fé tradicional, mas esta não tem mais a possibilidade de encarnar-se no mundo novo que ele descobriu. Por isso, poderá bem escrever o mesmo  uma exortação à penitência ou um discurso moral – é o título de uma das suas prosas – quanto ao regulamento para uma sociedade dos prazeres – é outro título. Maquiavel morrerá no seio da Igreja: escreve o seu filho Pedro a Francisco Nellio, advogado florentino em Pisa, em 22 de junho de 1524: “Se deixou confessar pelo frade Matteo, que lhe fez companhia até a morte”. E é tudo: Maquiavel morre fiel a uma instituição, nada mais. Não imita nem sequer a fé, como pensa Abel Le Franc de Rabelais: simplesmente, vive em dois mundos diversos, separados por diafragmas de fecho hermético. O conhecimento humano do mundo não está para ele integrado pela fé cristã, e está não se apoia mais em modo vital sobre o primeiro. Pratica, como os averroístas do seu tempo, a doutrina da dupla verdade: verdade religiosa e verdade profana, independentes uma da outra. A sua atitude é fideísta: ”credo quia absurdum”, e não “credo ut intelligam”. Razão e experiência não conduzem mais aos limiares do mistério sobrenatural, e isto não é um prolongamento das suas pesquisas. O verdadeiro mundo terrestre é aquele da ação, o verdadeiro mundo celeste é aquele da fé irracional, sentimental, afetiva, contida nas instituições e nos ritos da Igreja. Maquiavel lhes adota ambas, sem descobrir mais o seu ligame, como acontece com a maior parte dos seus contemporâneos. Os dois mundos são dissonantes e Maquiavel se lhes adapta, como em outros lugares Montaigne, Hobbes e tantos outros.

Só que não basta mais fazer esta constatação, como a maior parte dos historiadores, ou simplesmente declarar insustentável e hipócrita esta atitude ambivalente, como Abel Le Franc. É preciso compreendê-lo, e não se compreenderá se não se emergir Maquiavel na atmosfera especificamente neoplatônica na qual afundam todos os espíritos do Renascimento submetidos à influência de Proclo. Para os neoplatônicos, como para Platão, existem dois mundos que coexistem sem penetrar-se alternadamente: o mundo inteligível e harmonioso, e o mundo material, desordenado. Mas enquanto Platão falava como poeta do mundo sensível como de uma degradação do mundo das ideias ou como de uma sombra, os neoplatônicos o consideravam um amontoado de partes exteriores umas as outras, e privadas de qualquer princípio organizativo. A matéria é para eles completamente indeterminada: é o mal, ou ao menos, como considera Proclo, a ausência de qualquer consonância, acordo, harmonia.

O homem é então colocado em um universo radicalmente marcado pelo sigilo da dualidade: aqui embaixo um mundo dissonante, terrestre, lá em cima um mundo harmonioso, celeste. Com o espírito pertencendo ao primeiro, com o corpo ao segundo. Existem apenas duas atitudes possíveis, propriamente aquelas que adotam os homens do Renascimento segundo as suas inclinações: ou fugir o mais que possível do mundo terrestre e refugiar-se naquele da especulação cerebral (e é o que fazem muitos filósofos, como Marsilio Ficino, Nicolau de Cusa e Campanella), ou recusar o mundo celeste, ou pelo menos encerra-lo em uma silenciosa solidão, e adaptar-se ao mundo terreno com a firme intenção de se fazer um lugar, em meio às divergências.

Depois, há muitos espíritos que vão de um polo ao outro: Leonardo da Vinci vai do esoterismo a técnica. Certos filósofos reconstroem abstratamente um mundo ideal, mas são também médicos, astrólogos e ocultistas. Os humanistas edificam uma religião da beleza, mas são também os filósofos das ciências exatas. Maquiavel, de sua parte, se lança com avidez sobre o mundo terrestre, pronto porém a conservar para si uma saída de segurança para o mundo celeste, com aquela extrema prudência que o caracteriza, e o senso do cálculo que constitui o fundo do seu caráter.

