CARDEAL BILLOT: DA IMUTABILIDADE DA TRADIÇÂO CONTRA A MODERNA HERESIA DO EVOLUCIONISMO
Cardeal Ludovico Billot
Tradução Pe. João Batista de A.Prado Ferraz Costa
Nota do tradutor
Com prazer ofereço ao leitor de língua portuguesa a tradução da
importantíssima obra do eminente teólogo jesuíta cardeal Ludovico
Billot De immutabilitate traditionis contra modernam haeresim evolutionismi, feita a partir do texto original latino publicado em 1929.
Esclareço que esta tradução contou com a colaboração (para as partes
mais difíceis) dos saudosos D. Manoel Pestana Filho, que muito me
incentivou na execução da tarefa, e do dr. José Moacyr de Oliveira.
Dom Pestana recordava a propósito as palavras de seu antigo
professor na Universidade Gregoriana Padre Tromp: “A ‘trindade’ da
sagrada teologia está constituída por Santo Agostinho (De Trinitate), Santo Tomás (Summa) e cardeal Billot (De Ecclesia).
É bem possível que a presente tradução contenha erros de digitação
ou mesmo períodos de uma tradução menos feliz. Agradeço ao leitor que
me aponte tais erros para uma melhora do trabalho. Preferi publicá-la
antes de uma revisão geral rigorosa para não retardar ainda mais sua
publicação que estava prevista para ser lançada por uma editora que
desistiu do projeto diante do desinteresse do leitor brasileiro pela
aquisição de boas obras teológicas. Como bem sabemos, o mercado
editorial de obras ditas religiosas está praticamente dominado pela
literatura herética modernista, pentecostal e sincretista.
A presente obra do cardeal Billot é importante para refutar a ideia
de “tradição viva” que nega a imutabilidade do dogma. Com efeito, a
reta teologia só admite um processo de explicitação e aprofundamento da
verdade católica, jamais uma mudança substancial. Por exemplo, a
Igreja sempre ensinou a doutrina da tolerância religiosa (desde o
período da patrística até Pio XII). Essa doutrina foi sendo
organicamente desenvolvida, sempre conservando o mesmo sentido. Ora, o
que era tolerância do erro em foro público não pode transformar-se em
liberdade do erro, ainda mais quando a Igreja condenou rigorosamente a
liberdade de cultos.
Boa leitura!
Pe. João Batista de A.Prado Ferraz Costa
Proêmio
O Concílio Vaticano I, na constituição Dei Filius, capítulo
4, diz: “ A doutrina católica que Deus revelou não foi proposta como
uma descoberta filosófica que devesse ser evoluir ao sopro do engenho
humano, mas transmitida como um depósito divino à esposa de Cristo,
para ser fielmente conservada e infalivelmente exposta. Portanto, o
sentido dos sagrados dogmas deve ser perpetuamente guardado, uma vez
definido pela Santa Madre Igreja, e jamais afastar-se desse sentido, a
pretexto de uma mais alta compreensão.” Além disso, diz o cânon 3º de fide et ratione:
“Se alguém disser que pode ocorrer que aos dogmas propostos pela
Igreja, às vezes, conforme o progresso da ciência, se deva atribuir um
sentido diverso daquele que entendeu e entende a Igreja, seja
anatematizado.”
Não obstante, surge agora uma nova corrente, principiada em surdina
no século XIX por Gunthero, que defende abertamente a evolução kantiana
e racionalista da nossa religião; que considera a mutação do dogma de
uma forma para outra, de um sentido para outro,conforme as várias
condições do meio e os sucessivos estados da cultura humana: diz que
todo o conjunto da doutrina, como uma fecunda lucubração da razão
humana sob pressão do coração e do sentimento religioso, está em
contínuo e indefinido movimento.
Nesta perspectiva, dois livros recentemente publicados dizem com
toda crueza e insolente escárnio dos padres, doutores, pontífices de
todos os tempos: “A fé não tem morada permanente nesta terra, mas
necessita sempre de tabernáculos provisórios. Em vão se esforçariam por
retê-la em suas formas antigas, que não podem mais adaptar-se a outras
mentalidades e não nada mais são do que monumentos veneráveis de
tempos pretéritos. Com efeito, hoje, nas presentes condições culturais,
não é possível, por mais tempo, que o homem julgue só segundo
critérios do senso comum, concilie o que vê e lê na Sagrada Escritura
com o que os nossos teólogos parecem afirmar acerca da verdade universal
e absoluta da mesma Escritura. Não é possível por mais tempo conciliar
a história do doutrina cristã com o que nossos teólogos parecem
afirmar a respeito da sua perpétua e contínua identidade. Já não é
possível conciliar o sentido natural dos textos evangélicos, sobretudo
dos autênticos, com o que os nossos teólogos ensinam ou parecem ensinar
sobre a consciência ou ciência de Jesus Cristo. Já não é possível
afirmar, como adequada à economia da salvação, a teoria concebida na
ignorância da história do homem sobre a terra e da história da religião
na própria humanidade. Portanto, é hora de considerar totalmente
vacilante a fé na autoridade das Escrituras, mostrando o que é realmente
a Bíblia, e qual gênero de verdade se lhe deve atribuir. É chegada a
hora de considerar totalmente vacilante a fé na redenção e na salvação,
buscando sob formas ou idéias agora mortas o princípio da verdade
imutável que nelas está profundamente latente, e por fim a noção
inteligível daquelas coisas em que Cristo teve parte na regeneração
moral da humanidade. Já é tempo de considerar vacilante a fé na
ressurreição do Salvador e na sua presença eucarística, penetrando mais
o mistério do Cristo imortal que vive perene em Deus e na sua obra etc.
Em suma, é o momento para que a Igreja Católica seriamente reconsidere
que, por longo tempo, não temeu bastante escandalizar os doutos; e que
o próprio catolicismo se reserva uma ruína fatal, enquanto sua
pregação parecer impor aos espíritos uma concepção do mundo e da
história discrepante daquela que o avanço dos últimos séculos
restabeleceu; mas sobretudo, enquanto os fiéis forem proibidos, por
medo de ofender a Deus, de pensar e admitir na ordem filosófica,
científica e histórica, conclusões e hipóteses que os teólogos da idade
média não previram.
Com efeito, não se poderia excogitar negação mais radical de todos
os princípios e regras da fé cristã católica. Chega-se assim, não só
por dedução lógica e inevitável conseqüência, mas também por uma
confissão formal e eloqüente dos autores, à categórica negação de toda a
revelação, isto é da verdadeira e própria palavra de Deus. Mas esta
heresia, se se pode ainda falar em heresia, não revestiu imediatamente a
forma completa sob a qual agora se trai. Teve suas primeiras raízes no
falso conceito de tradição católica, como se efetivamente esta
tradição estivesse contida no simples fato humano histórico, cujos
testemunhos pudessem e devessem ser tratados segundo os mesmos
critérios e regras, nem mais nem menos, como os outros monumentos da
antiguidade. Disto resulta o chamado método histórico nos
estudos de teologia positiva; adotando tal método, alguns eruditos
parecem admitir manifesta oposição entre o sentido do dogma conforme os
mais antigos padres, sobretudo os anteniceneanos, e o sentido que os
concílios e doutores de idade posterior abraçaram.
De maneira que, reintroduzido na dogmática aquele progresso
guntheriano já condenado pelo Concílio Vaticano I, acrescentada apenas
certa espécie de novidade derivada da teoria da evolução, que após
Darwin havia obtido tanto sucesso por toda parte e deu origem à noção
de fé viva, como dizem, isto é, a noção de fé que primeiro se continha
em gérmen e depois, como que a partir de um óvulo que se desenvolve, e
passando de espécie em espécie, à maneira do animal darwinano, por via
de seleção e sob o influxo do meio ambiente, sempre se transforma em
algo melhor. Para que talvez alguém não ficasse inquieto de como
conciliar semelhante teoria com a doutrina católica sobre a
infalibilidade da tradição e do magistério da Igreja, oportunamente
foi ressuscitado o conceito de Gunther sobre a verdade relativa. Falam
em verdade relativa por oposição à verdade simpliciter, em
relação à qual, houve, até certo ponto, na medida da possibilidade de
acréscimos, maior ou menor aproximação, havendo sempre, porém, grande
distância da desconhecida verdade absoluta, que a seu tempo talvez se
revele. Mas, como da verdade relativa se prepara fácil descida para a
negação de toda verdade objetiva, por isso ulteriormente extraíram das
oficinas da filosofia kantiana a idéia do dogmatismo moral ou postulado
que nada mais é que a subjetiva lucubração do intelecto sob o
determinismo da vontade. Finalmente, chegou-se ao sistema completo que
está exposto na referida obra O Evangelho e a Igreja. Nela, a
Trindade, a Encarnação, a Redenção, a Igreja, os Sacramentos, enfim
todos os nossos dogmas na medida em que neles cremos, são apenas certa
fase da evolução. Igualmente, a crítica histórica e a fé relacionam-se
entre si de tal maneira que nunca possam contradizer-se, porquanto a fé
refere-se à presente forma de que se reveste a idéia cristã, a
crítica, ao contrário, versa sobre todas as diversas formas que estavam
na origem.
Pretendo tratar ordenadamente de todas estas questões e, em primeiro
lugar, do conceito errôneo de tradição, que está na origem de toda
esta teoria. E porque o erro concebido não aparece senão à luz dos
princípios verdadeiros, tratarei inicialmente destes princípios.
Capítulo I
O conceito católico de sagrada tradição.
Guarda o precioso depósito, pela virtude do Espírito Santo que habita em nós.
(2 Tim. 1-14)
(2 Tim. 1-14)
“Muitas vezes e diversos modos outrora falou Deus aos nossos pais
pelos profetas. Ultimamente nos falou por seu Filho.” Com estas breves
palavras em concisa sentença o apóstolo compendia integralmente toda a
revelação católica, desde o princípio até sua conclusão. Dizemos, com
efeito, que a revelação é toda locução de Deus dirigida a nós, seja
pelo órgão humano unido hipostaticamente ao Verbo, seja pelos
instrumentos separados, tais como foram aqueles santos homens de que
fala a 2 Epístola de São Pedro, 1-21. Essa revelação está encerrada
tanto da parte da palavra oral, pela boca do próprio Cristo, e dos seus
apóstolos, pela inspiração do Espírito Santo, sem a consignação por
escrito, quanto da parte da palavra escrita pelo ministério dos
hagiógrafos do Antigo e do Novo Testamento. De ambos modos dirigia-se a
revelação a toda a Igreja futura até a consumação do mundo.
