ROBERTO PECCHIOLI: O MUNDO LÍQUIDO DE BAUMAN


 Mundo líquido: o homem em uma garrafa





 "Mundo líquido de Bauman: o homem na garrafa. É preciso sair da garrafa e da poça para acabar com a condição líquida. Devemos voltar a ser estáveis e sólidos, criar comunidades : pertencer e possuir uma identidade".

Roberto Pecchioli
Accademia Nuova Italia
Tradução: Gederson Falcometa

Poucos adjetivos obtiveram o sucesso de “líquido”, o atributo do mundo contemporâneo inventado por Zygmunt Bauman. Modernidade líquida, família líquida, mundo líquido. O sociólogo judeu polaco emigrado nos EUA deu a definição mais sintética, fulminante e precisa do nosso tempo. Líquido no sentido de não sólido, privado de um centro e de uma forma. Os líquidos são informes, assumem aquela dos recipientes que lhes contém e, na sua ausência, tendem a se perder, evaporar e se anular. A intuição de Bauman é extraordinária, mas revela que o homem líquido, produto de uma sociedade também líquida, é um homem encerrado em uma garrafa.


 A modernidade é a convicção de que a mudança é a única coisa permanente e a incerteza a única certeza. Esta reflexão de Bauman confirma que o nosso tempo é um tempo de inversão, de naufrágio generalizado, onde aquilo que é confuso, indistinto e mutável é considerado positivo e moderno. Mesmo o adjetivo moderno assumiu um valor absoluto, universalizado, metafórico e sinônimo de positividade. Moderno significa apenas “ao mundo hodierno”. A absolutização do termo, elevado a categoria de bem, da superioridade do hoje em relação ao ontem, tornará inevitavelmente a inferioridade de hoje vista com os olhos do amanhã, é um adjetivo que faz par com líquido.

Mas que coisa se entende exatamente por sociedade líquida? A crise do conceito de comunidade fez emergir um individualismo programático, em que “ninguém é mais companheiro de estrada, mas o antagonista de alguém” Umberto Eco. O vizinho é sempre alguém que se deve vigiar, um concorrente se não um inimigo. Homo homini lupus. Este subjetivismo minou a modernidade, lhe tornou frágil, imersa em uma condição em que, abolidos os pontos de referência, tudo perde consistência. A solidez de ontem é vista como um perigo ou uma gaiola. Tudo se torna líquido porque nada parece mais verdadeiro, bom e justo. As únicas soluções para os indivíduos sem pontos de referência torna-se o aparecer a qualquer custo, o consumo, a novidade o movimento como um fim em si mesmo. 

O líquido, deixado a si mesmo, tende a escorrer em mil regatos, mudar de direção diante de qualquer obstáculo, até anular-se e perder qualquer distinção. O êxito é a dissolução em milhões de gotas, átomos líquidos privados de valor, direção e centro. O consumismo líquido tem como objetivo a posse de objetos de desejo ao qual se contentar, mas lhes torna imediatamente obsoletos, e os indivíduos-gotas passam de um consumo ao outro em uma bulimia sem fim, milhões de líquidos que se movem por ondas heterodirecionadas. No mundo líquido-moderno a solidez das coisas, assim como a solidez das relações humanas, tende a ser considerada um mal, uma ameaça. Qualquer propósito de fidelidade e empenho a longo prazo anunciam um futuro de obrigações que limitam a liberdade de movimento e reduzem a capacidade de aceitar as oportunidades ainda desconhecidas que se apresentarão.

A perspectiva de enviscar-se por toda a vida em algo de definitivo, não renegociável, parece repugnante e assustadora (relações sentimentais, amizades, ideias, opiniões, famílias, lugares, a própria personalidade individual). Inevitavelmente, “se pede a homens para buscar soluções privadas a problemas de origem social, ao invés de soluções de origem social para problemas privados”Bauman. O mundo líquido produz uma sociedade despedaçada, em que se eu resolvi os meus problemas subjetivos, não me importa mais o dos outros. Por outro lado, os meus problemas, minhas fraquezas, fragilidades são apenas minhas, para a indiferença líquida dos outros. O mundo circunstante é dividido em pedaços desordenados, enquanto as vidas individuais se partem em uma sucessão de episódios sem ligação entre elas. Ser moderno, isto é líquido, significa ser incapaz de se firmar e ainda menos de permanecer firme, uma condição que Paul Virilio chamou de “dromocacia”.