Todo o gênio de Maquiavel está no haver compreendido o significado desta passagem de um mundo unificado a um desarticulado, e de haver-lhe tirado as consequências. Maquiavel colhe admiravelmente a causa desta imensa transformação; o seu olho exercitado o aferra a primeira vista: se o mundo é desarmônico, é porque o próprio homem se quebrou, e os componentes da sua natureza, talvez ainda organizados por um aristotelismo e um cristianismo difundido e passado pelos costumes, se separaram um do outro. Na realidade não é só a fé que se isola no homem do Renascimento e que, sob o aspecto de um fideísmo desencarnado, se separa da natureza humana, a sua volta degradada em naturalismo, mas é o homem concreto, aquele cotidiano, o homem da estrada, por assim dizer, que se divorcia de si mesmo. O homem todo de uma peça que o medievo conheceu, cede o lugar a um homem as quais extremidades espirituais e vitais se separaram. O anjo que habita no homem sob o aspecto do espírito, contempla de agora em diante de fora a besta que habita no homem sob o aspecto das paixões e dos instintos: uma tríplice ruptura divide o homem de cima abaixo. Não existe mais comunicação orgânica entre o crente, o ser racional e animal. Até um pouco antes, este homem conseguiu superar as contradições da sua natureza, sublimando-lhe em uma arte de viver inspirada pelo aristotelismo e cristianismo: agora, a invasão neoplatônica eliminou esta possibilidade.

Picollo della Mirandola o disse perfeitamente no seu famoso discurso sobre a dignidade do homem. Diz o Criador a Adão: ”Eu te coloquei em meio ao mundo para que tu possas mais facilmente olhar-te entorno e ver aquilo que o mundo encerra. Fazendo de ti um ser que não é celeste nem terrestre, quis dar-te o poder de formar-te sozinho: tu podes descer ao nível das bestas e pode elevar-te até se tornar um ser divino”.

Todas as filosofias da época recusam a concepção unitária do homem: a razão humana é autônoma, e não tem nada a ver com o corpo, matéria vil. A razão é divina, ou participa do divino, e pode ser introduzida nos mistérios das realidades superiores que a sua natureza lhe aparenta.  Lhe vem que as paixões do corpo, não mais reguladas pelo espírito presente na carne, tem livre curso. É o famoso adágio de Pascal: “Quem faz o anjo, faz a besta”. Encontra-se com dificuldade outro período da história em que a cultura do espírito em todos os seus aspectos, normais ou aberrantes, coincidiu de tal modo como a pior dissolução dos costumes. Um exemplo é a corte pontifícia. Maquiavel não faz outra coisa que apropriar-se desta concepção do “homem duplex”. Escreve: ”É feliz, vale dizer chegar a perfeição do seu ser, quem sabe se governar bem segundo a qualidade e a condição dos tempos”. Mas o seu trecho de gênio está no ter invertido os termos, e no ter entendido que as pólvoras do esoterismo que tantos dos seus contemporâneos respiravam com delícia dos manuscritos da antiguidade decadente não valiam um denário. Também para Maquiavel o homem é duplo: tem a razão, e tem o animal no homem, mas é o animal que nele está que o coloca em contato com o real. A característica da razão não é aquela de voar sobre o reino das quimeras, deixando  as paixões e instintos animalescos irem embora por sua conta, mas ao contrário é a sua tarefa segui-los para fazer de modo com que atinjam o fim, e conferir a elas o máximo de potência com as técnicas sapientes inventadas ad hoc.

Assim, estamos no centro do pensamento de Maquiavel. É o fim da inteligência aristotélica e cristã que põem o fim ultimo da vida humana no bem supremo, Deus: o bem supremo, Deus, convida a vontade a aproximar-se o mais possível, harmonizando de vez em quando o mundo  material e o espiritual. É o fim da razão, no sentido antigo e medieval, que desvela ao homem a sua natureza de animal racional e as suas funções hierarquicamente organizadas, e que ilumina a vontade encarregada de realizar a arquitetura ordenada. A razão se encontra na presença de um animal que manifesta os seus desejos, as suas aspirações, os seus amores e os seus ódios, e que deseja apenas lhes satisfazer. Mas como satisfazer plenamente um ser que não tem mais fins próprios e que é arrastado por uma aspiração ilimitada? Privado do seu bem sobrenatural, o homem não é outro que um apetite impreenchível. O animal se embate nos seus limites: rejeitado, para; alimentado e saciado, depois de ter satisfeito outros desejos, repousa. No entanto, o homem, por mais profunda que tenha sido a sua queda, conserva os traços da sua natureza, e deseja ainda realiza-la e chegar ao bem supremo (2).

