DON CURZIO NITOGLIA: O BEM DO TODO É MAIOR QUE O BEM DA PARTE
Don Curzio Nitoglia
Tradução: Gederson Falcometa
8 de agosto de 2011
“Civitas propter cives, non cives propter civitatem”
· Contra o comunitarismo (“o bem de todos”) a sã filosofia ensina que a Sociedade não é o Fim absoluto, o bem ao qual os cidadãos são ordenados, mas a Sociedade é ordenada ao bem comum dos cidadãos (“civitas propter cives, et non cives propter civitatem”). Por isso é preciso entender bem o significado do axioma “o bem do todo é superior ao bem da parte”, para não cair no absolutismo comunitarista, ou seja, no “culto da Comunidade” ou do seu “Chefe absoluto”, que destrói os indivíduos.
· A comunidade (ou o “bem do todo”) não deve absorver, mas deve proteger os direitos do indivíduo e da família (“o bem da parte”). Essa intervém apenas onde a família e o setor privado não conseguem sozinhos (v. o princípio de subsidiariedade) [1].
· O Cardeal Alfredo Ottaviani ensina: “individuus non est pro Statu, sed Status pro individuo”, o Estado (ou “bem do todo”) é para os cidadãos, não vice-versa, ou seja, a pessoa não é uma engrenagem da Sociedade como uma engrenagem de relógio. É preciso que o Estado (“o todo”) respeite a pessoa (“a parte”) provida de uma natureza racional, criada a imagem e semelhança de Deus, dotada de uma alma espiritual e de intelecto e vontade, e então, livre para fazer o bem e aberta para conhecer o verdadeiro que a conduzirá a vida sobrenatural. O Estado (ou “o bem do todo”), portanto, não deve jamais obstaculizar ou inculcar o conhecimento da verdade e a prática do bem da pessoa (“o bem da parte”), antes a deve favorecer. Quando se iniciaram as escavações sob o altar da Basílica de São Pedro, para ver se realmente ali estava o corpo do Apóstolo, a quem faziam notar a Pio XII o risco daquela operação, o Papa respondia: “A Igreja não deve ter medo da verdade!”.
· Além disso, a Comunidade ou Sociedade deve procurar também e secundariamente o bem estar comum temporal do homem, defendendo os seus direitos e a sua dignidade: a vida, a integridade física, as comodidades temporais, a educação intelectual, moral e espiritual [2].
Pessoa e sociedade segundo a filosofia tomista
· A Sociedade humana vale mais que o bem de uma pessoa individual naturalmente ou materialmente considerada; todavia o homem é composto de corpo e alma espiritual e foi criado para um fim sobrenatural, que ultrapassa infinitamente o bem comum temporal ou material da Comunidade.
· “O todo é maior que a parte” (por exemplo, um homem é maior que a sua mão) é um princípio por si notável a todos; por isso “o bem comum é maior e mais nobre que o bem de um só” (cfr. Suma contra os Gentios, livro III, capítulo 111-113). Atenção! O todo sobrenatural, portanto, é Deus, Cristo; não o Estado, a Comunidade, uma Associação e até mesmo uma Congregação religiosa (a qual faz parte da Igreja militante, mas não é a Igreja, que é o Meio por excelência ou o Fim próximo assistido por Deus “todo dia até o fim do mundo” para ajudar as almas a salvarem-se e a entrar na Igreja triunfante ou o Paraíso, que é o Fim ultimo). Por isso, a tranquilidade material-natural do Estado ou da Congregação não é superior a adesão a verdade e ao bem da pessoa individual, mas deve ser lhe uma garantia e uma ajuda para a sua aquisição. São Pio X não hesitou um instante, em 1905 (encíclica Vehementer, 1906), em perder conventos, escolas, Congregações religiosas… na França inteira, para não dever aceitar o compromisso com o princípio cato-liberal da separação, por princípio, entre Estado e Igreja. Preferi a verdade a tranquilidade ou prudencialidade.