Ora, em toda palavra, distingue-se a coisa ou verdade dita pela
palavra, que se pode chamar a palavra em sentido objetivo, e a expressão
pela qual é dita a verdade, que é a palavra em sentido formal. Se,
pois, a fala se refere às coisas ou verdades expressas pela palavra,
então não há diferença nenhuma entre a palavra de Deus escrita e oral,
porque seja de um modo ou de outro se supõem expressas verdades
igualmente ditas por Deus, pertencentes ao objeto material da fé. Mas
se a fala se refere à própria palavra pela qual a verdade revelada foi
expressa por inspiração divina, então há certa diferença entre a
palavra e a verdade. Pois a palavra escrita de per si fixa e
permanente, e portanto a mesma locução divina, uma vez impressa, pode
ser conservada no mesmo número. Mas a palavra oral é proferida e se
comunica, e portanto, para a transmissão da verdade dita, requer outra
locução, em número distinto. Esta locução está para o original como
certa repetição ou ressonância, ou prolongamento através do espaço e de
intervalo de tempo. Ela recebeu entre nós o nome genérico de tradição.
De maneira que a palavra de Deus proferida primeiro se diz transmitida
(verbum traditum), visto que entregue à tradição, e pela
tradição prolongada e perpetuada. Sob esta denominação é comum
distingui-la da palavra escrita contida nos livros sagrados.
No entanto, a palavra ou tradição que perpetua a revelação feita
originalmente pode ser considerada de duplo modo. De um modo, como
tradição de um só fato, submetida ao fluxo geral das realidades humanas,
às causas e cuidados humanos, deixada ao engenho humano, como se pode
verificar nas tradições históricas, nas quais cada um, pelo seu esforço
e capacidade, se empenha em conservar para a posteridade aquele
patrimônio recebido dos maiores. De outro modo, como tradição não só de
fato mas de direito divino, à qual, certamente, foi prometida pelo
autor de nossa religião a instituição de um órgão autêntico e perene
de especial assistência. E se alguém considerar antes de tudo esta
matéria, dificilmente lhe parecerá digno de crédito aquele modo da
tradição na religião revelada, se não se convencer de que Jesus Cristo
nos trouxe a luz da revelação provida de um meio eficaz para a sua pura e
incorrupta conservação. Com efeito, ninguém, que faça um juízo
equânime seja sobre a natureza dos dogmas que devem ser conservados
seja sobre as condições da nossa frágil humanidade, reconhecerá
completamente esse meio eficaz. Entretanto, não convém por ora
alongar-nos em tais considerações, mas antes recorrer aos documentos
positivos, a partir dos quais se deve demonstrar a proposição
fundamental que vem a seguir.
§ 1
O órgão autêntico da tradição foi instituído por Jesus Cristo em sua
Igreja hierárquica e apostólica, à qual prometeu jamais abandonaria.
Essa tradição é a pregação da revelação recebida do próprio Jesus
Cristo e dos seus apóstolos, a qual é, de geração em geração,
continuada pelos sucessores dos apóstolos sob a assistência do Espírito
Santo.
Inicialmente, recorde-se a história evangélica e tudo o que nela se contém a respeito das origens da doutrina cristã: A mensagem da salvação, diz Hebreus 2, 3, anunciada primeiro pelo Senhor, confirmada ao depois pelos que a ouviram. Digno de nota este anunciada, bem como o pelos que a ouviram.
Em forma de compêndio ai se recapitula aquilo que na supradita
história está manifesto: a doutrina de salvação de Cristo, não a
escrita, mas a palavra da pregação, pelo magistério pessoal, foi
proclamada pelo oráculo de viva voz. O próprio Filho de Deus feito
homem, enquanto viveu entre os homens, foi mestre e doutor. Demonstrado
que em sua pessoa se realizam as profecias, comprovado pelos sinais
divinos das obras e dos milagres, declarado pelo Pai Celeste no início
do seu solene magistério de tal maneira que fosse ouvido por outros,
“assumindo o múnus de preceptor a fim de nos ensinar a bem viver para
depois, como Deus, dar-nos a vida eterna”[1].
E tendo cumprido a obra de que o incumbira seu Pai, tendo anunciado o
evangelho do reino por três anos por todas regiões da Galiléia e da
Judéia, tendo instruído seus discípulos, fundado o novo e eterno
testamento em seu sangue, ressuscitado dos mortos preparava a ascensão
ao céu. Entretanto, prevendo a perenidade e a propagação da revelação
que trouxera ao mundo, àqueles que constituíra como vigários
encarregados de perpetuar a sua obra, lhes disse por fim: “Foi-me dado
todo poder no céu e na terra. Ide, pois, e ensinai todas as nações a
obedecer tudo o que vos ordenei, eis que estarei convosco todos os dias
até o fim dos tempos. Estas são as últimas palavras de Cristo – digo-
que dispõe com uma ordem eficaz o meio pelo qual sua doutrina revelada
para o mundo todo chegasse a todas as gerações. Estas palavras foram
ditas após a ressurreição na solene aparição do monte da Galiléia, à
qual convocara, além dos apóstolos mais importantes, todos os outros
discípulos,[2] de maneira que toda a Igreja de então fosse testemunha do seu derradeiro mandamento.
Aí, pois, temos para sempre a primeira instituição do autêntico
órgão da tradição. Refiro-me, não a qualquer tradição recebida, mas à
doutrina da tradição recebida de Cristo. Refiro-me a uma doutrina que
não deve ser juntada mas confiada, não enriquecida mas protegida. Esta
doutrina não precisa de autores, mas de custódios, não de
pesquisadores, mas de fiéis dispensadores. Ensinando, diz, a observar
tudo o que vos mandei. Ora, Cristo mandou que se cresse na doutrina
integral do evangelho, que ele pessoalmente pregara, enquanto estava
entre nós, e tinha prometido aos seus discípulos que pelo seu Espírito
Santo revelaria o pleno complemento da sua doutrina, dizendo: “Tenho
ainda muita coisa a dizer-vos, mas não podeis compreender agora. Quando,
porém, vier o Espírito de verdade que vos enviarei da parte do meu
Pai, ele vos ensinará toda a verdade.[3]
Em segundo lugar, deve dizer-se que a instituição do órgão da
tradição há de durar até o fim do mundo. Em todo evangelho,
especialmente em São Mateus…..(em grego) significa o fim do mundo
presente, o último advento de Cristo e o tempo do juízo universal. E
certamente, não altera o sentido dessa passagem o fato de as palavras
serem dirigidas aos presentes, pois estes permaneceriam em seus
sucessores. De maneira que o Senhor lhes ordena ensinar a todas nações
sem nenhuma restrição de tempo ou lugar, e logo após vemos os apóstolos
cumprindo o mandato de Cristo, fazendo-se substituir por outros que
seriam guardiões e doutores da doutrina e aos quais se comunica o
Espírito Santo, que neles permanece.[4] A eles também se prescreve que ordenem e ensinem a homens fiéis e idôneos aquilo que receberam.[5]
E tudo isso, até o advento de Nosso Senhor Jesus Cristo, que se
revelará a todas as eras como o santo, o único poderoso, o rei dos
reis, o dominador dos dominadores.[6]
Em terceiro lugar, deve notar-se que a instituição do órgão da
tradição está dotada do carisma da indefectibilidade. Com efeito,
Cristo diz: “Estou convosco”. As Escrituras demonstram com freqüência o
que isso significa. Essa locução, sem sombra de dúvida, é empregada em
muitas passagens para expressar uma proteção divina, certa e
invencível. Essa locução não implica um gênero de auxílio eficaz; ela
promete uma assistência infalível para o exercício de determinada
função, excluindo qualquer lapso ou defecção. Promete-se aos apóstolos e
aos seus sucessores uma assistência perpétua de Cristo, não para
qualquer fim que pudesse excogitar a razão humana a respeito do reino
de Deus; não para erradicar todos os vícios, não para impedir todos os
escândalos. Pelo contrário, todas essas vicissitudes estão
discretamente profetizadas. De forma sóbria está dito que no campo do
Senhor haverá cizânia juntamente com o trigo e que ambos crescerão até a
sega. Todos conhecem a rede atirada ao mar que apanha todo gênero de
peixes. Todos conhecem a barca, da qual se diz com admiração que,
apesar de sobrecarregada por tão grande multidão, não submerge. São
igualmente conhecidas outras parábolas do evangelho com sentido
semelhante. Portanto, não diz “estou convosco” aos fundadores de um
reino de perfeita justiça e consumada santidade. Mas diz “estou
convosco” aos que vão ensinar as verdades contidas na revelação do meu
evangelho. À assistência prometida corresponde, pois, uma
indefectibilidade, que garanta a transmissão íntegra da genuína
doutrina de Cristo, de tal maneira que esta possa ser conhecida sem
sombra de dúvida.
Em quarto lugar deve-se examinar o seguinte acerca do órgão da
tradição: a ele Cristo promete uma assistência continua, não apenas por
alguns intervalos de tempo. Não diz que estaria no futuro em certos
dias, em certas circunstancias, por exemplo, quando foram definidos os
artigos de fé, ou quando fosse necessário por um decreto corrigir ou
restituir ao sentido puro aquilo que pela injúria do tempo houvesse
sido adulterado antes por falsa tradição. Mas, todos os dias, diz. E
que significa este “todos os dias”? Significa que estará no ordinário e
quotidiano ministério do magistério, não apenas no seu exercício mais
solene. Realmente, dizendo todos os dias, exclui a menor interrupção,
sequer de um dia, e não deixa lugar para o mínimo desvio. Que significa
todos os dias? Em qualquer século, em qualquer idade. Passará a idade
da Igreja primitiva, com um olhar não veja as suas origens próximas,
nem conte a série de sucessão pela qual se transmite o tesouro da
doutrina celeste, e ainda e sempre vobicum sum. Agora e sempre
estará presente aquele Espírito de verdade que desde o início esteve
presente. Agora e sempre, até que venha a consumação dos santos haverá
aqueles mesmos pastores e doutores colocados por Cristo, a fim de que
não sejamos ingênuos enganados por qualquer doutrina, astúcia ou erro.
Agora e sempre haverá a mesma hierarquia apostólica, que, em razão da
indefectível tradição do evangelho recebido de Cristo, é coluna e
firmamento da verdade.[7]
Em quinto lugar, é preciso dizer que o instituto do órgão da
tradição não é de qualquer gênero, mas ao modo oral ou sempre da viva
pregação. Todas as coisas ditas em breve a respeito da razão, da índole
e perenidade do ministério constituído demonstram isto. Donde se
pergunta: que lugar tem, no sistema bíblico dos protestantes, aquele
órgão permanente, ordinário, perpétuo, ao qual Cristo, por todos os
dias, deveria assistir até a consumação dos séculos? Realmente, nenhum.
