P. LE FLOCH: O CARDEAL BILLOT SOBRE O LIBERALISMO
Resumo da doutrina do cardeal Billot sobre o erro do liberalismo e as suas diversas formas, segundo a exposição do tratado sobre a Igreja.
O liberalismo em matéria de fé e de religião é uma doutrina que pretende emancipar o homem, mais ou menos, de Deus, da sua lei, e da sua revelação, e de emancipar também a sociedade civil de qualquer dependência religiosa, da Igreja, tutora, intérprete e mestra da lei revelada por Deus.
A emancipação de Deus, fim ultimo do homem e da sociedade, é o quanto antes de tudo persegue. E, para alcançar-lhe, fixa como primeiro princípio a liberdade o bem fundamental do homem, bem sacro e intangível, que não é absolutamente permitido violar com qualquer tipo de coação; por isso, está liberdade sem limites deve ser a pedra imóvel sobre a qual se organizarão todos os elementos das relações entre os homens, a norma imutável segundo a qual serão julgadas todas as coisas do ponto de vista do direito; então, será equânime, justo e bom, o quanto em uma sociedade, tiver como base o princípio da liberdade individual inviolada; iníquo e perverso todo o restante. Este é o pensamento da revolução de 1789, revolução de que o mundo inteiro ainda colhe os frutos amargos. Este é o objeto completo da Declaração dos direitos do homem, da primeira à última linha. Este, para os ideólogos, o ponto de partida necessário para a reedificação completa da sociedade no campo político, no campo econômico, e sobretudo no campo moral e religioso.
O tratado crítica, antes de qualquer coisa, o princípio geral do liberalismo, considerado em si mesmo e nas suas múltiplas aplicações. Depois trata do liberalismo religioso e das suas diversas formas (pp. 19-20).
Em um magnífico preâmbulo, em que se eleva a altura de Santo Agostinho no De Civitate Dei e de Bossuet no Discours sur l’Histoire universelle, e que se concentra na explicação e na aplicação da profecia de Daniel a Nabucodonosor, Padre Billot anúncia que seguirá, tratando do liberalismo, os poderosos espíritos do Século XIX que lutaram contra a perversidade dos princípios da Revolução, J. de Maistre, de Bonald, Ketteler, Veuillot, Le Play, o Cardeal Pie, Liberatore, etc. E lhe cita no curso da sua exposição. E com eles cita Charles Maurras, de quem apreciava a refutação do liberalismo em campo filosófico, político e econômico.
Os limites que estabelecemos nos permitem, nesta sede, apresentar apenas o esqueleto do raciocínio deste estudo, deixando a parte todo o esplendor do desenvolvimento, que poderia ser entrevisto apenas com uma tradução completa.
ARTIGO I
Enunciação e crítica do princípio fundamental do liberalismo (pg 21-43)
O princípio fundamental do liberalismo é a liberdade de toda e qualquer coação, não apenas daquela exercitada com a violência, e que diz respeito apenas aos atos externos, mas também da coação que provém do temor da lei e das penas, das dependências e das necessidades sociais, em uma palavra, dos ligames de qualquer gênero que impedem ao homem agir segundo a sua inclinação natural. Para os liberais, esta liberdade individual é o bem por excelência, o bem fundamental, inviolável, ao qual tudo deve ceder, a exceção, talvez, do quanto é requerido da ordem puramente material da cidade; a liberdade é o bem ao qual todo o resto é subordinado; é o fundamento necessário de toda construção social conforme a equidade e ao bem.
PARÁGRAFO I.
Crítica deste princípio em si mesmo
Este princípio fundamental do liberalismo é absurdo, contra a natureza e quimérico (pg 22-30).
1. Absurdo (Incipit ab absurdo), enquanto pretende que o bem principal do homem esteja na ausência de qualquer ligame capaz de entravar ou limitar a sua liberdade. O bem do homem, de fato, deve ser considerado ou como um fim ou como um meio para alcançar este fim. Ora, a liberdade não pode ser um fim em si e o sumo fim, porque não é outro que um poder ou potência operativa, porque todo poder ou potência é em vista da operação, e porque toda operação, nesta vida, consiste completamente na persecução de um bem real ou aparente. Então, a liberdade não pode ser para o homem o seu bem considerado como um fim. De outra parte, essa não é nem sequer um bem considerado como um meio para alcançar a um bom fim, se não com a condição de ser contida por certos freios, e esta é a ruína pura e simples do princípio do liberalismo… ao menos em admitir ou que a liberdade, na vida presente, é infalível, ou que precisa sempre deixa-la fazer, qualquer que sejam os seus defeitos.