A cultura de hoje é feita de ofertas de mercado, não de normas. Também aqui há o triunfo do líquido. No mundo líquido o capitalismo vence sem competidores, porque as fontes de proveito se estenderam da exploração  da mão de obra a exploração dos consumidores, os seres líquidos por excelência, que devem continuamente modificar a si mesmos, gostos, expectativas, para estar no ritmo de perseguir a hodiernidade, a moda, depreciando continuamente o “ontem”e o“antes”. A comunidade é sólida, porque a ela pertencemos interiormente, moralmente, a sociedade é líquida enquanto é apenas um contrato que pode ser rasgado, de duração limitada; empenha apenas nos termos subscritos e contém cláusulas de rescisão.

O mundo líquido é por natureza uma corrida em direção ao nada que arrasta consigo a civilização. A sociedade, explica o escritor Agostinho Saccá, é simplesmente estarmos juntos. Por acaso, para que sejamos contemporâneos, nos encontrarmos sem uma razão real no mesmo espaço e ao mesmo tempo. Estranhos, líquidos reduzidos a gotas que se espalham com o vento, cercados por “Raros nadadores que aparecem no vasto sorvedouro” poucos nadadores no vasto mar, os raros sobreviventes do naufrágio, como os marinheiros da Eneída virgiliana. O contrato é líquido, o empenho é sólido. Fornece um fim, indica uma meta, dá valor, atribuí sentido, constrói civilização. A civilização tem necessidade de maturação, ideais, valores, cultura unificante, terreno sólido e sedimentação. A civilização é o desejo de encaminhar-se sobre um terreno comum, por definição sólido. Não existe civilização sem uma sólida sociedade. A um povo, uma ideia, uma crença religiosa, um destino, um lugar, um sistema de valores e a uma pessoa amada. Não existe um povo “líquido”.

Nos limitemos a correr em uma sociedade vista como aglomerado provisório, plástico, onde de um mar em tempestade estimulado por ventos provenientes de todas as direções. Liquefeito, o mundo se torna irreconhecível, uma babilônia confusionária em que cada um caminha por sua conta, teme os outros, se une em tribos provisórias, fala línguas reciprocamente incompreensíveis ou se torna afásico e se comunica apenas de maneira elementar.

Isto ou aquilo para mim são iguais, era o cínico programa sentimental do Duque de Mantova no Rigoletto. O péssimo programa se alargou para a vida inteira: viver na Itália ou na Mongólia não tem diferença, nem que o próprio país perca a sua língua, cultura ou seja invadido por estrangeiros. Faz o mesmo ser homem ou mulher, ser atraído sexualmente por pessoas do mesmo sexo ou do outro, pelo contrário dos outros, exprimir-se em italiano ou em inglês. Líquido é tudo, as gotas se despedaçam por acaso.

Aquilo que conta é a corrida, a viagem, sem destino, qualquer meio é bom. Importante não ter algum fim ou ter um para cada dia. O ideal é a mistura, a contaminação, passada para definir um ideal de vida em vez da velha sujeira, mancha e deturpação. Dizem que as misturas acrescentam, mas apenas se existe um escopo de civilização, não a mistura como fim em si mesmo, que se torna leite batido casual de elementos diversos, emulsão insensata, muitas vezes impossibilidade de criar um equilíbrio. O óleo não se dissolve na água. A maré líquida é indiferenciada, o caldeirão que ferve continuamente enquanto lhe entra de tudo (melting por) e tudo que ali se dissolve é indigerível, venenoso. Líquido é o fluxo da Babilônia, sólida é a civilização. Mas a obrigação é viver a jornada, nadar em um magma que se move e explode como lava de um vulcão. 

O homem líquido é um ser em uma garrafa: para ir a qualquer lugar, conservar um sentimento e um indício de unidade deve ser recolhido em um recipiente, tornar-se conteúdo. Per autonomia; se o recipiente se rompe, o líquido se perde.  Se falta a tampa, o destino é a evaporação. Até mesmo uma pedra é mais estável que o homem líquido, preso no recipiente sob pena de dispersão e em baila de quem empunha a garrafa. Não resta senão abandonar a condição de fluído a mercê dos senhores de garrafas, recipientes e condutores, e se tornar sólido.

