FRANCESCO LAMENDOLA: O PESSIMISMO “CRISTÃO”

A concepção cristã da vida é pessimista?

Francesco Lamendola
Tradução: Gederson Falcometa

Nenhuma civilização cultivou em si mesma os bacilos da confusão, da angústia, da desesperação, quanto a civilização moderna; nenhuma, porém, detestou e repudiou com a mesma acrimonia, qualquer um que levantasse a mínima reserva sobre a bondade, a excelência, sobre a felicidade da vida como essa é, bulando como torpe agoureiro e profetas de desgraças aqueles que afirmam que, na vida, alguma coisa falta, se não se recorre a graça, que é uma potência sobrenatural. Somente os cristãos, desde sempre, se são inscritos nesta última categoria; desde sempre, e até a uma ou duas gerações atrás, tiveram, clara e limpíssima, a percepção de que a sua ideia de vida não estava de acordo de modo algum com aquela do mundo; e que, aos olhos do mundo, essa é uma visão pessimista, enquanto, aos seus olhos, a visão do mundo é vazia, fátua e ilusória.  

Tal percepção foi modificada pelo Concílio Vaticano II, desde o discurso de abertura de João XXIII, e em seguida não fez senão que modificar-se sempre mais; daí se compreende facilmente que o Concílio não foi um evento “normal” na história da Igreja, mas uma ruptura, e, a nosso parecer, uma ruptura fatal:

4.1. Há ainda um argumento, veneráveis irmãos, que não é inútil propor à vossa consideração. Para tornar mais concreta a nossa santa alegria, queremos, diante desta grande assembléia, notar as felizes e consoladoras circunstâncias em que se inicia o Concílio Ecumênico.

4.1. No exercício cotidiano do nosso ministério pastoral ferem nossos ouvidos sugestões de almas, ardorosas sem dúvida no zelo, mas não dotadas de grande sentido de discrição e moderação. Nos tempos atuais, elas não vêem senão prevaricações e ruínas; vão repetindo que a nossa época, em comparação com as passadas, foi piorando; e portam-se como quem nada aprendeu da história, que é também mestra da vida, e como se no tempo dos Concílios Ecumênicos precedentes tudo fosse triunfo completo da idéia e da vida cristã, e da justa liberdade religiosa.

2. Mas parece-nos que devemos discordar desses profetas da desventura, que anunciam acontecimentos sempre infaustos, como se estivesse iminente o fim do mundo.

3. No presente momento histórico, a Providência está-nos levando para uma nova ordem de relações humanas, que, por obra dos homens e o mais das vezes para além do que eles esperam, se dirigem para o cumprimento de desígnios superiores e inesperados; e tudo, mesmo as adversidades humanas, dispõe para o bem maior da Igreja.[…]

7.1. Ao iniciar-se o Concílio Ecumênico Vaticano II, tornou-se mais evidente do que nunca que a verdade do Senhor permanece eternamente. De fato, ao suceder uma época a outra, vemos que as opiniões dos homens se sucedem excluindo-se umas às outras e que muitas vezes os erros se dissipam logo ao nascer, como a névoa ao despontar o sol.

2. A Igreja sempre se opôs a estes erros; muitas vezes até os condenou com a maior severidade. Agora, porém, a esposa de Cristo prefere usar mais o remédio da misericórdia do que o da severidade. Julga satisfazer melhor às necessidades de hoje mostrando a validez da sua doutrina do que renovando condenações. Não quer dizer que faltem doutrinas enganadoras, opiniões e conceitos perigosos, contra os quais nos devemos premunir e que temos de dissipar; mas estes estão tão evidentemente em contraste com a reta norma da honestidade, e deram já frutos tão perniciosos, que hoje os homens parecem inclinados a condená-los, em particular os costumes que desprezam a Deus e a sua lei, a confiança excessiva nos progressos da técnica e o bem-estar fundado exclusivamente nas comodidades da vida. Eles se vão convencendo sempre mais de que a dignidade da pessoa humana, o seu aperfeiçoamento e o esforço que exige é coisa da máxima importância. E o que mais importa, a experiência ensinou-lhes que a violência feita aos outros, o poder das armas e o predomínio político não contribuem em nada para a feliz solução dos graves problemas que os atormentam.

3. Assim sendo, a Igreja Católica, levantando por meio deste Concílio Ecumênico o facho da verdade religiosa, deseja mostrar-se mãe amorosa de todos, benigna, paciente, cheia de misericórdia e bondade também com os filhos dela separados.