Mas, já que esta estrada lhe é impedida, seguirá a sua animalidade com uma só palavra de ordem: sempre mais. O homem de Maquiavel não tem outro objetivo que o poder, e a definição de poder é sempre mais. O poder é como um gás, escrevia Simone Weil, parafraseando Tucídides: se dilata ao infinito até que não encontra um obstáculo. Assim todo o problema de Maquiavel, ou o seu único problema é este: em que modo o homem, que não é outro que poder, possa estender este poder sem perdê-lo. A resposta: elaborando uma técnica racional do poder que lhe impeça de se dissipar.

Maquiavel vê o homem na sua duplicidade e age exatamente como um engenheiro. A razão do engenheiro se encontra diante das forças materiais, que se trata antes de tudo de conquistar e depois de utilizar de maneira que não escape mais. É também o problema de Maquiavel. O engenheiro é um maquiavélico incônscio, Maquiavel é um engenheiro de ânimo humano sem o título oficial.

Para chegar ao escopo, ele incitará até ao limite extremo da investigação a análise do poder, e começara a libera-lo de todas as suas impurezas, O poder, por primeira coisa, não é nada além que poder em estado puro, que tem como fim apenas si mesmo. Não se é poderoso para gozar do bem estar, ou das mulheres, ou dos prazeres, e assim vai, mas se é poderoso apenas para revelar o próprio poder. Na história, Maquiavel vai pesquisar todos os exemplos de poder e perscruta a fundo Tito Lívio. Roma antiga, arquétipo do poder, lhe fornece material inesgotável que lhe permite definir como o poder se conquista, se conserva e se perde.

E como engenheiro que aplica do exterior a sua inteligência as forças materiais, ele termina por ver no poder o puro esqueleto quantitativo, que lhe dá a exata medida. Lendo os conselhos de Maquiavel, se é notável a importância que ele dá ao “mais” e ao “menos”. Trata-se de chegar a um dado ponto estabelecido pelo cálculo: às vezes é preciso matar, mas não muito, salvo exceções, se “a grandeza do delito lhe cobrir a infâmia”.

Todos os modos de agir do homem devem ser pesados, contados, anatomizados, como as coisas, porque o homem é uma coisa, e também o Príncipe é por si mesmo uma coisa calculada pela razão técnica, se quer permanecer príncipe. Napoleão um digno aluno de Maquiavel quando escreve: “Para mim, não existem pessoas, mas apenas coisas, com o seu peso e as suas consequências” e acrescenta “Eu sou o maior escravo dos homens, porque meu patrão é a necessidade, e a necessidade não tem coração”. Em outras palavras, para o homem-razão, o homem animal é apenas um mecanismo.

O disse Maquiavel mesmo na famosa carta de S. Cassiano: “Coloco fogo na minha lente de relojoeiro, pego delicadamente com os dedos as minhas pequenas agulhas, desmonto e remonto as pequenas rodas, examino as minúsculas pernas, perscruto os rins nervosos de todas as molas da alma humana e a faço funcionar sob os meus olhos, como funciona em todos os homens”. Naturalmente, não nega a possível presença do caso e da sorte nos acontecimentos: mas se trata, para o Príncipe que quer permanecer tal, de prevenir-lhe e de dar-lhe reparo antecipadamente, construindo mecanismos que valham para remediar o vir se tornarem menores aqueles que deveriam funcionar.  Pela primeira vez na história da humanidade, a conduta do homem é considerada como um sistema de reflexos mecânicos que permitem quase sempre previsões infalíveis.

Enfim, a razão do homem, no aplicar-se a objetos e situações puramente mecânicas, torna-se também ela, um mecanismo. Não existe outra forma de inteligência para Maquiavel senão a do cálculo. Descartes dizia que a sua física era toda geometria: antes dele, Maquiavel poderia afirmar que a sua política era toda matemática, com os sinais fundamentais: mais, menos, igual. De resto, para colher no homem apenas os aspectos quantitativos, ocorre evidentemente que a razão que lhe colhe seja ela própria completamente matematizada e mecanizada. Pode-se dizer, sem cair na caricatura, que Maquiavel vê no “homem duplex” o mecanismo da razão que age sobre aquele da paixão e dos instintos, e a sua justaposição que age por sua vez sobre a máquina do mundo.

Apenas deste modo é possível conservar o poder conquistado. Na equação da potência estão todos os riscos de perder o poder, e junto os estratagemas que servem a conserva-lo: os primeiros com o sinal positivo, os segundos com o sinal negativo. Resta a fazer a operação, e o resultado será sem erro.

Maquiavel o repete continuamente, e acrescenta, com a habitual e ardente frieza, que “é preciso dar ao povo apenas os resultados”.