2. Contra a natureza (in ea progreditur quae evidentiori naturae intentioni contraria sunt), enquanto pretende que tudo deva ceder o passo ao bem da liberdade individual, que as necessidades sociais multiplicaram os obstáculos a esta liberdade, e que o regime ideal para o homem é aquele em que reine a lei do absoluto e perfeito individualismo; porque este individualismo é absolutamente contrário a natureza humana. De fato, se existe uma coisa evidente e manifesta, é que a condição social é a lei da vida humana, como o provam a necessidade da sua própria existência corporal. «Aos outros animais, a natureza preparou alimento, vestimento de pelo, meios de defesa, como os dentes, os chifres, as unhas, ou ao menos a rapidez na fuga. O homem, invés disso, se encontrou criado sem que da natureza lhe tenha sido fornecido nada de similar; mas, em troca, foi provido de razão que o coloca em condição de preparar todas estas coisas com as suas mãos; e já que um homem sozinho não é capaz de preparar tudo, e se fosse sozinho não saberia assegurar nem sequer a si mesmo os bens que lhe permitem manter-se em vida, lhe segue que, por natureza, o homem deve viver em sociedade. Além disso, em todos os outros animais é imita uma natural capacidade em discernir quanto é a eles útil ou nocivo. Assim, o cordeiro sente instintivamente no lobo um inimigo. Por uma capacidade análoga certos animais sabem distinguir naturalmente as plantas curativas e também o quanto é necessário a eles para viver.
«O homem, invés disso, conhece aquilo de que precisa para viver, mas apenas em geral. Assim, com a sua razão pode alcançar, através dos princípios universais, o conhecimento das coisas particulares necessárias a sua vida. Mas não é possível a um homem, sozinho, atingir com a sua própria razão todas as coisas desta ordem. E então, necessário que os homens vivam juntos, para ajudarem uns aos outros, para dedicarem-se a pesquisas diversas em relação com a diversidade dos seus talentos: um, por exemplo, a medicina, um outro a isto e um outro aquilo. S . Tommaso, De regimine principum, libro I, cap. I).
O insensati sophistae, escreve Padre Billot, uis vos ita dementavit, ut ad naturam continuo appellantes, contra naturam talia et tam enormia peccetis?», «Ó sofistas insanos, quem vos fez sair da razão, que, embora chamando-lhes continuamente a natureza, pecais tanto e assim grandemente contra a natureza?».
3. Quimérico
1º Porque não combina em nenhum modo com a realidade:
Supõe, na origem da sociedade um pacto social. Onde o viu?
Supõe o livre ingresso de qualquer um na sociedade. E ainda mais rigoroso.
Supõe que todos os homens são feitos exatamente sobre o mesmo modelo – absolutamente iguais -, o homem abstrato reproduzido milhões de vezes sem notas individuantes. Onde está? «Aplicais o contrato social, se vos parece bom, mas aplicai-lo somente aos homens para os quais ele foi fabricado. São homens abstratos que não pertencem a nenhum tempo e a nenhum país, embora entidades florescidas da batuta metafísica» (Taine, La Révolution, tomo I, libro II, cap. II).
2º porque tende a destruir diretamente aquilo que quer proteger: a liberdade individual.
Se a coisa é evidente no caso das minorias, tiranizadas pelo número, não é menos certa para a maioria, que se deixam conduzir, não pelo «juízo autônomo de qualquer um dos seus membros, mas pelos agitadores, pelos violentos, das oligarquias nascidas do individualismo, que as subjugam e que se lhe servem como de um instrumento de domínio com o fim de seus interesses privados e da sua ambição» (pg. 29-30).
PARÁGRAFO II
Crítica do princípio nas suas aplicações as coisas humanas.
É preciso notar que ele não é aplicável integralmente (o mal integral não existe), mas que, na medida em que é aplicado, comporta duas consequências:
1º A desagregação e a dissolução de qualquer organismo social, a supressão de qualquer sociedade menor, natural ou conatural, distinta do Estado ou que não receba desse a sua lei, operante no campo doméstico, naquele econômico e naquele político.