· A alma racional, a razão e a livre vontade espiritual são – na adesão e no conseguimento de seu objeto – superiores ao bem material e temporal do Estado e da Comunidade temporal e até mesmo religiosa, a qual tem como razão de ser o conseguimento da verdade e também do bem, mas não apenas, da ordem sobrenatural. Na verdade, “a Graça pressupõe a natureza, não a destrói, mas a aperfeiçoa” (cfr. S. Tomás, S. Th., I, q. 1, a. 8 ad 2; ivi, I, q. 62, a. 5; ibid.; II-II, q. 26, a. 9, arg. 2; ib.,III, q. 69, a. 8, arg. 3. “Gratia supponit naturam, non tollit sed perficit eam”).
· O caso da crise da Autoridade na Igreja a partir do Vaticano II (1965-2011) é um exemplo lampante de como, se a Sociedade também religiosa impede a adesão ao verdadeiro e ao bem, ”Se deve obedecer a Deus, mais que aos homens » (Atos dos Apóstolos). O caso análogo já tinha – cerca de 1900 anos – se apresentado aos próprios Apóstolos de Cristo, quando os Sumos Sacerdotes da Igreja da Antiga Aliança (30-70 d.C.) impediam o bem espiritual das almas e obstaculizavam a ”salus animarum, suprema lex”.
· A Doutrina Católica, de um ponto de vista da ordem natural, rejeita o liberalismo individualista, que, dando um valor absoluto a pessoa humana, a torna superior ao Estado, a Igreja e ”igual” a Deus. Todavia, rejeita também o totalitarismo, o comunitarismo ou a estadolatria, que afirmam a superioridade do bem político ou material sobre o bem ultimo sobrenatural do homem, para o qual a política e o Estado seriam o fim ultimo do homem, privado, assim, do Paraíso em troca do Estado absoluto de matriz liberal-hegeliana.
· A distinção fundamental para entender bem o axioma é esta: “o bem do todo é maior que o bem da parte”. O todo, entendido como a tranquilidade natural ou material da Sociedade, não é superior ao bem sobrenatural do homem (o Sumo Verdadeiro e o Sumo Bem). Por isso, nunca uma Comunidade ou Sociedade devem e podem impedir a busca e a prática da verdade e do bem por parte de uma pessoa sob o pretexto de bem material do todo superior ao da parte.
· São Paulo em Antióquia em 49 d.C. ““Quando Cefas veio a Antióquia, eu resisti-lhe abertamente, porque era repreensível”. O próprio Apóstolo das Gentes revelou: “Se também eu ou um Anjo do Céu lhes anunciassem um Evangelho diferente daquele de Cristo, seja anátema!”. Nestes casos, o bem sobrenatural e espiritual da alma individual passa a frente da tranquilidade, da subsistência e do bem estar temporal do todo ou Sociedade, mesmo daquela suprema (a Igreja Militante) considerada nos seus homens e não em si mesma, e vista em ordem a Igreja triunfante.
Prioridade da Sociedade ou da pessoa?
· A pessoa é ordenada ao bem comum da Sociedade; além disso, a pessoa é subordinada a Sociedade como a parte ao todo (por ex., a mão ao homem); então existe uma certa superioridade ou prioridade material e natural do bem comum sobre a pessoa. Todavia, a pessoa não é a engrenagem de uma roda de relógio, completamente subordinada ao funcionamento dessa. A pessoa não é apenas um corpo material, um animal social (como uma ovelha em um rebanho), não é apenas um membro da Sociedade ou um cidadão público; essa é também e sobretudo, um animal racional, dotada de alma imortal, de intelecto e vontade para conhecer a Suma Verdade e para amar o Sumo Bem.