Porque, uma vez depositado aquele tesouro da doutrina celeste pelos
que a ouviram no instrumento fixo da escritura, não restava mais nada a
ser feito e toda a obra de ensinar integralmente tudo aquilo que vos mandei se encerrava necessariamente com a idade dos apóstolos ou dos homens apostólicos. Igualmente, significam isso as palavras ensinai, pregai,
em seu sentido óbvio e em sua compreensão natural, não sendo a
escritura senão um meio artificial, acessível a poucos, introduzido como
um auxílio ou suplemento da pregação oral. Com efeito, sabemos por
testemunho certíssimo da história que os apóstolos (aos quais ninguém
acusaria de não ter obedecido à intenção ou ordem de Cristo) nada
escreveram ex professo como algo próprio ou em cumprimento de
uma função especial deles, mas apenas ocasionalmente, como que levados
por um motivo acidental. Diz Eusébio (1. 3 hist. C. 24) que São Mateus
escreveu porque, como pregasse aos hebreus, e se preparasse para ir aos
pagãos, julgou útil deixar para aqueles de quem se afastava um
memorial da sua pregação. Diz também Eusébio (1.2, c. 15) que São
Marcos, não vontade própria nem por ordem de São Pedro de quem era
discípulo, mas em atenção às preces dos romanos, escreveu seu
evangelho. Quanto a São Lucas, diz Eusébio (1.3, c. 24), que só
escreveu porque viu muitos outros temerariamente ter presunção de
mandar por cartas informações que não conheciam perfeitamente, com o
propósito de nos separar das narrações incertas dos outros. E quanto a
São João, diz Eusébio ibidem, que até provecta idade pregou o
evangelho sem nada escrever, e acrescenta São Jerônimo (1. de Scipt.
Eccl.) que por fim foi ele compelido pelos bispos da Ásia a escrever o
evangelho por causa da heresia dos ebionitas que então surgia. De
maneira que, se a heresia ebionista não tivesse existido, talvez não
tivéssemos o evangelho de João, do mesmo modo os outros três se
tivesse havido as referidas ocasiões. Com razão observa Eusébio que
somente dois entre os doze apóstolos escreveram evangelho, mesmo assim
provocados por certa necessidade. “Disto se infere facilmente que os
apóstolos tiveram primeiro a intenção não de escrever, mas de pregar.”[8]
Acrescenta ainda que, se os apóstolos tivessem a intenção de consignar
por escrito sua doutrina, certamente um catecismo ou um livro
semelhante, teriam redigido um livro que recolhesse todo o corpo de
doutrina, quando, ao contrário, escreveram uma história, como
evangelistas, ou epístolas resultantes de alguma circunstância., como
Pedro, Paulo, Tiago, Judas, João. Isto é, pois, sinal indeclinável de
que foram encarregados pelo próprio Cristo de transmitir a verdade
revelada do evangelho, primeiro e principalmente por uma viva e pessoal
pregação.
Vê-se, pois, que os apóstolos e todos os seus sucessores constituem
com eles perpetuamente uma pessoa moral até o presente. Confirma-se
isto, com clareza, a partir das supremas recomendações que os apóstolos
deixaram para a Igreja no mesmo lugar do testamento. Que significa,
realmente, aquilo que Paulo, já próximo da sua paixão, escreve a
Timóteo, em cuja pessoa está compreendido todo o corpo dos bispos? Ó
Timoteo, guarda o depósito. E novamente: Toma por modelo os
ensinamentos salutares que de mim recebeste…Guarda o bom depósito pelo
Espírito Santo que habita em nós. E ainda: Tu pois, meu filho, o que
ouviste de mim em presença de muitas testemunhas recomenda a homens
fieis e idôneos que ensinem a outros. Por essas passagens não se pode
entender a Escritura, mas o tesouro da doutrina, a inteligência dos
dogmas divinos, i. e., tanto o sentido das Escrituras como o sentido de
outros dogmas. Queria-se, como explicam Crisóstomo e Teofilácio, a
propagação da doutrina por meio da Tradição. A isto alude igualmente
Irineu, 1, 4, c, 43, quando diz: “É necessário obedecer aos presbíteros
da Igreja, àqueles que têm sucessão apostólica,…àqueles que, com a
sucessão do episcopado receberam o carisma da verdade segundo o
beneplácito do Pai.
E facilmente se vê isto pelo seguinte. Se se referisse a palavras
escitas, não recomendaria com tanta ansiedade o depósito. Com efeito,
as Escrituras facilmente se conservam em cofres e bibliotecas; mas o
apóstolo quer que sejam conservadas pelo Espírito Santo na mente de
Timóteo. E tampouco acrescentaria: “Recomenda estas coisas a homens
fiéis que sejam idôneos para ensinar a outros”, mas diria, recomenda a
editores que reproduzam muitos exemplares. Não diria: “O que ouvistes
de mim na presença de muitas testemunhas” mas o que te escrevi.
Portanto, o apóstolo não recomenda a Timoteo apenas as palavras mas
também o sentido, e muito mais o sentido que as palavras, e ordena que
transmita pelas mãos aos seus sucessores.[9]
Temos, pois, na religião cristã, por instituição divina, o órgão da
tradição, e esta oral e sempre viva. Refiro-me a um órgão autêntico,
perene, dotado de um carisma de contínua assistência. Digo mais: in se
indiviso e na sua individualidade sempre visível, e isto sobretudo
graças a um centro, uma cabeça, Pedro, que necessariamente, na
hierarquia, ocupa a primazia, (Mt. 10, 2), com o nome misterioso que
lhe foi imposto por Cristo indicando a inconcussa solidez de seu
ministério(Jo. 1-42), para confirmar seus irmãos (Lc. 22, 32); como
pedra sobre a qual foi edificada a Igreja (Mt. 16, 18). Todas essas
verdades devem ser aqui compreendidas conforme as teses que em seu
tratado correspondente se supõe foram provadas e demonstradas. Mas se
tal é órgão da tradição, conforme até aqui foi descrito com base em
solene documento de instituição da Igreja, então resulta sem
dificuldade de compreensão que a tradição de que discorremos nada mais é
que a pregação de geração em geração, pelos sucessores dos apóstolos
com o carisma da indefectibilidade, daquela revelação que receberam
primeiro da boca de Cristo ou de seus apóstolos conforme prescrevia o
Espírito Santo.
Esta é a tradição que reconhece a universal antiguidade cristã. Esta é a tradição evocada por Inácio aos Efésios, n. I doutrina de Jesus Cristo na qual estão os bispos até os confins da terra, por Policarpo ao Filipenses, n. 7, desde o início nos foi transmitida a doutrina, por Irineu, 1, 3, c. 2, a tradição que vem dos apóstolos e é guardada nas igrejas por sucessões de presbíteros, por Tertuliano, Praescript. c. 37, regra que a Igreja recebeu dos apóstolos, os apóstolos de Cristo e Cristo de Deus, por Origines, em de Princip. Praef.n 2. , a pregação eclesiástica por ordem de sucessão transmitida pelos apóstolos, a qual permanece na Igreja até hoje.
Esta é a tradição para a qual apelam os padres do primeiro e segundo
séculos contra os primeiros hereges ou gnósticos. E os gnósticos
igualmente, quando argüidos acerca das Escrituras, respondiam: “Porque
não se pode encontrar a verdade naqueles que ignoram a tradição. A
verdade não foi transmitida por escrito mas por viva voz.[10]
Quanto a esse princípio, os padres não tinham contraditores mas
concordantes absolutamente unânimes. Mas quando eram reconduzidos à
tradição autêntica, então jactavam-se de uma tradição oculta, só a eles
revelada por Valentino ou Marcião ou por Cerinto ou Basílide.
Opunha-se-lhes a tradição autêntica, que é pública na Igreja e tem como
órgão a contínua sucessão dos bispos a partir dos apóstolos e
sobretudo a partir do príncipe dos apóstolos na Sé Romana. Nesse ponto é
célebre o trecho de Irineu em que fez transcrever integralmente a
sucessão episcopal até seus dias, de maneira que houvesse perpétua e
insofismável confirmação de tal verdade.
“Todos quantos queiram podem ver que em toda a Igreja, em todo o
mundo, há uma manifesta tradição dos apóstolos. Podemos enumerar aqueles
que foram instituídos bispos pelos apóstolos nas igrejas e os seus
sucessores até nós, os quais não ensinaram nem inventaram nada que
deles discrepasse. Mas porque seria muito longo citar aqui as sucessões
de todas as igrejas, sobretudo da antiqüíssima, e de todos conhecida,
Igreja fundada pelos gloriosíssimos apóstolos Pedro e Paulo em Roma,
convencemos a todos aqueles que, salvo má fé ou vanglória, concluam que
esta Igreja tem uma tradição que remonta aos apóstolos, uma fé
anunciada a todos os homens mediante a sucessão dos bispos que chega
até nós. A esta igreja, em virtude de sua excelência, é necessário que
se uma toda a Igreja, isto é, os fiéis de todas as partes. Nela sempre
se conservou a tradição apostólica. Tendo fundado e instruído essa
igreja, os apóstolos transmitiram a Lino o episcopado para que a
governasse. Paulo nas epístolas a Timóteo recorda-se de Lino. A este
sucedeu Anacleto. Após este, como terceiro sucessor, foi consagrado
bispo Clemente, que também viu os apóstolos e com eles conviveu, tendo
diante dos olhos a pregação de viva voz dos apóstolos. Com efeito,
havia ainda então muitos que tinham sido doutrinados pelos apóstolos.
Por essa ordenação e sucessão, a tradição apostólica e a pregação da
verdade na Igreja chegou até nós. Esta é uma claríssima demonstração de
que é uma e mesma fé vivifante que na Igreja foi conservada e
transmitida na integridade pelos apóstolos. Sendo, pois, tantas as
provas, não é necessário pedir a outros a verdade, que facilmente se
recebe da Igreja, quando os apóstolos, como num rico depositório, lhe
confiaram todas as verdades. De maneira que, mesmo se os apóstolos não
nos tivessem deixado as Escrituras, não era necessário seguir a ordem
da tradição que confiaram às igrejas? A essa ordem assentem muitas
nações bárbaras, as quais crêem em Cristo, sem as Escrituras, tendo
pelo Espírito a salvação em seus corações e guardando com diligência a
antiga tradição, crendo em um Deus criador do céu e da terra, por Jesus
Cristo Filho de Deus.[11]
Efetivamente, a Igreja considera Cristo o instituidor dessa
tradição. Por ora, antes que avancemos, convém que fique bem clara esta
conclusão.