Isto se prova:
a) A priori, o individualismo liberal permite a existência de uma só sociedade: aquela que é derivada do contrato social.
b) A posteriori, com a guerra feita em primeiro lugar a família (é a «delenda Carthago» dos revolucionários), da qual se destruiu progressivamente o fundamento, isto é o matrimônio (com a instituição do contrato civil, depois do divórcio, em espera da união livre), e ao memo tempo a autoridade (com a supressão da liberdade testamentária, da liberdade de ensinamentos e através das leis de sucessão); com a guerra feita, em segundo lugar, e com um sucesso completo no primeiro golpe, as corporações, com o pretexto de proteger a liberdade individual. Esta «liberdade do trabalhador gera a praga da sociedade moderna, o proletariado, isto é a existência de uma classe numerosa privada de qualquer propriedade e que vive em um certo sentido em um estado de indigência hereditária» (Le Play, Réforme sociale, tomo I).
2º A constituição de um Estado despótico, absoluto, irresponsável, que extingue todas as liberdades reais e absorve todos os direitos, sem que exista algum limite a sua onipotência e ao seu arbítrio.
«Como os órgãos do corpo físico não são as moléculas e os átomos, mas as articulações e os membros, do mesmo modo os órgãos do corpo social não são os indivíduos, ma a família, a corporação e a cidade. Se lhe supomos desorganizadas no seu próprio organismo, lhe deriva naturalmente que todas as liberdades reais desaparecem. A razão disto é evidente: sobre estas monadas dissociadas do individualismo, permanece apenas este enorme colosso constituído pelo Estado onívoro, que, tendo desabado debaixo dele cada organização e cada autonomia, absorve em si toda força, toda potência, todo direito, toda autoridade e se torna o único administrador, procurador, instituidor, preceptor, educador e tutor em espera de se tornar o único proprietário e possessor. E que coisa lhe resulta, de graça, se não uma monstruosa escravidão?» (pp. 35-36).
PARÁGRAFO III
A respeito da religião, o princípio do liberalismo essencialmente anti-religioso (pg. 38-43).
Esse se ergue diretamente contra Deus. Persegue completamente a destruição do culto de Deus, da religião de Deus, da lei de Deus, e também da noção de Deus, com o pretexto de salvaguardar a liberdade em campo politico e econômico.
1. Prova a posteriori: a história da Revolução Francesa, a qual característica é aquela de ser «satânica na sua essência» (de Maistre, Du Pape, Discorso preliminare). O liberalismo é o grande princípio da Revolução Francesa.
2. Prova a priori: Deus e Nosso Senhor Jesus Cristo constituem o grande obstáculo e a liberdade revolucionária e ao despotismo do Estado, seu corolário. A tal ponto que a destruição de Deus, do seu culto, da sua religião, da sua lei, do seu nome e do seu conceito, não é apenas um artigo do programa, mas o próprio programa e o fim ao qual todo resto é ordenado como meio. «O pretexto é a liberdade, o códice é o contrato social, o meio é a demagogia; mas a razão ultima é a constituição de um Estado ateu e enorme, arbitro supremo de todos os direitos, ditador onipresente do justo e do injusto, do lícito e do vetado, graças ao qual são abolidos para sempre o nome e o culto infame a Deus. É a isto a que tudo é dirigido, a que todo o resto é ordenado como meio: e a destruição da família, e a destruição da corporação, e a destruição da liberdade tanto municipal quanto provincial, de modo que, enfim, permaneça em pé apenas a potência do Estado ímpio, fora do qual ninguém poderá, sobre toda a terra, mover uma mão ou um pé» (pp. 41-42). «Nós queremos organizar uma humanidade que possa prescindir de Deus» (Jules Ferry). «A partir da Revolução estamos em revolta contra a autoridade divina e humana, com a qual, com um só golpe, regulamos um terrível projeto em 21 de de janeiro de 1793» (Clemenceau).
ARTIGO II
As diversas formas do liberalismo em matéria religiosa (pg. 44-63)
Seguindo o Padre Liberatore (cfr. La Chiesa e lo Stato), se podem reconduzir a três: o liberalismo absoluto, o liberalismo moderado e o liberalismo que se poderia chamar o liberalismo dos católicos liberais. As três formas tem em comum o querer emancipar a ordem civil da ordem religiosa, isto é o Estado da Igreja. Mas a primeira forma quer o domínio do Estado sobre a Igreja; a segunda, a plena independência do Estado a respeito da Igreja, e da Igreja a respeito do Estado; quanto a terceira, também ela busca esta independência, não como uma verdade de direito, mas como, em prática, a melhor condição de existência e de vida.
PARÁGRAFO I.
