P. CURZIO NITOGLIA: A CONCEPÇÃO POLÍTICA DE DANTE ALIGHIERI E O “DE MONARCHIA”
Padre Curzio Nitoglia
[Tradução: Gederson Falcometa]
Dante, em De Monarchia, é um um dos precursores do Príncipe de Maquiável. Esta frase pode surpreender, mas, se se estudar bem o problema, as coisas se fazem claras. Para Étienne Gilson, segundo Dante “O imperador não deriva o seu poder do Papa pelo fato que é diretamente submisso a Deus” [1]. Diante do ideal cristão de uma Igreja universal, o Poeta quer erguer o ideal humano gibelino ou cesarista de um império universal sobre a autoridade de um só imperador, que deveria desenvolver o papel que o Papa desenvolve na Igreja. O florentino toma da Igreja o ideal de uma cristandade universal e o laiciza. É o eterno problema, que retorna continuamente, em filosofia política, da relação entre o poder espiritual e o poder temporal. O “gibelino fugitivo” jogou habilmente citando sobretudo Aristóteles (mas é o aristotelismo averroísta o que ensina o Poeta, como o explica Gilson; além disso, Aristóteles, não conhecia o conceito de criação, de criatura-Criador, de fim ultimo sobrenatural, razão por que sua Política é pagã, e Santo Tomás, graças às luzes da Revelação, a completou e em algumas partes a retificou). Ora a sociedade tem necessidade de uma autoridade, e o próprio Santo Tomás havia dito que a melhor forma de governo é a de um só: a monarquia. “S. Tomás, todavia, estava assim longe de pensar em uma monarquia universal… e definia o rei como aquele que governa o povo de uma cidade ou de uma província em vista do bem comum” [2]. Em De Monarchia (liv. II), Alighieri afirma que o Império Romano, ainda subsistente no medievo gibelino, é um poder legítimo querido por Deus para o bem comum. Ora, o Papa se coloca igualmente como uma autoridade de origem divina. Então se dá o dilema de como acordar o Papa e o Imperador. O problema que se apresenta a Dante é saber se o poder vinha ao imperador imediata e diretamente de Deus, ou indiretamente e através do Papa (lib. III, 1). Nós já vimos de passagem como Dante resolve o problema, mas agora vamos vê-lo melhor. Contra o Papa, Dante invoca o rei Salomão, mediante cuja “santidade” (Salomão em verdade morreu em concubinato e politeísta) se julgam os Papas e a cujo serviço é mobilizado o cristianismo (aqui nasceu a lenda do Dante esotérico, exposta por Guénon; sendo Salomão o construtor do primeiro Templo de Jerusalém, ao qual se referem os iniciados e os maçons em geral, que têm como escopo a reconstrução do terceiro Templo, como… Sharon ou Nethaniahu). Além disso, os cristãos – segundo Dante – devem ao Papa não tudo aquilo que se deve a Cristo, mas só aquilo que se deve a Pedro. “É hábil a fórmula – comenta Gilson – usada pelo Poeta para limitar a extensão da obediência ao Papa: ‘tudo aquilo que se deve não a Cristo, mas a Pedro’. Propor esta cláusula como algo evidente significa fechar a questão no princípio, porque equivale a afirmar que existem privilégios de Cristo que nem Pedro nem os seus sucessores herdaram (…) equivaleria a excluir os privilégios de Cristo herdados por Pedro e pelos seus sucessores, e aquele próprio primado temporal que Dante se prepara para negar-lhes” [3]. Mas coloquemos em confronto Dante e Santo Tomás:
a) Dante (De Monarchia, III,3):
“O sumo pontífice, vigário de Jesus Cristo e sucessor de Pedro a quem devemos não aquilo que é devido a Cristo, mas só aquilo que é devido a Pedro”.
b) S. Tomás (De regimine principum, 1, 14):
“Ao Sumo Sacerdote, sucessor de Pedro, Vigário de Cristo, ao Romano Pontífice de que todos os reis do povo cristão devem ser súditos, como do próprio Jesus”.