§ 2
Por que a tradição entendida em verdadeiro e católico sentido
é a regra de fé. E por que o conceito de tradição sob a razão de
simples fato humano, ou da pregação derivada de Cristo e dos apóstolos
apenas com autoridade histórica, é um conceito falso, protestante, que
traz ostensivamente a nota herética.
Em primeiro lugar, é necessário observar que há distinção entre
objeto e regra de fé. Objeto é a verdade a ser crida. Regra, formalmente
e enquanto tal, é aquilo que contém a verdade a ser crida, à qual é
necessário que nos conformemos ao crer, para que creiamos naquilo que
se nos propõe a crer. Portanto, as verdades pregadas pela tradição, a
que podemos dizer tradição em sentido objetivo, são propriamente o
objeto da fé. Mas a mesma pregação eclesiástica, ou a mesma tradição
tomada em sentido formal é a regra de fé.[12]
Sublinhe-se que a regra não dirige de qualquer modo, mas
infalivelmente. Realmente, quem quer seja que siga a regra, enquanto
esta tem força e ato de regra, não erra nem pode errar em nenhuma
ordem. A tradição tem razão de regra fé a tal ponto que guarda,
conserva e transmite infalivelmente as verdades reveladas para nosso
conhecimento. A proposição acima mencionada nos ensina justamente isso:
pela razão desse elemento divino que se acha na tradição é que ela
deve ser reconhecida como instituição e promessa de Cristo. Digo
elemento divino, porque pelos padres foi chamado com vários nomes: verbi gratia, carisma certo da verdade no episcopado em virtude da sucessão, (Ireneu. 1. 4. c.26), operação
do Espírito da verdade, que não permite que as igrejas entendam de um
modo, creiam de outro, porque ele mesmo prega através dos apóstolos (Tertuliano Praescript., c. 28); influxo do Senhor que habita na Igreja, de maneira que a mais diligente investigação não incorra em erro ( Agostinho, Enarra. in Ps. 9, 12); sopro do Espírito Santo para que não se afaste da verdade (Cirilo
de Alexandria, ep. 1 aos monges do Egito.); graça do Espírito pela
qual, embora separados pelos montes e mares, todos instruídos dão
assentimento à mesma doutrina (Theodoret. Dial, de Incommutabili); efeito da sentença D. N. I. C., pela qual se assegura que na Sé Apostólica sempre se preserve inviolada a religião católica,
(Profess. Fidei sub Hormisda ab orientalibus subscripta). E muitas
outras do mesmo sentido é possível encontrar de forma esparsa entre os
padre da Igreja. De maneira que não resta nenhuma dúvida que, tomada em
seu sentido genuíno e católico, a tradição, conforme nos demonstram os
todos monumentos da instituição cristã, é a verdadeira regra da fé.
Ao contrário, muito diferente é o conceito protestante, no qual o
elemento divino é totalmente anulado de sorte que a tradição se reduz ao
simples fato agregado aos fatos gerais da história: isto é, fato dos
homens, sua sagacidade, sua aplicação, seu engenho, que dão
continuidade através dos à escola de Cristo e dos apóstolos. Admitida
tal suposição, fica patente que não sobra nada da regra de fé. Com
efeito, como se observou acima, a regra de fé propriamente falando não é
aquela que apenas possivelmente ou casualmente ou de forma contingente
conserva a genuína e pura doutrina da revelação, mas aquela que também
de direito, necessariamente e per se. Assim, está à flor da terra a
desproporção da humana sagacidade, da aplicação humana a um efeito tão
grande, sobretudo em matéria dos divinos dogmas, na qual pesa ainda
mais o erro protestante conforme Belarmino, 1. 4 De verbo Dei,
c. 12: diversos fatores podem ser impedimentos:o esquecimento, a
imperícia, a negligência, a perversidade, que nunca faltam ao gênero
humano. Mas, por favor, prefiro omiti-las. Conceda-se que não houve
esses impedimentos. Conceda-se que a doutrina divina foi conservada na
pureza da sua verdade através dos séculos em meio a todas as
vicissitudes. Conceda-se que essa conservação seja só de fato
suficiente regra de fé em si mesma. Conceda-se isto (já que não é aqui o
lugar de disputar acerca de matéria mais remota), mesmo assim é
necessário admitir que uma tradição à protestante não é uma regra
suficiente quoad nos. Para nós nenhum outro valor terá tal
tradição humana ou protestante senão aquele que lhe conferir uma
demonstração de sua coerência com a original locução de Deus em Cristo
ou nos apóstolos, unicamente a partir dos critérios e fontes gerais da
história, ou seja, através do confronto, discussão e crítica cientifica
dos monumentos do passado desde os tempos mais antigos. E quem –
pergunto eu – empreenderá um trabalho tão singular não só acerca de
fatos célebres da história mas ainda, e sobretudo, acerca de doutrinas
abstrusas? Quem, em tal emaranhado de rios, distinguirá as águas puras
que procedem de boa fonte, das águas espúrias e contaminadas? Quem
separará o precioso do vil no conjunto das confissões dissidentes que
entre si se digladiam? De todos os modos, portanto, fica patente que a
tradição, entendida na acepção protestante, não é nem pode ser regra de
fé e que, ao menos nesta parte, os velhos reformadores foram coerentes
ao afirmar a Sagrada Escritura, excluída a tradição, como única regra
de fé.
Com efeito, mostrou-se que tal conceito, que resume em si toda a
heresia protestante, está em completa contradição com o evangelho e sua
fundamental economia, e se alguém deseja outras informações
encontrá-las-á no tratado De Ecclesia, onde se fala da
autoridade do magistério. Também é fácil inferir como tal conceito de
tradição contradiz abertamente o senso de toda antiguidade cristã,
conforme se viu pelos poucos documentos mencionados acima. Todavia,
afirmam os protestantes: ‘Demonstra-se claramente que a Igreja mais
antiga só historicamente apelava para a tradição como se vê nas igrejas
apostólicas às quais os próprios apóstolos pregaram, por uma contínua
sucessão até seus tempos do século segundo ou terceiro, e que a fé
transmitida pelos apóstolos não fora ainda corrompida, mas ainda era
íntegra. Mas em tempo posterior, a Igreja tentou suprir aquilo que
faltava à tradição historicamente considerada com base na autoridade que reivindicava para si”[13] Pois eu digo que o afirmam gratuitamente e sem nenhum fundamento.
Para evidenciar isto, deve-se considerar que a prometida assistência
para a guarda incorrupta do depósito e o curso infalível da tradição
na via reta da revelação original não excluía de nenhum modo a oportuna
ordenação de causas segundas para esse fim e a conveniente cooperação
das mesmas. Com efeito, assim age a suave providência de Deus para
adaptar os instrumentos adequados à causa principal, de maneira que
tudo aquilo que o homem pode produzir por sua atividade própria não
seja inutilizado mas se aperfeiçoe e se torne ainda mais eficiente.
Portanto, não pretendemos negar a conaturalidade com o efeito de que
tratamos, o qual é, na verdade, a sucessão e contínua série de bispos
na mesma sede transmitindo um ao outro, quase que de mão a mão, o
depósito da religião. Não pretendemos tampouco remover o elemento
humano da tadição, os auxílios humanos, a dedicação e a solicitude
humanas. Se quiséssemos remover tudo isso, estaríamos em contradição
com o apostolo que exclama: Ó Timóteo, guarda a fé.
Realmente, por que tal exortação, por que tão instante recomendação, se
da parte de Timóteo não se exigisse nada? Queremos encontrar em tais
palavras, não tanto a suprema e suficiente razão da certeza acerca da
conservação da integridade da doutrina revelada, quanto um sinal do
carisma da perpétua assistência de Cristo.[14]
Ademais, deve-se entender que o elemento humano está subordinado ao
divino e se une a ele de tal maneira que no uso do lugar teológico da
tradição os padres reconhecem um duplo argumento. Um pela consideração
do carisma da sucessão apostólica. Outro pela consideração da mesma
sucessão segundo as condições históricas observadas na Igreja desde o
início; o que, ainda que não fosse em si só um argumento apodíctico, em
termos polêmicos, entretanto, era eficacíssimo contra os fautores das
múltiplas seitas, que por si mesmos começavam a inventar novos dogmas:
“Essa sabedoria – diz Irineu 1. 3, c.2, (que Paulo diz entre os
perfeitos), cada um deles diz achar em si mesmo. Cada um deles,
completamente perverso, não se envergonha de pregar corrompendo a regra
da verdade.” Portanto, de ambos argumentos se utilizavam os padres,
tanto os mais antigos quanto os mais recentes. Com efeito, não só os
mais antigos, mas os antiqüíssimos Inácio, Irineu, Tertuliano acima
citados, apontavam, como a razão suma da conservação integral da
doutrina divina pela ordem de sucessão, o carisma da verdade ligado à
sucessão episcopal, à palavra de Cristo, à promessa da vinda do
Espírito Santo que ensinaria a plena verdade. E igualmente, não entre
os mais antigos mas os mais recentes, como por exemplo Atanásio (de
decr. Nicaen. N. 27), Epifánio (1. R. Haeres, 27, n. 6), Optatus (1.. 2
de schism. Don. N.2), Agostinho(epist. 53, n.2 etc), apelam do mesmo
modo para a sentença transmitida pelos padres de geração em geração,
para a doutrina transmitida desde o inicio, para a contínua sucessão
dos sacerdotes sobretudo na Igreja Romana, porquanto, por essa
sucessão, nas palavras de Epifánio, se demonstra a verdade perpetuamente
manifesta. De maneira que, do princípio até hoje, não aparece o
vestígio da oposição imaginada pelos protestantes sem razão alguma.
Assim, pois, temos na tradição, concebida em sentido autêntico e
católico, a regra certíssima da fé. Mas porque a Escritura é
considerada outra regra, cumpre examinar em seguida como uma se
relaciona com a outra.
§ 3
Porque a tradição é a regra de fé, tanto na ordem do tempo,
quanto do conhecimento, quanto da compreensão, tem prioridade sobre a
Escritura, e nisto distingue-se principalmente da Escritura, porque não
é apenas a regra remota , mas também próxima e imediata , de modo que
pode ser considerada sob duplo aspecto.