Liberalismo absoluto
A primeira forma do liberalismo, o liberalismo absoluto, leva ao materialismo e ao ateísmo (pg. 44-48).
Concebe o Estado como a potência mais elevada a qual é dada a humanidade de poder crescer em seu progresso social. Não só o Estado não tem nada acima de si, mas não tem nada que a ele se iguale ou que a ele não seja submetido. É a potência suprema e universal, a qual nada pode resistir, a qual tudo deve obedecer.
Esta é a teoria que rege, mais ou menos, as constituições modernas da Europa, nascidas da Declaração dos direitos do homem. Não só a Igreja perdeu toda proeminência a respeito do Estado, ela não tem nem sequer mais o seu caráter de sociedade perfeita e independente.
Ora, esta é a negação implícita da espiritualidade e da imortalidade da alma; em última análise, é materialismo. O Estado, de fato, pode ser concebido como potência suprema somente com a condição de reconduzir todo o destino do homem a sua vida orgânica e material.
Além disso, existe a negação de Deus; de fato, se Deus existe, é preciso reconhecer absolutamente que é o patrão supremo e o legislador universal; é preciso reconhecer que a regra suprema da ação, seja na vida privada que naquela pública, são os princípios imutáveis da moral impressas por Deus na alma humana, e não o Estado, nem a opinião pública; é preciso reconhecer, enfim, que os poderes mais elevados tem só um direito subordinado de comandar, assim que governam os povos segundo a vontade de Deus, a qual são primeiramente submissos.
PARÁGRAFO II.
Liberalismo moderado
O liberalismo moderado quer a emancipação da ordem civil em respeito a ordem religiosa, do Estado a respeito da Igreja, assim que o domínio do Estado e aquela da Igreja são considerados completamente separados e separáveis, e a Igreja e o Estado são considerados nos seus respectivos domínios como plenamente independentes.
Um tal sistema, já abundantemente incoerente, é:
a) praticamente irrealizável;
b) teoricamente absurdo. Se reduz, se não a um ateísmo formal, ao menos a um maniqueísmo certo, a um dualismo absurdo, seja considerando o próprio homem que considerando o princípio e o fim do homem.
1) Considerando o princípio e o fim do homem: de fato, se existe para o homem um só princípio e um só fim, este princípio e este fim: ou o Estado (e recaímos no liberalismo absoluto), ou Deus (e aqui estamos no catolicismo).
2) Considerando o homem: de fato, esta separação absoluta do civil e do religioso supõe nele duas almas, dois espíritos e duas consciências. Se existe só uma alma, um espírito e uma consciência, existe necessariamente subordinação do civil ao religioso ou do religioso ao civil.
Livre Igreja no livre Estado, é a fórmula do liberalismo moderado. «Mais nenhuma aliança entre a Igreja e o Estado: a Igreja não tenha mais nada em comum com os governos, os governos não tenham mais nada em comum com a religião, não se misture mais nos respectivos negócios. A pessoa professe a seu modo o culto que escolhe segundo o seu gosto; como membro do Estado não tem um culto próprio. O Estado reconhece todos os cultos, assegura a todos uma igual proteção, garante a eles uma igual liberdade; isto é regime de tolerância; e é conveniente que o proclamemos bom, excelente, salutar, que o conservemos a todos os custos, que o ofereçamos constantemente». Isto é o que Louis Veuillot chamou a Ilusão liberal.
Mas querer que o fim da cidade e o fim da religião sejam divergentes, querer que os poderes encarregados de governar a persecução de um e de outro fim sejam separados, significa, implicitamente, negar a unidade do princípio primeiro do mundo e afirmar que existe um criador das coisas espirituais e um criador das coisas temporais; que existe um deus que dirige o homem para a vida civil, e um deus que o dirige a vida religiosa; em uma palavra, que é necessário admitir, com os maniqueus, dois princípios, opostos um ao outro.
Da outra parte, o liberalismo moderado, separando a ordem civil da ordem religiosa, separa o cidadãos do cristão, o filósofo do crente, o homem público do homem privado, o politico do fiel, e lhe separa, não como dois beligerantes de que um quer a morte do outro, mas como dois vizinhos, do qual qualquer um segue a própria via, do qual qualquer um, ao mesmo tempo e regularmente, cumpre o seu dever, como se fosse movido todos os dois por coisas divergentes e contrárias de motores separados. Quem não vê que tal concepção é possível apenas com a condição de supor em um só e mesmo homem duas almas, um dúplice espírito, duas consciências realmente distintas ira deles, o uma ateia, o outra religiosa, o uma crente, o outra incrédula, o uma atenta as coisas temporais sem relação alguma com as coisas espirituais; o outro atenta as coisas espirituais e como existente fora deste mundo, no mundo da lua; o uma que serve César e a outra que serve Deus?
