CARDEAL SIRI: A ALTERAÇÃO DA HISTÓRIA

Extraído do livro:
Getsemani
Reflexões sobre o Movimento
Teológico Contemporâneo
Cardeal Giuseppe Siri
Tradução: Gederson Falcometa
A cultura universal do nosso tempo, em todas as suas manifestações,  repercussões intelectuais e práticas, é dominada em profundidade e na superfície por uma orientação do pensamento e da sensibilidade que se esforça por se exprimir com a palavra “história” e seus derivados. Aquilo que cada vez mais se entende com a palavra “história” é uma noção ou uma realidade ou ainda uma qualidade variabilíssima que permite orientar o pensamento e o discurso, sobre a base deste mesmo mutável vocábulo, em diferentes direções, em modo que as coisas e os vocabulários não possam mais ter, nem no íntimo do homem, nem no discurso, um significado universalmente compreendido e admitido.

Não obstante falar de História ou de filosofia da história, de razão histórica, de consciência histórica, de sentido da história e de outras expressões com nuances derivadas da palavra “história”, pressupõe pelo menos que se admita um significado qualquer estável da noção “história”, significado que viria a constituir um critério geral, a saber um ponto de referência.
Já que para dar uma definição ou mesmo para fazer um simples esclarecimento explicativo de um evento ou de uma série de eventos e de fatos, se incertos ou sutis que sejam, é preciso ter um critério central, é preciso referir-se a um ponto qualquer de referência da linguagem e por meio dele; ponto de referência que não seja apenas suposto ou vagamente subentendido, mas que seja, – com todas as nuances que se queira – explícito e formulável. É uma fundamental necessidade do entendimento, uma necessidade de lógica elementar e de coerência requerida intimamente por cada homem, moralmente se não intelectualmente livre, e então em boa fé.
Isto vale tanto para a filosofia, como para a ciência, a metafísica, a teologia; isto vale para qualquer campo do pensar e do sentir.
Neste sempre mais extenso fenômeno de polivalência dos termos e dos vocabulários, se desenvolveu uma específica tendência que se poderia chamar o cume do “frenesi linguístico”: é um esforço para encontrar uma nova compreensão dos textos e dos fatos, e também para colocar e resolver problemas acerca da vida, da história, da alma, da fé, da origem e do fim último, baseando-se sobre considerações muitas vezes muito sofisticas e rebuscadas até ao absurdo, da linguagem, das línguas e dos vocabulários.
Como se verá quando tratarmos da hermenêutica, esta tendência tomou de vez em quando a aparência de uma nova gnose, de um esoterismo intelectual. Porém, apesar de o caráter do qual as vezes se revestem estes esforços e este método, caráter de um sagaz e pio desejo de objetividade, não se pode não ressentir um profundo mal estar como aquele que se prova diante a manifestação de uma grande desordem, de um grande desconcerto e de uma confusão em profundidade. Nós, realmente, vemos claramente que no esforço de colher e de explicar a realidade do mundo, do homem e da história através de uma semântica cada vez mais analisada e atormentada, se termina com perder de vista a verdadeira referência ao verdadeiro verbo interior do homem.
Portanto, é preciso ter em conta o fato que se chama “frenesi linguístico” que, cedo ou tarde, conduz a desagregação, em seio de qualquer empresa intelectual, espiritual e moral.
No conjunto das considerações acerca da história, nos tempos ditos modernos, às vezes se olhou para o homem da antiguidade, como totalmente desprovido de interesse intelectual ou espiritual pelo curso dos acontecimentos da terra, pela sucessão dos eventos e da sociedade. E isto, às vezes, por motivos filosóficos, sociológicos tendenciosos, e não em uma pura busca da verdade. Para entender aquilo que de realmente novo existe no vasto movimento acerca da história e para evitar também qualquer confusão às vezes provocada pelo “frenesi linguístico”, é utilíssimo referir-se antes de tudo aos significados tidos desde o começo da palavra “história”.
A palavra “história” (***) é antiquíssima. A sua origem se perde na misteriosa fonte sacra de onde surgiu a palavra humana e as línguas. Na remota antiguidade, se encontra utilizada com muitas nuances. No começo significava pesquisa – investigação – informação; e também o resultado da informação; a saber a segunda dos casos, significava um saber ou um conhecimento: Heródoto [1], Platão [2], Aristóteles [3], Demóstenes [4]. Em igual tempo era utilizada no sentido de relação oral ou escrita daquilo que se conhecia, daquilo que se sabia, daquilo que se tinha recuperado; a saber, no sentido do conto: Heródoto [5], Aristóteles [6], Plutarco [7][8].