1. Em primeiro lugar, não se trata de mostrar que a tradição
antecede à Escritura na ordem cronológica. Observa-se isto já no Antigo
Testamento. Com efeito, não houve Escrituras desde o início do mundo,
e, no entanto, houve uma regra a que conformaram sua fé os homens de
Deus. Desde Adão até Moisés houve alguma Igreja de Deus no mundo, e os
homens cultuavam a Deus com fé, esperança e caridade, bem como com
ritos externos, como está patente no Gênesis, onde são apresentados
Adão, Abel, Sete, Enoc, Noé, Abraão, Melquisedeque e outros homens
justos. Mas não houve nenhuma escritura divina antes de Moisés, como
está patente…., porque no Gênesis não há menção à doutrina da
escritura, mas apenas da tradição: “Sei, diz Deus em Gen. XVIII- 19,
que Abraão preceituará a seus filhos e a sua descendência que guardem o
caminho do Senhor.” Portanto, por dois mil anos conservou-se a
religião só pela tradição. Posteriormente, de Moisés a Cristo, no povo
de Deus, embora houvesse as Escrituras, mesmo assim utilizavam-se os
judeus mais da tradição que da Escritura, como se vê em Ex. XVIII- 8,
Deut. XXXII- 7, Jz VI- 13, Sl. XLIII-1, LXXVII-5, Ecli VIII-2”[15]
Nisto consiste a solução de vários problemas, pois nos livros de Moisés
há tão poucos ensinamentos acerca da vida futura, dos prêmios e
castigos eternos, e, de modo geral, acerca de muitas verdades que são
os fundamentos da vida moral e religiosa. Sublinhe-se: é esta uma
grande solução, pois a Escritura superveniente supunha uma antecedente
regra da tradição, e a mantinha em seu pleno vigor. Mas talvez tenha
ocorrido de modo diverso na economia do Novo Testamento? Muito pelo
contrário, no Novo Testamento demonstra-se por fatos mais luminosos a
precedência da tradição, pois todos os monumentos das origens cristãs
mostram as igrejas fundadas pelos apóstolos sem as escrituras e com
plena vitalidade. Não tinha ainda Mateus escrito e já a Igreja por toda
a Judéia, Galiléia e Samaria estava edificada caminhando no temor do
Senhor (At. IX-31). Tampouco Marcos, e já a Igreja Romana, cuja fé se
anunciava em todo mundo, (Rom. 1-8). Tampouco João, e já tinha fundado
todas as igrejas da Ásia e governava as igrejas, como escreve Jerônimo
em 1 de script. eccles. Às igrejas já existentes eram dirigidas todas
as epistolas apostólicas, como está claro por suas inscrições. Em suma,
não a um instrumento escrito apelava Paulo, quando dizia aos Gálatas,
que tentavam afastar alguns do reto caminho do evangelho: “Se alguém
vos evangelizar algo diferente do que aprendestes seja anátema (Gal.
I-9).” E aos coríntios diz: “Da minha parte vos louvo, irmãos, porque
vos lembrais de mim em tudo e conservais os meus preceitos como vos
transmiti.” E acrescenta: “Com efeito, o que recebi do Senhor também
vos transmiti: que o Senhor Jesus, na noite em que ia ser entregue,
etc”. Deve-se dizer, portanto, que desde o inicio houve um só regra
da tradição, e que a subsequente chegada da Escritura não pôde
subvertê-la como meio fundamental da conservação e propagação da
doutrina revelada, meio este constituído de uma vez para sempre na
Igreja, mas para que a ela subordinasse e servisse cada vez mais.
2. Mas ainda que a regra da tradição não antecedesse a regra da
Escritura na ordem do tempo, antecedê-la-ia sempre na ordem do
conhecimento. E com razão, a tradição brilha como regra de fé pelos
mesmos argumentos pelos quais brilha a credibilidade da religião cristã
ou da Igreja católica. Com efeito, demonstrados esses argumentos,
demonstra-se pelo mesmo argumento tanto a revelação da Igreja católica
como instituída por Deus quanto o estabelecimento daquele órgão do
magistério perene como fundamento da mesma Igreja.[16]
Demonstrando-se isso, conclui-se que a pregação desse magistério é
conduzida por Deus para que a ela sempre se conforme a fé dos crentes.
Fica claro, pois, pelo que foi dito que se considera a tradição como
regra de fé obrigatória, visto que a pregação da Igreja e a tradição
autêntica, de que nos ocupamos agora, se identificam. Não importa o
método ou processo na demonstração da verdadeira religião: se se toma o
princípio da argumentação seja das notas divinas inerentes à Igreja,
seja dos monumentos históricos da missão, advento e obra de Jesus
Cristo, conforme a dupla norma do Concílio Vaticano, Sessão 3, cap. 3.[17] Permanece sempre a regra da Tradição.
O mesmo não ocorre com a Sagrada Escritura. Com efeito, sem uma
demonstração prévia dos preâmbulos da fé ou sem uma teologia
fundamental, ignora-se absolutamente se as Escrituras são inspiradas
por Deus. Pois, ainda que não existissem as Escrituras, subsistiriam os
mesmos princípios da demonstração; igualmente a mesma conclusão a que
conduzem os princípios. Porque, se casualmente ao longo da
demonstração, ao tratar do monumento histórico da revelação que nos
trouxe Jesus Cristo, se encontrarem os testemunhos de Cristo pelos
quais se confirma a fé dos judeus na Lei e nos Profetas, ao mesmo tempo
e como que acidentalmente, pode-se também chegar ao conhecimento das
mesmas Escrituras do Antigo Testamento, que se chamam protocanônicas,
mas acerca das Escrituras do Novo Testamento não se encontra
absolutamente nada. Mas, ao contrário, se se procurar um testemunho
idôneo acerca dessas Escrituras fora da autêntica tradição, não se
encontrará tal testemunho senão nos escritos dos padres apostólicos.
Além do fato de que o conhecimento da autoridade dos apóstolos como
órgãos de promulgação da revelação já supõe conhecida a regra da
tradição que deles decorre: pergunto o que se encontrará, nos escritos
apostólicos a respeito das escrituras inspiradas do Novo Testamento,
como formalmente inspiradas? Absolutamente nada salvo aquele conhecido
inciso da segunda epistola de Pedro, III-16, acerca das epístolas de
Paulo. Mas as epístolas de Paulo não são todas e nem de longe as mais
importantes escrituras do Novo Testamento. Ademais, ainda que ao tempo
em que escrevia Pedro já fossem editadas as epístolas de Paulo, não
poderia dizer algo incerto. Em suma, esta segunda epistola de Pedro é
repelida como suposta e não genuína precisamente por aqueles que
professam um juízo fundado exclusivamente nos documentos escritos. De
todos os modos, portanto, o sistema protestante é como um pêndulo no ar,
carecendo de fundamento. Não é falso compará-lo com o sistema do mundo
da cosmogonia dos hindus, que edificam o universo à maneira do
elefante que põe os pés sobre quatro tartarugas sem que digam o que é
aquilo em que as próprias tartarugas se apóiam. Mas ao contrario, do
órgão da tradição, a que Cristo confiou o múnus de ensinar-nos toda
verdade, com direito e razão recebemos a verdade revelada da integral
Escritura canônica inspirada, de tal maneira que pela Tradição a
Escritura brilhe e seja por isso mesmo na ordem do conhecimento
posterior.
3. Ademais, a Tradição antecede à Escritura também na ordem da
compreensão, porquanto, efetivamente, não na Escritura, mas na Tradição a
doutrina revelada foi integralmente depositada. Digo isto não só
porque, como se viu há pouco, nem sequer o cânon da Sagrada Escritura
nela mesma está contido, mas também porque ela mesma em vários lugares
nos remete à Tradição, como à fonte de certos dogmas que não estão
escritos, conforme demonstra São Roberto Belarmino a partir de I Cor.
XI-2, 2Tes. II-14, 2Tim I-13, 3 Jo. XIII. Mesmo porque, como vimos, a
redação dos livros do Novo Testamento resultou de circunstâncias
contingentes, o que comprova cabalmente não ser intenção de Deus que
tivéssemos nos livros sagrados o depositário completo da verdade
revelada. Mas, ao contrário, vê-se assim na Tradição um precioso
depositário. Com efeito, é a Tradição o primitivo, o principal
instrumento estabelecido por Cristo. A ela foi em seguida confiada a
própria Escritura. Digo que lhe foi confiada a Escritura não só em
ordem ao seu conhecimento, de maneira que se conhecesse qual a
Escritura que se deveria receber como realmente inspirada por Deus, mas
também quanto ao conhecimento do seu sentido, que na ausência de uma
chave de interpretação, ou ficaria obscura ou incerta. Conclui-se,
pois, que no depósito da tradição de algum modo se contém igualmente a
revelação escrita, e, por conseguinte, a totalidade da revelação.
Assim, pois, a tradição é a regra da fé antecedente em todos os
sentidos, no tempo, no conhecimento, na compreensão. Pergunta-se por
fim: regra remota ou próxima? Digo que é a remota e a próxima, seja
considerada uma ou outra.
4. Efetivamente, não se dissolvendo a tradição, mas mantendo-se pelo
decurso dos séculos até nós, a pregação da Igreja é recebida de duplo
modo. Primeiro, nos anéis interpostos das idades antecedentes dos quais
deriva e mediante os quais sempre continua com a pregação daqueles que
foram os primeiros e imediatos pregoeiros da palavra revelada. Depois,
considerada separadamente, em qualquer fase do tempo. Do primeiro
modo, portanto, a pregação da Igreja é a tradição, sob a precisa razão
da transmissão da doutrina revelada como que de mão a mão desde os
apóstolos, ou tradição à maneira reduplicativa, como um canal
ininterrupto que vem da fonte através dos séculos, e sob este aspecto é
a regra remota da fé católica. Com efeito, considerada assim, só
brilha à luz de uma investigação dos monumentos da antiguidade, ou seja
pelo estudo das obras que desde a antiguidade conduzem ao conhecimento
da sentença, da profissão e da fé que havia outrora acerca do doutrina
cristã, seja considerada na sua integridade seja em cada cabeça. Só tem
ou pode ter razão de regra próxima mediante a investigação e avanço da
ciência teológica se conhece aquilo que contém os dogmas. Pois deve-se
examinar a pregação eclesiástica, já não considerada em coerência de
continua sucessão desde a primeira origem da revelação, mas
absolutamente em seu exercício em determinado tempo. Sob este aspecto, é
sempre a tradição, na medida em que sempre transmite aquilo que
explicita ou implicitamente recebeu dos maiores, mas já é a tradição
sob uma precisa formalidade da autoridade do magistério que
discretamente propõe e explica o que é necessário crer segundo a
revelação que vem dos apóstolos. E assim também é regra próxima e
imediata da fé, que com o infalível e sempre vivo magistério da Igreja
católica, como formalmente é magistério, justamente se identifica.