Não é difícil. Um comandante dos Chouans, os combatentes antirrevolucionários da Vendéia, disse que a sua Pátria não eram os princípios abstratos, os direitos universais dos jacobinos, mas a terra que pisava e sentia sob os seus pés. Concreta, real, como todo princípio em que se crê. Duradoura, porque manter-se, conservar e entregar, transmitir, é um instinto poderoso do homem “sólido”. A água não se apanha, escapa, escorre e não é nunca a mesma. O homem tem a necessidade de firmar-se, construir uma sólida casa, defendê-la com firmeza, entregá-la aos filhos e elevar o olhar para o alto. Precisa sair da garrafa e do lamaçal, livrar-se da condição líquida. Ser, tornar-se estável, sólido, fazer comunidade, pertencer, possuir uma identidade. O princípio de pertencimento derrota o mundo líquido, faz saltar a tampa da garrafa em que nos encerraram gota a gota.


Comentários

  1. Salve Maria! Sim, só do italiano (tem muito material). Um abraço

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  2. Entendi. É porque tenho muita dúvida sobre a acusação de as novas fórmulas dos sacramentos serem inválidas e não encontro material no nosso idioma, apenas material a favor da tese da invalidade.

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  3. E também tenho dúvidas a respeito do ortodoxos cismaticos e não encontro nada expondo seus erros.

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  4. LINK DE ALGUNS ARTIGOS SOBRE OS SACRAMENTOS "NOVUS ORDO":

    CERTEZZA DEL PAPA E DEI SACRAMENTI, O DUBBIO METODICO? di Don Curzio Nitoglia: http://chiesaepostconcilio.blogspot.com/2013/03/certezza-del-papa-e-dei-sacramenti-o.html

    LA VALIDITÀ DEI SACRAMENTI DELL’ORDINE E DELLA CRESIMA DOPO IL 1968: https://doncurzionitoglia.wordpress.com/2014/06/28/la-validita-dei-sacramenti-dellordine-e-della-cresima-dopo-il-1968/

    LE RIORDINAZIONI: IL PROBLEMA E LA SUA ATTUALITÀ: http://www.unavox.it/ArtDiversi/DIV880_Augustinus_Riordinazioni.html

    RISPOSTA AI LETTORI SULLA VALIDITÀ DEI “NUOVI SACRAMENTI” DI PAOLO VI: RISPOSTA AI LETTORI SULLA VALIDITÀ DEI “NUOVI SACRAMENTI” DI PAOLO VI:

    INVALIDITÀ O ILLICEITÀ DEI NUOVI RITI SACRAMENTALI?: http://www.unavox.it/ArtDiversi/DIV910_Augustinus_Invalidita_o_illiceita.html

    SINTESI SULLA VALIDITÀ DEI “NUOVI SACRAMENTI” di Don Curzio Nitoglia: http://www.unavox.it/ArtDiversi/DIV911_Nitoglia_Sintesi_validita_sacramenti.html

    RISPOSTA ALLE OBIEZIONI SUI NUOVI SACRAMENTI DELLA CRESIMA E DELLA CONSACRAZIONE EPISCOPALE DI PAOLO VI di Don Curzio Nitoglia: http://www.unavox.it/ArtDiversi/DIV918_Nitoglia_Risposta_obiezioni_nuovi_sacramenti.html

    ORDINAZIONI ANGLICANE E ORDINAZIONI MONTINIANE: http://www.unavox.it/ArtDiversi/DIV977_SISINONO_Ordinazioni_anglicane_e_montiniane.html

    ULTIME PRECISAZIONI SUI NUOVI SACRAMENTI: http://www.unavox.it/ArtDiversi/DIV978_SISINONO_Precisazioni_nuovi_sacramenti.html

    RITI VALIDI/INVALIDI, LECITI/ILLECITI E PIÙ O MENO OPPORTUNI: http://www.unavox.it/ArtDiversi/DIV984_Augustinus_Riti_validi_invalidi.html

    NUOVO RITO DEL SACRAMENTO DELL’0RDINE ILLECITO O NON PERFETTO?: https://drive.google.com/file/d/136_DNeJ0DISeGH1Vy-DjIExKmRm5NE-N/edit

    UNA QUESTIONE ATTUALE SULL'INTENZIONE DEI SACRAMENTI di Don Curzio Nitoglia: http://chiesaepostconcilio.blogspot.com/2017/06/don-curzio-nitoglia-una-questione.html

    LA FORMA DEL BATTESIMO E LA SUA VALIDITÀ di Don Curzio Nitoglia: https://doncurzionitoglia.wordpress.com/2015/07/27/la-forma-del-battesimo-e-la-sua-validita/

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