Enfim, de qualquer modo que se conceba esta independência recíproca dos dois poderes, ou esta função da livre Igreja no livre Estado, se cai em um novo maniqueísmo que, absurdo do ponto de vista teórico, é na prática impossível. Como imaginar que dois motores podem ser normalmente aplicados a um só e mesmo móvel, sem que exista entre eles qualquer subordinação? Só a subordinação permite evitar o movimento contrário e de manter a necessária unidade de direção. Os liberais moderados se lhe são bem feita a conta, e se virão constritos a admitir ou a subordinação do Estado a Igreja, ou a subordinação da Igreja ao Estado; ora, não puderam aceitar a subordinação do Estado a Igreja, porque teria significado renunciar ao princípio essencial e primeiro do liberalismo; constritos pela necessidade, e não podendo manterem-se neste equilíbrio de independência recíproca, tem então, como o liberalismo absoluto, posto a Igreja sob a dependência e o poder do Estado, todas as vezes que, a juízo deste mesmo Estado, um fim politico ou um interesse temporal parece exigi-lo.«A sociedade religiosa, dizia Portalis (Discours et travaux inédits), tinha que reconhecer na sociedade civil, mais antiga, mais poderosa, e da qual viria a fazer parte, a autoridade necessária para assegurar a união, e o soberano permaneceu patrão de fazer prevalecer o interesse do Estado em todos os pontos disciplinares em que se encontra misturado».
PARÁGRAFO III.
Liberalismo dos «católicos liberais»
Consiste na emancipação da ordem civil em respeito a ordem religiosa, do Estado a respeito da Igreja, considerada não como uma verdade de direito, mas como oferta, na prática, de um excelente «modus vivendi».
O liberalismo dos católicos liberais escapa de qualquer classificação, e tem só uma nota distintiva e caracterizante, aquela de uma perfeita e absoluta incoerência (pg. 55-63).
a) Esta incoerência é evidente no próprio termo «católico liberal», do momento que liberal implica «emancipação», católico implica «submissão».
b) E não menos evidente na oposição que os seus partidários põem entre princípios e prática (os princípios, que pretendem aceitar, são somente regras práticas de ação, que recusam precisamente admitir). O mesmo acontece na oposição entre conveniência de direito e utilidade de fato, por exemplo da colaboração da Igreja e do Estado, do qual admitem de direito a conveniência e do qual negam de fato a utilidade.
Com a incoerência, se pode dar como nota do catolicismo liberal a mania das confusões, por exemplo entre tolerância e aprovação.
A prova desta afirmação se pode tirar antes de tudo do próprio nome católico liberal. O católico, de fato, professa que o homem foi criado para este fim: louvar o Senhor, honrá-lo, servi-lo segundo a vontade divina, e assim salvar a própria alma; que tudo neste mundo não tem outra razão de ser que aquela de ajuda-lo a realizar este fim;que consequentemente é preciso colocar de lado a prosperidade na vida presente, se si pode obter, apenas com a perda da própria alma; é preciso fazer da vida presente uma preparação para a vida futura; é preciso subordinar os bens temporais aos bens eternos; é preciso, então, que o poder que preside as coisas temporais seja submisso ao poder superior encarregado por Deus, com a promessa de uma assistência perpétua, de procurar o fim eterno. Ora, o liberal é ligado aos imortais princípios de 1789, e o princípio revolucionário por excelência, disse Louis Veuillot (cfr. Illusion libérale, par. 33), «é isto que a educação revolucionária dos conservadores de 1848 chama a secularização da sociedade; é isto que a franqueza revolucionária do Siècle, dos Solidaires e do senhor Quinet, chama brutalmente a expulsão do princípio teocrático; é a ruptura com a Igreja, com Jesus Cristo, com Deus, com todo reconhecimento, com toda ingerência, e com todo desaparecimento da ideia de Deus na sociedade humana».
Esta afirmação é confirmada também pelo exame das razões adotadas pelos católicos liberais.