Mas de qualquer modo que se considere a tradição, seja como regra
próxima ou remota, observe-se com atenção isto: o seu autêntico órgão
não teria sido instituído por Cristo para conservar ou propor fórmulas
materiais e inertes, mas o verdadeiro sentido da verdade revelada, e
por isso o múnus de transmitir, guardar e propor infalivelmente o
depósito da fé é inseparável do múnus igualmente infalível de definir,
declarar e explicar o que nele está contido. Pois bem, se a tradição
não é apenas conservativa, mas também explicativa de toda a palavra de
Deus, tanto escrita quanto não escrita, certamente algo nela, no
decurso dos séculos deve ser reconhecido sem sombra de dúvida: não
contradiz de nenhum modo a imutabilidade do dogma, em suma nada detrai
do conceito de depósito, no qual não é lícito nada subtrair ou agregar.
Se isto ficar claro em conclusão deste capítulo já terá valido a pena
esta obra.
§ 4
Do que ficou dito resulta o seguinte: a tradição teve ao longo dos
séculos certa evolução mas ao mesmo tempo uma absoluta imutabilidade e
consenso sempre no mesmo dogma, mesma sentença, de maneira que, para
investigar o sentido tradicional, as suas regras específicas diferem de
longe daquelas que regem a ciência histórica e são as que foram
estabelecidas com razão pelos Padres.
Convém, pois, formular o conceito verdadeiro e genuíno de tradição,
considerando para tanto o que foi dito até agora e examinando não só o
que daí resulta mas também o que não resulta. E para que não nos seja
atribuída a pecha de divagação comecemos logo pelo que resulta.
Em primeiro lugar, não se deve dizer que todas as verdades
pertencentes ao depósito da fé deviam constar de um mesmo modo tanto na
primitiva pregação dos apóstolos quanto na posterior tradição, em
virtude das diferentes condições dos lugares e dos tempos. Com efeito,
uma coisa é o conjunto de verdades de fé e moral de que consta a
doutrina cristã transmitida desde o inicio e sempre sob o carisma da
infalibilidade; outra coisa, porém, é dizer que todas foram sempre
propostas de forma igualmente explícita[18] expressa[19] e concisa[20]
Pois isto nada tem em comum com a indefectibilidade da norma da
verdade, como se pode ver pelos termos, exceto o fato de a proposição
plena de toda a doutrina, desde o início, dificilmente ter sido
conaturalmente possível, e, por outro lado, era menos necessária,
porque simultaneamente com o depósito dos dogmas o carisma do Espírito
Santo para a explicação dos mesmos segundo as necessidades de cada
período transmitia-se aos sucessores dos apóstolos em cumprimento da
promessa e da instituição de Cristo. Faça-se uma reflexão atenta sobre o
que há pouco foi dito acerca do duplo múnus dos guardiães e doutores
da fé.
Ademais, se da infalibilidade da tradição muito pouco resulta, todas
e cada uma das verdades pertencentes objetivamente ao depósito da fé
deveriam brilhar sempre no candelabro da Igreja em distinta e explicita
clareza das suas notas. Mas isto não ocorre: não poderia haver no
grêmio da Igreja doutrinas a respeito das quais há diversidade de
opiniões ou sentidos. “No entanto, existem algumas verdades –
demonstra-se a partir de todas aquelas definições dos concílios ou
pontífices, que declaravam como verdades de fé – a respeito das quais
antes da definição os doutores católicos, sem detrimento da fé e da
comunhão, seguiam sentenças diversas, convergindo por outro lado em
afirmar que tais doutrinas ainda não pertenciam manifestamente ao
depósito da fé. Conclui-se, outrossim, que ainda hoje são muitas as
questões teológicas pouco definidas, que entretanto concernem a alguns
sentidos da doutrina revelada, até que, terminada a análise da doutrina
revelada, pareça poderem ser definidas pelo infalível magistério. Por
essa razão, são familiares aos padres as distinções entre substância
da fé que é a mesma para todos, e entre as questões de mais profunda
inteligência, (Iren, 1. I, c. 10, n.23). Entre as doutrinas que muito
manifestamente se ensinam nas igrejas, algumas são definidas pelo
magistério da Igreja, a respeito delas há uma só sentença da Igreja, e
outras devem ainda ser investigadas acerca da Sagrada Escritura e
pesquisadas com sagacidade, não estão completamente esclarecidas, não
foram explicadas pelo magistério, não têm o brilho de uma exposição do
magistério (Origen., de princip. In praefatione). Distingue-se na
doutrina cristã entre a regra da fé que para nós não tolera
questionamentos, e aquilo que, salva a regra da fé pode ser questionado
(Tertull., Praescript. C. 13). Uma coisa é o que pertence aos próprios
fundamentos da fé, e outras são aquelas nas quais, amiúde, até os
doutíssimos e excelentes defensores da fé não estão de acordo, e um
diz, sobre o mesmo assunto, algo melhor e mais verdadeiro que outro
(August., lib. I Contra Iulian., c. 6). Distingue-se o erro tolerável
nas questões não devidamente solucionadas, ainda não esclarecidas pela
suprema autoridade da Igreja, e erro não tolerável, que ameaça o
fundamento da mesma Igreja (August., Serm. 294, n.4). Distingue-se
finalmente uma pequena porção da nossa fé menos elucidada, e outra que o
Senhor não quer que ninguém em sua Igreja ignore (Leo M. epist. 30 ad
Pulcheriam, c. 2)”.
Em suma, em qualquer tempo houve ulteriores conclusões da doutrina
revelada que, contidas menos obscuramente no depósito transmitido pelos
apóstolos e ainda não ilustradas pela plena luz de uma diligente
investigação, não passaram para próxima regra da fé ou suficiente
proposição do magistério eclesiástico. De modo que, a respeito de tais
conclusões, pode às vezes não haver sentença harmoniosa no grêmio da
unidade, antes de encerrada a controvérsia pela autoridade da Igreja.[21] E isto não milita contra a reivindicada infalibilidade da tradição.
São realmente distintas as doutrinas que derivam de modo necessário
da absoluta assistência de Deus. Em primeiro lugar, deve-se dizer que é
impossível que uma opinião defendida por qualquer homem ou doutor
privado obtenha uma aprovação geral como se fosse doutrina de fé e
prevaleça na Igreja sob o eminente nome de divina tradição. Sirva de
exemplo a opinião dos milenaristas que, introduzida inicialmente por
Papias por causa de sua nímia simplicidade, e por causa de reverência
devida ao homem que tinha convivido com os apóstolos, foi recebida e
divulgada por alguns dos mais ilustres padres do terceiro século, e
posteriormente foi condenada por unanimidade e a partir do século
quarto em diante proscrita entre as fabulas.
Em segundo lugar, deve-se dizer que, efetivamente, se algum ponto de
doutrina, considerado inicialmente mais obscuro na profissão de certo
principio mais universal, ou conservado mais pelo uso que pela expressa e
formal pregação, começar depois a entrar em controvérsia quanto à sua
origem de divina tradição, havendo diversas opiniões divergentes a
respeito, até que tal questão seja clarificada, tal ponto de doutrina
será conduzido ao brilho do pleno consenso: resulta – digo eu – que é
absolutamente necessário que uma doutrina de tal natureza pertença ao
genuíno e autêntico depósito do qual é guardiã a Igreja. Como se vê, é
admirável a providência de Deus que não permite que a tradição se
afaste do reto caminho, graças ao carisma certo da verdade de que
fala Irineu 1. 4, c. 26; graças ao paráclito doutor da verdade que não
deixa as igrejas entender nem crer de modo diferente daquele que
receberam dos apóstolos, como diz Tertuliano em Praescript. c. 28;
graças ao Espírito Santo que habita a Igreja, a fim de que a
investigação acuradíssima não siga nenhum erro, como diz Santo
Agostinho in Ps. 9, n. 12, e em outras passagens amiúde.
Em terceiro lugar resulta que nem tudo aquilo que pelo órgão da
tradição é ensinado como dogma é exatamente uma verdade revelada de modo
infalível por Deus, mas uma proposição de fé que atravessa os séculos
com idêntico sentido desde o início da pregação. Com efeito, a pregação
consiste no sentido, não nas palavras; é próprio dos heréticos
arrastar para debaixo das palavras e fórmulas da tradição católica
sentidos diversos daqueles que eles encontraram estabelecidos pela
Igreja. Assim, Sabélio conservava a Trindade, mas apenas nominalmente.
Igualmente Ario confessava o Padre, o Filho e o Espírito Santo, mas
como três hipóstases de diversa substância, mas não como de uma só,
indivisa e criadora essência. De modo semelhante, Nestório afirmava uma
só pessoa de Deus e de homem em Cristo, mas de tal maneira que não se
dissesse que o Verbo está de forma subsistente unido à carne. E Pelágio
afirmava a divina graça, mas entendendo por graça o livre arbítrio,
que realmente, em sua ordem, é também um dom gratuito de Deus.