· Portanto, é preciso distinguir:
a) Enquanto cidadão ou religioso a pessoa humana, é subordinada a Comunidade civil ou religiosa. Já que o homem – escreve S. Tomás – “é parte da Sociedade, enquanto parte pertence ao todo. De fato, a natureza sacrifica a parte para salvar o todo (a mão se eleva espontaneamente para salvar o corpo agredido por um cotovelo ou por uma pedra)” [3];
b) Enquanto animal racional e espiritual, o homem, laico ou religioso, é superior a Sociedade terrena ou civil e a Comunidade religiosa, e é ordenado a Cidade celeste ou divina (a Igreja militante e universal na terra e a Igreja triunfante no Céu e na eternidade), que transcende a Sociedade civil, a Comunidade religiosa particular e a própria Igreja militante. “O homem não é ordenado a Sociedade política com tudo de si mesmo […] mas tudo aquilo que é o homem, pode e é ordenado a Deus” [4]. A Comunidade civil e religiosa, portanto, deve ajudar o conseguimento de Deus por parte do homem, não obstaculiza-lo. A Sinagoga ou Igreja do Antigo Testamento cessou de ser assistida por Deus, porque impedia as almas individuais farisaicamente de “entrar no Reino do céu”, embora “havendo a chave”. Para unir-se a Deus, é preciso conhece-lo e ama-lo e o conhecimento do verdadeiro e a prática do bem por parte do homem, não podem ser um obstáculo ao bem temporal do todo (Comunidade) e o todo não deve nem pode impedir o conseguimento disso a “parte”, de outro modo perde a sua finalidade, não é mais uma Sociedade ordenada ao bem dos cidadãos, mas uma tirania finalizada ao bem particular de quem governa. Mesmo o prelado pode transformar-se em tirano.
“Bonum commune melius est quam bonum unius”
· O Estado, que é um conjunto de homens (o todo) é naturalmente mais nobre que a pessoa (a parte), mas o fim da pessoa humana e espiritual é mais nobre que o fim do Estado (bem estar temporal); portanto, a pessoa em si considerada, é inferior ao Estado em si (conjunto de mais pessoas) é inferior a Igreja em si (Sociedade perfeita de ordem sobrenatural) e é também inferior ao fim da Igreja (o Céu, de ordem sobrenatural), mesmo se o fim da pessoa humana – sobrenaturalmente considerada – coincide com aquele da Igreja (Deus Autor da Graça). Por isso, a Sociedade civil e religiosa (os homens da Igreja), não pode obstaculizar o fim sobrenatural da pessoa, que se obtém através do conhecimento natural da verdade, da Fé sobrenatural na Revelação e do amor natural do bem, mais aquele sobrenatural de Deus (Summum Bonum).
O risco do “princípio de Caifás”
· Se si interpreta mal o axioma “o bem do todo é superior ao bem da parte”, se chega inequivocavelmente ao “Principio de Caifás”, o qual, sendo Sumo Sacerdote de Israel, decretou a morte de Jesus, porque obstaculizava a tranquilidade material e temporal do Povo de Israel ‘então eleito’, que era a “Igreja” da Antiga Aliança [5]. Segundo este Princípio “é melhor que um só inocente morra para a salvação de todo o povo” ou Comunidade religiosa. Não existe o bem ou o mal em si, mas só por mim/nós/Comunidade.
· Princípio fundamental do liberalismo clássico e do catolicismo-liberal, que é o utilitarismo ou pragmatismo. Na verdade, não existe uma verdade especulativa imutável e um valor absoluto moral objetivo, o ato humano não é bom ou mal em si, mas tudo depende da utilidade, prudencialidade (da carne) e das consequências práticas disso, ou seja, se o ato (p. exe. Uma conferência) produz consequências positivas, vale dizer é útil a mim ou a Comunidade, então é bom para mim e para a Sociedade; de outro modo, é mau para mim e para a Comunidade [6], sem cuidar se é verdadeiro ou falso.
· O utilitarismo comporta o hedonismo psicológico [7], ou seja, a buscar do bem estar ou tranquilidade material e a fuga da dor ou perseguição. Segundo o londrino Geremia Bentham (+1832) o prazer ou a tranquilidade material coincide com aquilo que é útil. O hedonismo busca o “prazer” (não no sentido imoral do termo), vale dizer, o “bem estar temporal” não no futuro ou no além, mas no presente. Antigos teóricos do hedonismo foram Aristipo, Epicuro e nos nossos dias o cato-liberalismo e o Americanismo. A “maximização” do bem estar e a “minimização” da dor estão fundadas, para Bentham, não sobre a religião, a moral ou na metafísica, mas sobre o Ego-ismo psicológico, onde o homem (e a Comunidade, “Comun-ismo”) buscam sempre a sua vantagem, interesse ou utilidade material ou “psicológica”, ou seja, como se diz hoje o epanuissement. O bem ou a felicidade, para Bentham, não é o Ato Puro, mas o interesse próprio (ou comum, para o liberalismo clássico-hegeliano). Este é o erro “capital” do liberalismo clássico e do catolicismo-liberal: fazer coincidir o sumo Bem ou Fim ultimo com a criatura (liberdade, utilidade, prazer, tranquilidade… do sujeito e da Comunidade civil ou religiosa, no caso do catolicismo-liberal).