De todos estas referências emerge claramente que o termo “história” era certamente utilizado com diferentes nuances, resumindo-se todas, porém, nas palavras de Aristóteles: “As investigações de quantos escrevem sobre ações humanas” (Retórica I, 4, 1360a), como também os próprios fatos referidos no seu concatenamento.
Do exame da totalidade desta informação antiga sobre a transmissão escrita dos fatos e dos acontecimentos ocorridos, como também a vasta literatura em que se fala da sorte dos povos, das intervenções dos deuses, dos destinos e das repercussões no futuro contraídas pelos atos do passado, se tem facilmente em conta algumas verdades úteis para compreender seja a antiguidade como os tempos modernos pelo que diz respeito a consciência, a história e as noções do sentido de história e da consciência de história; noções que penetraram e influenciaram notavelmente o pensamento teológico e o pensamento e o querer na cristandade. Entre estas verdades, que o exame da informação antiga coloca de qualquer modo em evidência, devem ser consideradas as seguintes:
A) Se por um lado, em qualquer época, o exame e a maneira de examinar o passado ou o presente são sempre dependentes e dependem seja da veracidade como da riqueza das fontes de informação, por outro lado é também incontestável que este exame e este conto dependem daquela que se pode chamar a pessoal ótica geral do relator em referência a cada coisa.
Antes que qualquer um afronte o vasto problema do conhecimento objetivo e da noção real, não se pode admitir a existência de um prisma, particular a cada pessoa, através do qual vem filtrada cada experiência; esta ótica geral escolhe, concatena, colora e age como o olho, que vê todas as coisas sempre com as suas próprias possibilidades naturais; sempre com as próprias, salvo uma fundamental diferenciação na intimidade da consciência e do intelecto do homem, salvo uma mutação geral do ser. Quando se falará aqui do problema do conhecimento objetivo do real, se poderá ver o porque o homem deva permanecer maravilhado diante desta harmonia do criado: harmonia entre o prisma ontológico sempre pessoal dos seres e o conhecimento verdadeiramente objetivo do real.
B) Sempre existiu a preocupação de ser bem informado para referir fatos a verdade. O nadar contra a corrente filológica até as mais remotas antiguidades mostra que o senso de responsabilidade a respeito da verdade em descrever e em transmitir não foi inferior àquele dos tempos modernos. As ingenuidades, as inevitáveis lacunas em boa fé, as descrições e as explicações tendenciosas, privadas de um verdadeiro senso de responsabilidade, com relação a verdade, não foram na antiguidade nem mais numerosas, nem mais graves do que aquelas que se podem constatar nos homens, do início da “história” até aos nossos dias; é o mínimo que se pode dizer.
C) No expor o desenvolvimento dos fatos ou das idéias, sempre houve, por razões intrínsecas a natureza humana, considerações, implícitas ou explícitas, que podem ser chamadas escatológicas.
É necessário que nos recordemos sempre destas três verdades para evitar errôneas referências ao passado quando se fala da descoberta de uma nova dimensão do homem. A única coisa nova fundamental que sobreveio nos dados e nas determinações do conhecimento, é a revelação.
Notas:
[1] HERÓDOTO, 2, 118.
[2] PLATÃO, Fedon 96 a.
[3] ARISTÓTELES, Sobre partes dos animais 3,14.
[4] DEMÓSTENES, 275, 27.
[5] HERÓDOTO, 1, 1.
[6] ARISTÓTELES, Retórica 1, 4, 13.
[7] PLUTARCO, Péricles 13.
[8]Existe o verbo “istoreo,***” que significa buscar saber: HERÓDOTO, 1, 61; SOFOCLES, As Traquínias v. 418. Buscar qualquer um examinar ou interrogar sobre qualquer um:HERÓDOTO, 2, 113; EURÍPIDES, Ione v. 1547; PLUTARCO, Teseo 30; POLÍBIO, 3, 48, 12. Por extensão, significa também saber – conhecer – narrar verbalmente ou por escrito aquilo que se sabe: ARISTÓTELES, Sobre plantas 1, 3, 13; TEOFRASTO, História das plantas 4, 13, 1; PLUTARCO, Moralia 30 d; LUCIANO, Sobre o modo de escrever a história 7. 
– Existe a palavra “istor, ***” da qual, segundo o parecer dos especialistas da língua grega, se formaram o verbo “istoreo” e a palavra “história,***”. Significava aquele que sabe – aquele que é competente – aquele que conhece alguma coisa ou qualquer um.
– Todas essas palavras “istor, istoreo, istoria” se reconectam ao verbo “ido – ida, ***”, que significa ver com os próprios olhos: HOMERO, Ilíada I, 587; EURÍPIDES, Orestes v. 1020; PLATÃO, República 620 a. Observar – examinar: HOMERO, Ilíada 2, 274 – 3, 364. Representar-se com o pensamento – representar-se na mente: HOMERO, Ilíada 21, 61; PLATÃO, República 510 e. Aparecer – parecer – tornar-se semelhante: HOMERO, Ilíada 2, 791 – 20, 80; HERÓDOTO, 6, 69 – 7, 56. Ser instruído em torno a: HOMERO, Ilíada 17, 219; PLATÃO, Apologia de Sócrates 21 d.
 Fonte: Livro Getsêmani – Reflexões sobre o Movimento Teológico Contemporâneo – A alteração da história, pg 47

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