Berengário concedia uma presença sacramental, mas mística, não real,
segundo uma simbólica representação, não segundo a verdade da
substância. De modo semelhante ocorre com os outros, aos quais sempre
foi comum distinguir-se por um novo sentido contra o sentido católico,
pelo que incorrem em erro, pois aquele sentido de que se afastaram é o
sentido imutavelmente verdadeiro. De modo que é falsa doutrina dizer que
no estilo da Escritura se encontra outra doutrina: ‘Roguei-te, diz,
que ficasses em Éfeso…a fim de impedir que outros ensinassem
diferentemente.[22]
E reitera: “Admiro-me de que tão rapidamente passeis para outro
Evangelho, que não é outro, senão porque alguns vos conturbam e tentam
afastar-vos do Evangelho de Cristo.”[23]
Efetivamente, em qualquer tempo, acerca do dogma da fé dizer algo
diferente daquilo que do mesmo dogma se dizia antes será tido por
heterodoxia por oposição à ortodoxia, e toda sentença herética
facilmente e sem discussão será conhecida só pela inovação, na medida
em que induz a um sentido diverso daquele aprovado pela tradição e
pregação daqueles a quem disse Cristo: Eis que estou convosco todos os
dias. De resto, inutilmente recorrerão às Escrituras. Com toda razão
diz Tertuliano que as Escrituras não formaram as igrejas, mas às
igrejas já formadas são elas endereçadas, de maneira que primeiro se
deve investigar, de quem são as Escrituras e quem retém a chave de sua
interpretação. Debalde igualmente apelarão para uma mais sublime gnose,
superior inteligência. Pois os antiqüíssimos padres excluíam esse
pretexto dos gnósticos, mostrando contra os hereges o caminho régio, a
antiga Igreja que antecede todas as seitas e as vê separar-se. Estas
são as escolas onde se disputa, aquela a única Igreja de verdadeiro
nome em que se crê em Deus. Por conseguinte, quem, sob qualquer
pretexto contra a tradição da Igreja se insurgir, inventando novos
sentidos, deixa de ser fiel, afasta-se do tranqüilo porto da divina
verdade e se lança no tempestuoso mar das opiniões humanas. Por fim,
inutilmente recorrerão ao tempo remoto das origens, pois talvez valesse a
exceção se a imutabilidade da tradição com o mesmo sentido e a mesma
sentença tivesse outro fundamento que a assistência de Cristo e a
promessa de Cristo. Entretanto, sempre vale o mesmo argumento que os
mais antigos padres opunham aos inovadores. “Por isso, dizeis: O
evangelho foi pregado em todas as nações, o mundo creu, fez-se a
Igreja, cresceu, frutificou, mas a imperícia dos maus interpretadores
depois errou e pereceu; só entre nós e aqueles que nos seguem na terra
permaneceu a Santa Igreja. A verdade evangélica, bem como a autoridade
inviolável dos profetas e santos padres, refuta tal vaidade sacrílega.
Porquanto à sua Santa Igreja, no seu evangelho, o Senhor promete
dizendo: “Eis que estou convosco todos os dias até a consumação do
século. É, pois, falso o que crês e afirmas a respeito do corpo de
Cristo.[24]
Em quarto lugar, quando se trata daqueles dogmas em que consiste a
suma de toda a religião cristã, cumpre dizer que aquelas coisas que
desde o início foram propostas imediatamente pela Igreja como dogmas
explicita e formalmente por essa mesma razão não podem ser assunto de
grande dificuldade, mas basta uma demonstração teológica com base na
tradição. Santo Agostinho oferece-nos quatro regras que simplificam
toda a matéria. A primeira regra diz que não é necessário despender
todos os testemunhos dos padres, quando a tradição consta de atos
públicos, autênticos, universais, como, por exemplo, no concernente ao
pecado original, ao batismo das crianças para a remissão dos pecados e
ao exorcismo que a Igreja faz sobre as crianças.[25]
A segunda regra diz que, se for necessário decidir a matéria a partir
de testemunhos particulares, com razão se pode contentar só com o
testemunho da Igreja Ocidental. E a razão que se aduz é não só porque
tem o especial privilégio de ter em seu seio a Sé Apostólica, com a
qual está mais intimamente unida, mas também, e sobretudo, porque na fé
dos latinos brilha suficientemente a fé dos orientais, já que eles
mesmos são principalmente cristãos e em ambas as partes da terra existe
uma só fé e tradição.[26]
A terceira regra, aliás muito semelhante à precedente, diz: “Se se
quer produzir testemunhos seja dos latinos seja dos gregos, não é
necessário citar muitos autores, mas basta um ou outro doutor
respeitado por sua autoridade, de maneira que por ele se conheça o
pensamento dos outros. E isto por causa da unanimidade da Igreja
conduzida por um só espírito e uma só tradição. Foi justamente isso que
sublinhou São Vicente de Lerins no segundo Communitorium nº
30, onde, após enumerar aqueles dez padres cujos testemunhos são
citados no Concílio de Éfeso, acrescenta: “Todos esses são, pois,
mestres, conselheiros, testemunhas e juízes perante o Concílio de
Éfeso. Abraçando a sagrada doutrina deles, seguindo a doutrina desses
padres, crendo-lhes no testemunho, obedecendo-lhes ao juízo sem nenhuma
reserva, preconceito ou favor, o Concílio pronunciou-se a respeito das
regras da fé. Embora pudesse mencionar um número muito maior, não foi
necessário, pois não convinha perder tempo com uma multidão de
testemunhas, e ninguém duvidou que aqueles dez pensassem diferentemente
que todos os outros seus colegas.[27]
Por derradeiro acresce uma quarta regra que diz que o sentir unânime
da Igreja presente é prova idônea do sentir antigo, na medida em que,
tendo o conhecimento daquilo que hoje na Igreja se conserva, não se
pode pensar que fosse diferente a fé nos séculos pretéritos.[28]
Ademais, esta regra de Santo Agostinho, que concerne especialmente à
nossa matéria, porquanto esclarece o sentir da Igreja contemporânea
acerca dos dogmas da nossa religião, é um sinal evidente de que o
sentir de hoje não é de forma alguma diverso do da antiguidade. Nisto,
como que em última conseqüência das premissas consiste a infalibilidade
da tradição. E se prescindirmos daquelas ulteriores determinações da
fé que só com o decorrer do tempo, como se viu acima, lançaram luz aos
dogmas, (porque esta consideração nos afastaria do nosso propósito),
mas nos limitamos a falar apenas daquelas coisas que constituem uma
súmula da religião cristã, que lhe pertencem como fundamentos da
doutrina revelada, que Nosso Senhor quis que ninguém em sua Igreja
ignorasse, do mesmo modo como se exprimiam os supracitados padres, logo
ficará patente a verdade da conclusão. Aquelas verdades fundamentais,
com efeito, desde as origens foram propostas explicitamente como
dogmas na tradição e no magistério da Igreja; além disso, tudo aquilo
que uma vez se propõe na tradição como dogma, assim permanece para
sempre no mesmo sentido tal como foi transmitido e crido. É, pois,
necessário que seja ainda retido esse sentido que firmemente desde o
princípio mantido, e por isso, em suma, não se pode conceber que aquelas
verdades que chegaram a nós sob a égide dos santos padres e sempre
gozaram de autoridade na Igreja venham a ter outro sentido, diferente
daquele que se ensina e crê e se transmite à posteridade à maneira de
um depósito inviolável.
Não obstante, hoje há os neo-críticos dizendo que nada prevalece
contra o fato positivo. Há muitos antigos padres que de fato pensaram
de modo diferente de nós acerca dos dogmas da religião, inclusive em
assuntos essenciais, como, por exemplo, a propósito da trindade, da
encarnação, do pecado original, da graça etc. Porque – dizem – os
padres anteriores à Nicéia expressaram a processão do Filho e do
Espírito Santo em termos que encerram idéias falsíssimas e
completamente diversas das nossas, como, por exemplo, as idéias do
triteísmo, da desigualdade das pessoas, até mesmo a idéia da
corporeidade de Deus. Realmente, os antigos até Cirilo de Alexandria
inclusive, não pensam mais retamente da encarnação do que pensou depois
Eutiques e não foi senão a custa de longas disputas posteriores que
vemos delineado o dogma antes informe da união hipostática. Muitos,
antes de Santo Agostinho são verdadeiros pelagianos ou certamente
semipelagianos. Crisóstomo e os outros gregos não sabem nada sobre o
pecado original etc. Assim agora opinam os nossos críticos, que
entretanto não acrescentam nada de novo, mas trilham as vias dos
socianistas e calvinistas, colhendo com fácil erudição os lugares da
patrística de que se utilizam junto às obras de controvérsia de Petavio
ou Bossuet contra Jurieu e Ricardo Simão[29].
De resto, em que pese a fonte de sua erudição, o fato indubitável é
que o método de interpretação por eles adotado é protestante, o qual,
certamente, padecendo do mesmo defeito que eles, conduz às mesmas
errôneas conclusões. Além disso, antes desse defeito ou de qualquer
outro, importa considerar o que deu azo à divulgação de opiniões segundo
as quais os antigos padres da Igreja são tidos por heterodoxos, de
maneira que, restabelecido o estado da questão, esta possa ter uma
solução de um juízo equânime. Disto se ocupará o próximo capitulo.
Capítulo II
Sobre a causa das aparentes oposições aos testemunhos da tradição
“Inclinamo-nos mais às coisas opináveis que à verdade. Realmente, esta é austera e grave.”
(Clemente de Alexandria, 1,7, Strom. C. 16)
(Clemente de Alexandria, 1,7, Strom. C. 16)
Porque a doutrina da tradição, embora seja sempre a mesma, nem por
isso é sempre examinada do mesmo modo, escoimada e polida, mas recebe
com o passar do tempo, sobretudo na ocasião do surgimento das heresias,
maior evidência, luz, precisão. Em termos gerais, distinguem-se três
estados referentes a cada dogma: estado de simples fé, estado de
explicação perfeita e estado intermediário, quando começava a passar do
estado de simples fé ao estado de especulação teológica, e, por causa
da multíplice dificuldade das origens, ainda havia exposições menos
exatas e modos de falar por vezes ambíguos. Tais exposições do dogma,
ainda que não completamente compatíveis com o sentido ortodoxo, dele,
entretanto, se aproximam se se levam em conta os princípios da exegese
patrística.