· Segundo este princípio mau compreendido ou mau aplicado, se em uma família o avô se torna muito idoso, ele é mandado para o asilo, já que “o bem de toda a família é superior ao bem do avô”. Se um pároco é impopular aos poderosos porque prega chamando “pão de pão e vinho de vinho”, ele é mandado para o exílio, como sucede a Don Camillo. Se uma irmã cai doente ela é mandada de volta para a casa (o porquê é sempre o mesmo) [8]. O importante é manter a tranquilidade e a propriedade, evitar as perseguições na “Diocese”, no Convento e na Comunidade. Mas a paz absoluta não é deste mundo.
· Ao invés disso, Jesus nos disse “se vós sois meus verdadeiros discípulos, o que fizeram a Mim o farão também a vós”. “Não temais quem pode matar o vosso corpo [a perseguição física], temais quem pode matar a vossa alma [o pecado] e lança-la na gena”. Não pregou o “Princípio de Caifás”, o sofreu, dizendo-lhes face a face a verdade. Não recomendou silenciar a verdade por prudencialidade, antes disse para “grita-la do alto dos telhados” e nos exortou que se não fizermos nós “o gritariam as pedras”. Não disse para não falar de história ou política, mas ensinou a “dar a César [Estado] aquilo que é de César [Virtude cívica ou política] e a Deus [Verdade] aquilo que é de Deus [espírito e verdade]”. Enfim, a Pilatos, que poderia poupar-lhe a vida, disse: “Eu vim para dar testemunho da Verdade”.
· É evidente que a ética natural e cristã (v. Aristóteles [9] e Santo Tomás [10]) é absolutamente inconciliável com a ética subjetivista e relativista do hedonismo e do utilitarismo (Ego-istico ou Comun-istico) e por isso o liberalismo e o catolicismo liberal foram repetidamente e constantemente condenados pelos Romanos Pontífices de 1832 até 1953 (Gregório XVI, Pio IX, Leão XIII, Pio XI e Pio XII).
Conclusão
“Individuus non est pro Statu, sed Status pro individuo”
· Como sair desta mentalidade? Dando uma reta interpretação ao axioma “o bem do todo é superior ao bem da parte”. Retornando a Verdade e ao Bem, em suma a Deus, a uma Sociedade (civil e religiosa) mais humana, ou menos desumana, para que fundada sobre princípios da filosofia perene ou do bom senso, coloque as coisas no seu justo lugar, devolvendo o primado a ciência especulativa (conhecer para saber) ou metafísica, subordinando a essa a filosofia prática (conhecer para fazer ou para agir) e enfim colocar a técnica (conhecimento experimental ou empírico) no seu justo lugar, que é mais baixo, enquanto hoje ocupa abusivamente aquele mais alto, tornando o homem (e também o sacerdote) uma máquina de produção, que corre sem fôlego, “cansado e desesperado” para um termo que nem mesmo ele sabe que coisa seja, para um enriquecimento e uma tranquilidade material sempre maior, que deixa insatisfeito o coração humano, desde que também é um bem finito e criado (antes “impresso” ou “cunhado”) enquanto “o nosso ânimo é inquieto até que não repouse no Senhor” (S. Agostinho), que só, sendo o Summum Bonum, pode acalmar as ânsias e os problemas do homem, o qual é aberto ao infinito (verdadeira Caridade sobrenatural) e não é limitado ao problema econômico/temporal/prudencial, visto pela “direita” ou “esquerda”.
· Os perigos a evitar são: uma humanidade sem Deus (impiedade e ateísmo) e uma Religiosidade sem “humanidade” (rigorismo farisaico), que sacrifica a parte (Jonas [11]/ Jesus) ao bem estar do todo (Israel/Comunidade). Lança ao mar Jonas e coloca a cruz em Cristo, mas depois termina por arruinar também a paz da Comunidade (Salmanasar IV e V [12]/Tito).
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