Ele não é então, de modo nenhum, o tecnocrata puro da política que muitas vezes se compraz em imaginar. As suas técnicas se fundam em uma concepção do homem e do mundo dissonante e dualista bem determinada. Basta lê-lo atentamente para se convencer disto. Quando se diz que o interesse e o poder não tem necessidade de justificação e de fundamentos, que vão de si, que são fatos que o florentino simplesmente constata, se faz e se comete um erro sobre a inteligência do autor de “O Príncipe”. Maquiavel tem a frente um tipo de homem totalmente novo, ávido de apenas poder sobre os outros homens e sobre coisas, a qual estrutura precede todas as técnicas que ele preconiza; operou diante deste tipo neoplatônico de homem a  própria ruína que Marx efetuará mais tarde na dialética hegeliana, com a mesma intenção: dominar os outros homens e o mundo.

É claro que um pensamento rigorosamente matemático como o de Maquiavel ignora as noções de bem e de mal. Em matemática, não existe bem nem mal, não existe nem sequer o verdadeiro e o falso no sentido próprio do termo, mas apenas exato ou inexato. Por isso Maquiavel é o pensador contemporâneo por excelência, em um mundo que anda de mãos dadas com a técnica: o seu pensamento não pode não suscitar escândalo, e é do nome de Nicolau Maquiavel que os ingleses tiraram o apelativo que dão ao diabo: “old Nick”.

É natural que esta rigorosa mecanização do homem e do mundo sob o governo de uma inteligência puramente quantitativa pareça satânica ao cristão. E ainda, o satânico de Maquiavel não está nisto, mas antes na sua concepção dissonante do homem e do mundo, que os seus cálculos metódicos se esforçam de reduzir e mascarar submetidos a relações de força. Satanás é na realidade o ser desagregado por excelência, porque deriva o seu ser de Deus, e de Deus se distanciou: não tem mais unidade interior, é dilacerado até no mais profundo. De Vigny lhe fez dizer:

Tão grande é a distância entre mim e mim,

que não entendo mais o que significa a inocência.

Satanás compreende somente o pecado, separação de si e separação de Deus, do qual depende todo o ser. Segundo os Padres da Igreja, a definição própria de pecado original é o escolher arbitrariamente uma parte do próprio ser em dano das outras, e subtrai-la ao domínio divino: “Com o primeiro pecado”, escreve um deles, “Adão se separou de si mesmo e dos outros”. Adão rompeu os ligames que o uniam como criatura a todas as outras e ao resto da criação no amor pelo Criador.

É exatamente a posição de Maquiavel, a qual concepção de homem e de mundo é a mais pessimista possível. ”Se pode dizer que os homens em geral são ingratos, inconstantes, falsos, vis, interesseiros… e o Príncipe que se baseia sobre suas palavras, sem tomar outras precauções, se arruinará… Demonstram-no todos aqueles que têm tratado da vida pública, e a história lhes oferece exemplos sobre exemplos: qualquer um que organize uma república e lhe ordene as leis deve por força supor que todos os homens são maus, e dão evasão à maldade de sua alma toda vez que podem fazê-lo livremente… Os homens jamais fazem nada de bom se não por necessidade”. De trechos como este se encontram as centenas na obra do Florentino.

O imoralismo de Maquiavel, cristalino e glacial, tem por consequência ao menos de colocar em guarda o homem politico contra os fumos do moralismo. Na realidade se existe um campo em que o fim justifica, na maior parte dos casos, os meios, é propriamente a política. O bem comum que o homem de Estado é encarregado de conservar comporta sempre uma forte dose de elementos “impuros” e a salvação de uma nação não é o resultado de uma esterilização de micróbios. O homem de Estado é muitas vezes induzido, em função do bem superior que vela, a ser cruel ou pérfido. Faz-se penalizar com a morte os autores de graves desordens, não é mais “imoral” que o cirurgião que amputa um membro em gangrena. Esconde-se de seus adversários as suas verdadeiras intenções, não “mente” mais que um médico que esconde de um paciente indisciplinado os verdadeiros escopos da cura. Sendo colocados fora do bem comum que lhes teria feito participar da vida da “Cidade”, estes opositores são apenas mais coisas a tratar como tais. Além disso, a prospectiva do homem de Estado deve ter em conta os numerosos fatores que fogem ao seu livre-arbítrio, e então a sua vontade, moral ou imoral: situação geográfica do país, desenvolvimento ou regresso demográfico, riquezas naturais, trocas comerciais com os povos vizinhos, e assim vai. A sua ação por isso é análoga às técnicas que têm por objeto realidades materiais, quando fere os representantes destas forças impessoalmente submissas ao seu governo, e não pode aplicar estreitamente os princípios que regulam as relações entre seres conscientes e livres.