João XXIII e o discurso de 11 de outubro de 1962

De um lado se admite que os erros existem, do outro se recusa de condená-los; e no entanto se regozija do momento historicamente favorável, o que é só uma opinião, e muito questionável (nenhum Papa precedente, a começar por Pio XII, lhe teria subscrito) e, aquilo que é pior, leva a reflexão para o terreno do historicismo, então, quebra a visão sobrenatural da história e faz depender, ao menos em parte, a promoção da palavra de Deus das circunstâncias externas, mais ou menos favoráveis. Alguém imagina Jesus Cristo que, no ato de mandar os seus Apóstolos a batizar e anuncia o Evangelho, tivesse dito a eles: Apressai vos e aproveiteis o momento favorável, porque os homens hoje são particularmente bem dispostos a acolher aquilo que direis? Pelo contrário, Ele disse a eles, com extrema franqueza: Se escutaram a mim, escutaram também a vós; mas se perseguiram a mim, perseguirão também a vós: porque não existe servo superior ao senhor. Ora, a nós resulta que Jesus Cristo foi odiado, traído, preso, processado, insultado, esbofeteado, flagelado, coroado por espinhos, ridicularizado, condenado, crucificado, ultrapassado com a lança, sepultado, antes de ressurgir ao terceiro dia; a qualquer um resulta diversamente? E se assim aconteceram as coisas com o divino Mestres, alguém imagina que possa acontecer de outro modo com os cristãos de hoje ou de qualquer outro tempo, simples operários na vinha do Senhor? Contudo, quando João XXIII pronunciava aquelas palavras, em meia Europa o cristianismo era perseguido de diversas modos, abertamente, enquanto na outra metade era agredido de maneira indireta por concepções e estilos de vida radicalmente opostos a esse e absolutamente incompatíveis com a sua doutrina, e sobretudo com a sua moral. Mas esta, repetimos, é uma avaliação pessoal, e cada um é livre para fazer a sua; aquilo que impressiona, e que assombra, no discurso de 11 de outubro de 1962, é o otimismo forçado, de uma parte, e, da outra, o deslizamento da perspectiva do eterno ao contingente, do absoluto ao relativo, e a conseguinte, declara intenção de inserir um evento extraordinário, como a convocação de um Concílio Ecumênico, no tecido da história em devenir, confiando que as circunstâncias são de ajuda, e abandonando, assim, o solidíssimo terreno da fé perene que se coloca além da história e acima do relativo. E omitamos, nesta sede, sobre a pouca credibilidade e sobre a estranha desenvoltura mostrada por João XXIII no explicar que coisa o tenha inspirado a cumprir um tal passo, do qual o seu predecessor, e com razões bem circunstaciadas, sempre fugiu (a primeira vez que concebemos este Concílio na mente quase ao improviso, e em seguida comunicamos com palavras simples diante do Sacro Colégio do Padres Cardeais naquele fausto 25 de janeiro de 1959. (…) Os ânimos dos presente foram subitamente comovidos, como se brilhasse um raio de luz sobrenatural, e todos o transpareciam suavemente sobre suas faces e em seus olhos: 3.1).

O início desta queda em direção a apostasia começou quando os católicos começaram a se envergonhar e a se doer pela concepção pessimista da vida entendida em sentido naturalista.

Dizíamos que os cristãos sempre souberam que a sua concepção da vida é pessimista; não se envergonharam e jamais pensaram de dever desculpas, embora sabendo muito bem que os outros, os não cristãos, e especialmente os não católicos, sempre criticaram esse tal pessimismo, acusando-lhe de serem denigridores da bondade da vida. Nietzsche foi apenas um de uma longa série de tais acusadores, e certamente o mais inteligente; enquanto Russel, aparecendo quase meio século depois, renovou as acusações, mas com argumentos que denotam muito menos inteligência, de desflorar, frequentemente, a auto-paródia. Porém, o cristão, repetimos o conceito, sempre soube que a vida não é boa em si mesma, e que a natureza, espoliada da graça, não leva a felicidade, mas ao inferno. O atestam mil e quinhentos anos de filosofia e literatura cristã, da Cidade de Deus de Santo Agostinho, a Divina Comédia de Dante Alighieri, as Promessas esponsais de Manzoni, para não falar de tantas obras, grandes e pequenas, das artes figurativas, de Wiligelmo, a Giotto, ao Beato Angélico, das quais, todas, transparecem o mesmo conceito: a via terrena é uma prova e um exílio, a vida autêntica é a vida eterna, que começa depois da morte, verdadeiro e próprio segundo nascimento. Depois chegamos ao humanismo e o renascimento, e um elemento estranho se introduziu na concepção cristã da vida, um elemento pagãos, tanto mais insidioso enquanto se havia habilmente dissimulado entre o quadro dos velhos sujeitos religiosos: mas se a aparência era cristã, a substância começava a não sê-lo mais, começava a ser mundana. O processo de mundanização da concepção cristã, e da própria teologia, requisitou cinco ou seis séculos; as forças sãs, isto é autenticamente católicas, conseguiram retardá-la, mas a um certo ponto, e precisamente com o Concílio Vaticano II, cederam e desabaram, e o irreparável aconteceu: a mentalidade moderna fez sua irrupção na Igreja e conquistou o seu vértice, então investiu cada singular aspecto da liturgia, da pastoral e da própria doutrina, até o êxito atual: uma completa e aberta apostasia.