Gilson comenta: “Todo o problema está condensado nestas duas frases, as quais atingem uma oposição quase literal, tanto, que não se pode fazer menos que perguntar se Dante, ao escrever sua frase, não se recordava da de Santo Tomás. De qualquer modo, as teses definidas nestas duas fórmulas estão em flagrante contradição. Ambas reconhecem a supremacia do poder temporal de Cristo; mas Santo Tomás afirma que Cristo transmitiu a sua dúplice realeza, espiritual e temporal, a Pedro e a todos os sucessores de Pedro, ao qual os reis do povo cristão devem, por consequência, ser submissos como ao próprio Jesus Cristo; para Dante, ao contrário, se Jesus Cristo possuía, como Deus, uma soberania temporal da qual não quis fazer uso, esta autoridade temporal foi elevada ao céu com Ele. Os Papas não a herdaram. Entre o Papa de Santo Tomás que detém o ápice dos dois poderes [mas não deseja usar, como Cristo, o temporal] e o Papa de Dante, excluído do controle de todo poder temporal, é necessário escolher: é impossível conciliá-los” [4]. Para Dante só Deus é o soberano do temporal e do espiritual, e o imperador deriva a sua autoridade unicamente de Deus: “ele deseja uma autoridade imperial que deriva a sua existência diretamente de Deus, não do Papa; que exercite um poder que seja fonte em si mesmo, e não a tenha na autoridade do Papa (De Monarchia, livro III, 4)” [5]. Gilson explica que, se visitar o mundo de Dante como pagãos equivale a visitá-lo como estrangeiros, viver no mundo politico (não o da Divina Comédia) dantesco como tomistas conduz a mal-entendidos, de fato: “aquilo que é próprio do pensamento de Dante é a eliminação da subordinação hierárquica que é essencial ao tomismo…Em S. Tomás, a distinção real das ordens funda e exige a sua subordinação; em Dante a exclui” [6]. Dante, além disso, atribui ao homem dois fins: um fim último na medida em que ele tem um corpo mortal, e outro fim ultimo na medida em que tem uma alma imortal. Para Santo Tomás é verdadeiro o contrário: o homem tem apenas um fim último: a beatitude eterna, que só se pode chegar graças à Igreja, fora da qual não há salvação. Por este motivo os reis devem ser submissos ao Papa, como a Jesus Cristo, do qual o Romano Pontífice é o Vigário. Para Dante existem duas ordens distintas não hierarquizadas, nem subordinadas uma à outra; para Santo Tomás as duas ordens distintas são subordinadas: ele distingue para unir. Assim como no caso do homem, composto de alma e corpo, existem duas realidades, uma temporal e uma espiritual, distintas uma da outra mas subordinadas a formar um só homem unum per se, e não uma unidade acidental, um unum per accidens, como queriam Platão ou Descartes, na qual apenas a alma seria homem, enquanto o corpo seria como um cavalo sobre o qual se senta o homem; assim também para o Estado, que segundo Santo Tomás tem como fim último fazer os cidadãos alcançar, graças a uma vida virtuosa, o gozo de Deus. Uma vez hierarquizados com rigor filosófico, os fins são também aqueles que presidem a realização dos fins por parte dos homens, porque aqueles a quem cabe o cuidado do fim próximo devem ser submissos àqueles a quem cabe o cuidado do fim último. “Portanto, há no tomismo autêntico um chefe supremo que dirige todos os outros chefes, precisamente porque ‘aquele ao qual cabe o cuidado do fim último se encontra sempre a dirigir aqueles que se ocupam dos meios ordenados ao fim último… Há uma oposição doutrinal entre Dante e Santo Tomás, e parece que isto não pode ser negado” [7].
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A ENCÍCLICA DE BENTO XV SOBRE DANTE:
IN PRAECLARA SUMMORUM (1921)
“Sabemos – escreve Chevalier – que para Dante entre o Papa e o imperador, isto é, entre as duas metades de Deus (Purgatório, canto XVI), entre estes dois sóis que devem iluminar duas estradas, a do mundo e a de Deus, existe recíproca independência… Mas, se permanece excluída toda subordinação entre as duas esferas (espiritual e temporal), é mantido e requerido explicitamente que haja coordenação. Dante não pode esquecer que a felicidade terrena é de qualquer modo ordenada à felicidade eterna (…). Se a lua é criada diretamente por Deus e emite os próprios raios e tem seu movimento, o sol fornece apenas o modo de iluminar melhor e com maior intensidade. Analogamente, o poder espiritual, que não recebe autoridade de que é dotado do poder espiritual, deve a isto o poder agir melhor, isto é, deve à luz da Graça (…). Dante amava o Papado (…) que não usurpasse a função dos outros (…), porém desejava que o Papado e o Império fossem independentes um do outro” [8]. A doutrina política de Dante, como se vê, não é ortodoxa; mas tampouco é a de Marsílio de Pádua ou de Ockham. Dante é um católico sincero do ponto de vista religioso, mas infelizmente gibelino do ponto de vista politico, o que é contraditório; é um caso análogo ao do “católico-liberal”. É o que explica, admiravelmente, Bento XV na sua Encíclica pelo sexto centenário da morte de Dante. “Na gloriosa estirpe dos gênios, que (…) fazem honra ao catolicismo (…) particularmente no campo das letras (…) ocupa um lugar particular Dante Alighieri… Na Divina Comédia (…) são exaltadas a SS. Trindade, a Redenção (…) cumprida pelo Verbo de Deus (…), a imensa bondade e generosidade da Virgem Maria, (…) a beatitude celeste dos eleitos…; enfim, entre o paraíso e o inferno, o purgatório: a demora das almas, que, uma vez consumado o período da expiação, veem o céu abrir-se diante de si (…). Ele chama à Igreja ‘a terníssima mãe’ (…), embora afirme que a dignidade do imperador vem diretamente de Deus (…). É verdade que pronunciou invectivas (…) ofensas contra os Papas (…). Mas se deve perdoar a um homem agitado pelas ondas de enormes infortúnios, que deixou escapar do coração ferido um juízo que parece ter ultrapassado os limites (…)” [9]. Eis explicado o dilema: como pode um Papa escrever uma Encíclica em honra de Dante, se realmente este não é completamente ortodoxo? Basta ler a Encíclica… e Dante.
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Notas:
[1] E. Gilson, Dante e la filosofia, Jaca Book, Milano, 1987, pag. 152, nota 2.
[2] Ibidem, p. 155.
[3] Ibidem, p. 169.
[4] Ibidem, p. 170.
[5] Ibidem, pp. 172-173.
[6] Ibidem, pp. 173-174.
[7] Ibidem, pp. 178-179.
[8] J. J. Chevalier, op. cit., vol. I, pp. 326-332.
[9] Bento XV, In praeclara summorum, 30 aprile 1921, in “Tutte le Encicliche dei Sommi Pontefici”, Dall’Oglio, Milano, 5ª ed., 1959, vol. I, pp. 738-744.
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