Os antimaquiavélicos que se insurgem contra o maquiavelismo do homem politico são sempre os fariseus do maquiavelismo, quando desconhecem a enorme dose de realidade física que faz do lastro a arte de governar. O moralismo deles deriva de uma secreta ou confessada adesão ao culto do “animal grosso”, que erige as nações e os povos em indivíduos gigantescos dotados de liberdade e responsabilidade. Não são mais os singulares que eles sacrificam ao ídolo da pseudomoral, mas os grupos, as classes, os países e as raças. Impregnando de “moral” os meios físicos que são constritos a empregar, lhes justificam por sua vez sem alguma vergonha. O maquiavelismo que verbalmente repudiam desce as suas medulas como uma velha doença vergonhosa que lhes destrói e da qual se branqueiam os sepulcros. “A conquistar com o idealismo”, dizia Lênin dos seus interlocutores. O mundo de hoje é pleno destes “moralistas” que, como cupins, roem o tecido vital das nações, e cobrem de glória as ruínas que provocam.

Maquiavel, a grande fera solitária, era um cordeiro em confronto com estes insetos que se acreditam atletas da moralidade.

Maquiavel é também a antítese exata de Rousseau. Para ele, o homem é radicalmente mau, como se jamais tivesse sido criado e nem resgatado por Deus. Para o genebrês, o homem é radicalmente bom, como se não tivesse jamais pecado, como se fosse o próprio Deus.

A nossa época combinou as duas definições. Sob um rousseaunismo de direito, traduzido nas grandes palavras de liberdade, igualdade e fraternidade, se esconde na política um Maquiavel de fato que utiliza a influência hipnótica destas palavras em favor da vontade de potência dos asseclas do poder, indivíduos, grupos, nações. Rousseau dá a Maquiavel a boa consciência e a boa fé de que o Florentino faz escárnio, cobre as suas empresas com um involucro galvanoplástico de respeitabilidade. Não é mais em nome do poder que se colocam em ato divisões, conflitos, e até mesmo crimes, mas em nome da Justiça com letra maiúscula. O homem do qual Rousseau fez um ídolo esconde em si um demônio, o anjo de Rousseau se une com a besta maquiavélica. Disso lhe vem fora uma excelente mistura explosiva que há dois séculos, todas as revoluções utilizam despudoradamente. É-lhe símbolo a ficção nuclear, apresentada ao mesmo tempo como a chave que abrirá o paraíso terrestre, e como o instrumento da catástrofe absoluta desencadeada pela vontade de potência.

Nós não podemos escapar deste desumano dilema se não com um retorno ao humano. A conversão é simples e conjuntamente difícil. O homem não é nem bom nem mau, mas as duas coisas conjuntamente. O homem de Estado autêntico deve ter a missão de estabelecer com todos os meios um clima social tal que mesmo as potências do mal concorram para o desenvolvimento do bem. Uma sã política é a que faz coincidir o interesse, sempre pessoal, que subtrai o homem da comunidade se abandonado a si mesmo, com o dever que, quando exercite o seu onipotente domínio, absorve o homem na comunidade. Esta tensão é sem fim: o trabalho politico é sempre refeito, como o sudário de Penélope.

Para superar Maquiavel e Rousseau, existe uma só via: o recurso a qualquer poder transcendente e intemporal, mitológico ou menor, que somente ela pode transformar o mal em bem. Por isto os antigos diziam da política que é uma ciência divina. Sem as chaves de retorno da religião, o edifício social desmorona.

Notas

1 “Perficit”, diz Santo Tomás, e se poderia traduzir: levar ao máximo grau de perfeição e de maturidade, embora permanecendo, como princípio desta transformação, superior da natureza.

2 Ainda uma vez mais Picollo della Mirandola viu bem. No seu “Discurso”, Deus disse ao homem: “Vindo ao mundo, os animais receberam tudo aquilo de que tem necessidade… Tu ao invés pode se tornar grande e se desenvolver como quiser”.

Fonte: Fenomenologia da autodestruição (L’homme contre lui-meme), Noevelle Editions latines, 1, rue palatine, Paris, 1962

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