Escrevia Gabriele Adani (falamos a respeito em um recente artigo: A mais antiga história de amor, Milano, Rusconi, 1978, p. 172):

Também a nós, como ao apóstolo Pedro, a voz do Homem-Deus coloca a questão: “Quo vadis? Onde vais?”. Onde estás andando, tu, que orienta a vida naquela direção, esquecendo o seu verdadeiro bem? Não pensas no teu futuro? Por que quer arruinar a ti mesmo? O Cristo tem o direito de pedir-lhes estas coisas. Ele nos mostra as suas traspassadas pelos pregos e nós sabemos muito bem quanto sofreu para nos dar a verdadeira vida, para nos ensina-la a viver-la. Mas, apesar disto, nós muitas vezes vamos em direção a outras metas, caminhamos na direção oposta, nos distanciamos de Dele. Onde vais? Onde andarás hoje? Para Cristo ou para metas humanas que nos distanciam Dele? Escuta a voz de Jesus que te questiona: “Onde vais?””. Muitas vezes ressoa uma tristeza infinita.  

 

A estranha desenvoltura de João XXIII, que jamais explicou com clareza, o que o inspirou a convocar um Concílio

Segundo os parâmetros do mundo, esta é uma concepção pessimista: não apenas se diz que a vida verdadeira é voltar as costas para o mundo para caminhar com Cristo, mas se recorda que a via de Cristo é a via da cruz. A vida não é um passeio no campo, não é uma festa, não foi feita para o nosso prazer; ao contrário, é cheia de sofrimentos: mas naqueles sofrimentos, se voluntariamente aceitados por amor a Cristo, está o seu mais íntimo significado e uma nova paz, diversa daquela do mundo.

Lembremo-nos das palavras que a beata Gaetana Sterni ouviu da própria voz de Deus, que a chamava para a sua vocação religiosa; a repitamos não para nos repetirmos, mas para ampliar e aprofundar a precedente reflexão (de: Angelo Montonati, “E a mulher disse: Deus quer assim”, Cinisello Balsamo, Edizioni San Paolo, 1999, pg 51-52):

Gaetana, tu rezas continuamente para que te faça conhecer qual o esposo a ti destinado segundo a minha vontade. Mas diga-me, ainda não se desenganou sobre a vaidade das coisas terrenas? (…) Não seria muito melhor que tu abandonasse qualquer outra coisa e pensasse em amar só a mim? Já tem grande tempo, ó cara, que desejo ver-te toda minha (…) Mas, diga-me: se eu lhe pedisse neste momento a morte, não deveria deixar por tal força aquilo que te parece impossível de poder deixar por amor a mim? (…) Ora, tu deves reter que seja precisamente este o momento em que é decretada para ti a morte, porque eu entendo que tu não vivas mais para o mundo, que a tua vida futura seja apenas para mim e que nesta vida tu faças o purgatório.

Os mesmos conceitos, expressos com força ainda maior. A vida não foi feita para gozar, mas para o seguimento de Jesus, que não é fácil, mas pelo contrário é seminada de espinhos. Hoje, sucede propriamente que da Igreja venham os sofrimentos maiores, as amarguras, as repreensões a quanto querem viver uma autêntica vida cristã. Talvez os mais obstinados perseguidores de São Pio de Pietrelcina não foram os seus superiores? Nenhuma maravilha, nenhum abatimento: sempre foi assim. Aquilo que impressiona, hoje, é que a perseguição dos cristãos se tornou aberta e descarada (se pense no calvário que estão sofrendo os franciscanos e franciscanas da Imaculada), como se os inimigos internos da Igreja não quisessem mais agir obliquamente, mas se decidiram de mostrarem-se de face aberta; também, mesmo isto não estava predito? Se quero saber as últimas novidades, leio as Cartas de São Paulo e o Apocalipse, dizia um vigoroso escritor católico, Léon Bloy. Mas Jesus havia predito cada coisa; e Nossa Senhora, no curso de numerosas aparições, nos deixou vigilantes. Em La Salette, no agora longínquo 1846, Ela tinha admoestado os dois pastorinhos: Roma perderá a fé e se tornará a sé do Anticristo. Se bem que, o início deste deslizamento em direção a apostasia tenha tido início quando os católicos começaram a se envergonhar e a se doer pela concepção pessimista da vida entendida em sentido naturalista. Quiseram introduzir corretivos, dos expedientes para adocicar aquele pessimismo. Alguns (Padre Ermes Ronchi) se jogaram contra a psicologia do medo, outros (Padre Turoldo) se levantaram contra as superstições medievais. Esse foi o começo da apostasia…

Francesco Lamendola

22 de Julho de 2018

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