Eles distinguem entre os princípios abstratos e a sua aplicação: reconhecem, certamente, a união e a subordinação necessária entre os poderes; mas, dizem, outro é o objeto da especulação, outro quanto se realiza em concreto, assim, diferente das condições da teoria. Deste modo, pensam ter satisfeito a verdade, relegando-a ao mundo das abstrações. Mas estes princípios, ditos abstratos, considerando ou não a moram, constituem a norma dos atos humanos e a regra da boa operação, ou seja, da operação que, em uma sociedade é dirigida segundo as exigências do fim?
E, se são normas práticas, não é o máximo da incoerência admitir-lhe sem querer que venham ser aplicadas? Do fato que a ordem concreta das coisas se diferencia das condições ideais da teoria, lhe segue que as coisas concretas não terão jamais a perfeição do ideal, mas não lhe segue nada mais. Com o modo de argumentar dos católicos liberais, se provaria igualmente bem que os preceitos relativos as virtudes devem permanecer sobre o terreno puramente especulativo, porque a condição humana não lhe pode realizar perfeitamente. Também se poderia demonstrar que as ciências matemáticas não podem e não devem absolutamente serem aplicadas as artes, com o pretexto que o triângulo ideal, exato, geométrico, não existe em concreto ou porque a prova experimental contradiz sempre o rigor do cálculo.
Os liberais distinguem entre o direito e o fato, entre aquilo que deve ser de direito, e aquilo que é, de fato, útil a Igreja. A ouvi-los o regime da união sempre foi, de fato, danoso a Igreja. A Igreja jamais teve tantos males quando no tempo dos bispos com o foro externo, dos príncipes protetores, como atestam as lutas ininterruptas com os imperadores de Bizâncio, com os Césares germânicos, com os reis da França, da Inglaterra e da Espanha: «A Igreja perece pelos apoios ilegítimos que se quis dar. É chegado o momento, para ela, de mudar os princípios: os seus filhos lhe devem fazer sentir a necessidade. É preciso que renuncie a todo poder coercitivo sobre as consciências. Mais nenhuma aliança entre a Igreja e o Estado» (Louis Veuillot, Illusion libérale, par. 14). O remédio seria, então, apenas a liberdade.Mas, em primeiro lugar, se príncipes a priori enunciam uma ordem instituída e estabelecida por Deus, é impossível que seja útil para a Igreja negligenciá-la. Em segundo lugar, os inconvenientes que são assinalados provam apenas que o homem, pela sua perversidade, muitas vezes corrompe as instituições divinas, mas não que estas devem, por tal razão, ser rejeitadas e colocadas a parte. Em terceiro lugar, o argumento histórico peca por omissão: se limita a elencar os males do regime da união, sem dizer também os bens enormes que a Igreja obteve da proteção dos príncipes. Em quarto lugar, não diz nada dos males tão graves quanto numerosos que derivam normalmente do estado de separação, como lhe pode testemunhar a experiência atual. Em quinto lugar, nada mostra melhor a incoerência da argumentação dos católicos liberais, da sua conclusão última, que propõe o recurso a liberdade: a liberdade, pronta para o mal, predisposta a irreligião, é a causa de todos os males, e essa vem apresentada como remédio.
Os liberais retomam: indubitavelmente a união e a subordinação dos poderes são auspicáveis em si, mas são agora impossíveis, porque são repugnantes para o espírito moderno, e é inútil contradizê-lo; a prudência, então, manda aceitar o novo estado de coisas, seja para impedir um mal maior, seja para obter os melhores efeitos possíveis. Mas neste ponto se clareia uma incoerência ainda maior que as precedentes, porque tende a deslocar o problema. O problema entre os liberais e nós, de fato, não está no saber se, dada a malícia do século, é preciso suportar com paciência o quanto de nós depende, e trabalhar, ao mesmo tempo, para evitar males maiores e para fazer todo o bem que ainda é possível fazer; mas o problema é propriamente se convém aprovar esta condição social que porta o liberalismo, decantar os princípios que são o fundamento deste estado de coisas, promovê-lo com a palavra, a doutrina e as obras, assim como fazem os católicos ditos liberais.
PADRE HENRI LE FLOCH, C. S..Sp.
PARA CITAR ESTA TRADUÇÃO:
Padre Henri Le Floch “O Cardeal Billot sobre o liberalismo”, Cristianità. n. 24, Abril de 1977, trad. br. por Sim Sim Não Não, junho 2015,http://simsimnaonao.altervista.org/site/component/content/article/28-edicao-on-line-ano-i-n-02-junho-2015/26-o-cardeal-billot-sobre-o-liberalismo
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