§ 1
Diz Santo Tomás no prólogo do opúsculo Contra errores Graecorum:
“Os erros acerca da fé deram ocasião de surgirem os santos doutores da
Igreja, para que transmitissem aquelas coisas que são de fé com maior
circunspecção eliminando os erros, como está patente que os santos
doutores anteriores ao erro de Àrio não falaram tão claramente a
respeito da unidade da essência divina como os doutores posteriores; e o
mesmo se dá com relação aos outros erros, o que não aparece em vários
doutores aparece expressamente só no mais egrégio dos doutores Santo
Agostinho. Pois em seus livros publicados após o surgimento da heresia
pelagiana falou com mais discrição sobre o poder do livre arbítrio do
que nos livros que havia publicado antes do surgimento dessa heresia,
nos quais, defendendo a liberdade do arbítrio contra os maniqueus,
formulou algumas idéias que os pelagianos depois tomariam em própria
defesa contradizendo a divina graça. De maneira que não é de admirar se
os modernos doutores da fé, após os vários erros surgidos, falam mais
cautamente e com maior rigor sobre a doutrina da fé para evitar toda
heresia. Por conseguinte, se nos escritos dos antigos doutores se
encontra alguma coisa que não se diz com cautela hoje, não se deve
desprezar ou rejeitar tal coisa, mas, ao contrário, convém
desenvolvê-la e expô-la com reverência.” No referido lugar o doutor
angélico, que havia tomado tal doutrina, como de costume, de Santo
Agostinho, diz: “Aprendemos, a respeito do dom da perseverança, n. 53,
que todas as heresias suscitaram para a Igreja suas próprias questões
contra as quais mais diligentemente se defenderia pela Sagrada
Escritura do que se não a compelisse nenhuma necessidade. E em outra
passagem o mesmo Santo Agostinho observa que não importa buscar nos
padres que escreveram antes do surgimento das heresias um modo tão
acurado de falar como naqueles que escreveram mais tarde: seja porque,
não movidos por nenhuma questão e julgando compreender tudo na Igreja
conforme o bom senso, falavam com mais segurança; seja porque, tocando
brevemente e de passagem as matérias ainda não discutidas, detinham-se
mais naquelas matérias em que combatiam os inimigos da Igreja de então,
e também nas exortações sobre as virtudes com que se serve a Deus para
alcançar a verdadeira felicidade.[30]
E tal resposta genérica, não ao modo dos teólogos, é também de
Atanásio, Jerônimo, Lerins e de outros. Esta é a regra na teologia, e a
solução das dificuldades no concernente à tradição, cuja doutrina é
realmente sempre a mesma, mas não sempre do mesmo modo clara e
expressa. Com efeito, como diz São Vicente de Lerins, cresce, com o
tempo, em evidência, luz, distinção ou precisão, sobretudo nas ocasiões
de ressurgimento das heresias. Pois são as mesmas heresias que criam
especial necessidade de escrutar os dogmas, examinar os conceitos em que
se formulam, propor distintamente as notas que neles se discernem,
reunir-lhes os modos de compreensão e significação pelas mesmas
realidades compreendidas e significadas, encontrar ainda os vocábulos
idôneos pelos quais coisas tão profundas possam expressar-se, em suma,
aperfeiçoar todas aquelas coisas atinentes à explicação teológica, e
tudo isso só pode obter por uma laboriosíssima e acurada investigação.[31]
Está patente, pois, que uma é a simples noção dos dogmas que se
conserva pela simples fé, outra é a noção esclarecida, polida, exata que
o teólogo busca para a inteligência da fé. Patenteia-se, outrossim,
que na especulação teológica sempre há algo oferecendo dificuldade e
algo propondo uma solução da dificuldade. Por essa razão ocorreu que,
antes do laborioso estudo de todas aquelas matérias que as heresias
produziram e obrigaram a dever de estudo, os tratadistas católicos
laboraram em certas ambigüidades, que não se encontram em teólogos
posteriores.[32]
Assim, por exemplo, o Filho de Deus é Deus, não é consigo também Pai, e
há testemunhos eloqüentes desta fé perpétua em todo tempo. Mas quando
chega a ocasião de tratar que é Deus de Deus, Deus procedente do Pai,
Deus gerado por Deus gerante, a palavra muitas vezes se confunde. Antes
de ser depurado o conceito das origens divinas pela dúplice via da
remoção e da excelência e clarificado em vista da distinta noção das
relações subsistentes, toda a explanação do mistério será deficiente e
imperfeita. A respeito de não gerado e “inascível em” parecerão falar
como se a “inascibilidade” contivesse algo de mais perfeito; de geração
divina como se tivesse mesclada eficiência, que, realmente, para nós,
implica toda ação de gerar; de Deus gerado, como se esse gerado
dependesse do seu princípio, como nas criaturas o originado depende do
seu originante. E esta imperfeição no modo de expor e dizer não se
supera completamente senão quando a necessidade de responder às
molestissimas questões dos hereges conduz as mentes às locuções mais
precisas.[33]
O mesmo ocorre quando se fala do dogma da encarnação. Um e o mesmo é
o filho de Deus e o filho do homem, filho de Deus desde toda
eternidade, filho do homem no tempo, que permanecendo o que era começa a
ser o que não era. Esta é a nua e simples fé. Mas quando se trata de
considerar de que modo se juntou a humanidade pela união física e
substancial àquele que em forma de Deus preexistia e subsistia, não é
fácil explicar porque tudo depende de conceitos precisos e claros da
união na natureza, da união na pessoa e das diferenças formais de
ambos. Pelo que nos primórdios da ciência teológica que antecedeu as
heresias categóricas sobre a união hipostática, devido à dificuldade de
exprimir aquelas coisas acerca das quais não havia ainda uma
terminologia fixa e rigorosa, não se pode deixar de encontrar certos
conceitos, que mais tarde, graças às contribuições eruditas dos
doutores, parecerão ambíguos e até inconciliáveis com a fé na inconfusa
união da divindade e humanidade em um só sujeito do Verbo.[34]
Com relação ao dogma do pecado original, verifica-se a mesma coisa. Trata-se de verdadeiro pecado, mas pecado sui generis,
que não se diz de forma unívoca com o pecado de todos conhecido.
Pecado, digo, da natureza, não da pessoa; pecado voluntário não da
vontade própria, mas só da vontade da cabeça da espécie humana, pecado
que do primeiro pai passou para a descendência, mas quanto à macula,
não quanto ao ato, em suma, pecado que de certo modo se diz alheio e de
certo modo também nosso: alheio pela propriedade da ação, nosso pelo
contágio de propagação. Por isso, a criança recém-nascida em algum
sentido é inocente, e em outro sentido pecadora; porquanto o grande
pecado de Adão até certo ponto passou para a posteridade e até certo
ponto não. Por isso, finalmente, se antes do surgimento da heresia
pelagiana, há lugares da patrística em que brilha a verdade do pecado
original, outros lugares há igualmente em que a doutrina parece confusa
e de algum modo obscurecida.[35]
Não de outro modo se deve dizer a propósito do dogma da graça,
porque se a graça simplesmente precede ao mérito da boa vontade, mas
também a boa vontade do homem precede muitos dons de Deus, e sobretudo o
dom pelo qual nos tornamos e somos justos: enquanto, realmente, o
próprio homem assentindo e cooperando livremente com a graça excitante,
deve dispor-se para a sua própria justificação. E por isso nas
Sagradas Escrituras não está dito apenas: “Convertei-nos, Senhor, a
vós, e converter-nos-emos, mas também: “Convertei-vos a mim, e eu
converter-me-ei a vós.” Por isso, assim como se encontram nos escritos
dos antigos padres testemunhos em que se diz que as crianças estão sem
pecado, assim também se encontram outros em que se diz que Deus dá a
graça àqueles que julga dignos ou preparados para recebê-la. O que
certamente, de algum modo, é verdade, ainda que seja verdade que por
obra da mesma graça se tornem dignos aqueles que são julgados dignos.
Este último aspecto não está completamente silenciado na doutrina de
alguns antigos, embora não esteja explanado com aquela clareza e
precisão, com que após o diligente exame da questão dizia Santo
Agostinho ser tudo atribuível a Deus: “Quem prepara a boa vontade do
homem para ser ajudada, ajuda-a também preparada. Com efeito, a boa
vontade do homem precede muitos dons de Deus, mas não todos; o que ela
mesma não precede é o próprio dom de Deus. Pois ambas realidades estão
expressas nas sagradas letras: “Sua misericórdia me precederá e Sua
misericórdia me acompanhará. A quem não quer precede a fim de que
queira; a quem quer acompanha para que não queira em vão. De fato, por
que somos instruídos a rezar pelos nossos inimigos senão afim de que
aqueles que não querem viver piamente, Deus neles opere e queira?
Igualmente, porque somos instruídos a pedir para receber senão para
que aquilo que queremos seja feito por aquele que nos fez querer?
Oramos, pois, pelos nossos inimigos para que a misericórdia de Deus os
preceda como nos precede a nós; mas oramos por nós para que a sua
misericórdia nos acompanhe.”[36] E assim sucessivamente.
Por conseguinte, não é licito concluir da imperfeição das
explicações ou da ambigüidade de alguns apologistas que os padres mais
antigos tiveram uma sentença distinta da dos padres posteriores a
respeito dos dogmas da nossa religião. Impõe-se, claramente, uma
solução diversa: Ou porque não tinham ainda então alcançado uma intima
inteligência da verdade revelada, como aqueles que escreveram sobre
várias matérias após o surgimento das heresias; ou porque ocupados em
refutar um erro, não se ocuparam de outro erro oposto (realmente em se
tratando de qualquer dogma entre escolhos opostos cai e facilmente
parece ofender a um dogma quem a outro com cuidado estuda); ou,
finalmente, porque às vezes tomavam locuções em si mesmas ambíguas e
menos depuradas e sem uma explicação em adendo, não admitindo
absolutamente que seus leitores não as recebessem e entendessem em
sentido católico. Agora deve demonstrar-se mais diligentemente que tal
solução não é apenas verossímil e provável, mas realmente a única
verdadeira a ser firmemente mantida.
§ 2
Mas para que procedamos com certa ordem, convém considerar primeiro
aqueles três estados da doutrina referidos na tese, segundo os quais os
testemunhos e lucubrações dos padres podem ser facilmente
classificados em categorias semelhantes
1. Em primeiro lugar, podemos falar do estado de simples fé. A tal
estado referem-se principalmente as epistolas ou confissões dos
antiqüíssimos bispos e mártires, naquela idade de ouro em que tendo
ainda as primícias do Espírito, e como odres cheios daquele vinho
derramado em pentecostes, não tinham ainda aquela laboriosissima
ocupação que Deus confiou aos filhos dos homens para que se ocupassem
da disputa, i. e, da dialética; mas do tesouro do seu coração tiravam
uma ingênua doutrina que haviam recebido dos apóstolos. De modo
razoável, Inácio testemunhava excelentemente uma simples fé na trindade
caminhando para o martírio, quando escrevia a Magnesios c. 13:
“Esforçai-vos, pois, em permanecer firmes nas doutrinas do Senhor e dos
apóstolos, para que tudo quanto fizerdes vos suceda com prosperidade,
com fé e caridade no Filho, no Pai e no Espírito Santo…Submetei-vos ao
bispo e a vós mutuamente, como Jesus Cristo ao Pai segundo a carne, e
os apóstolos a Cristo e ao Pai e ao Espírito”[37].
Expressou igualmente uma simples na encarnação o santíssimo mártir na
epistola aos efésios c.7: “Há um só medico, carnal e espiritual, feito e
não feito, no homem existindo Deus, na morte verdadeira vida, de Maria
e de Deus, primeiro passível e depois impassível, Jesus Cristo Nosso
Senhor”[38].
E também a Policarpo, c. 3: “Aquele que antes do tempo esperou o
intemporal; invisível tornou-se para nós visível; impassível, fez-se
para nós passível, que de todo modo por nós sofreu”[39].
Uma simples fé em ambos mistérios manifestava a última oração de
Policarpo em sublime rogo: Senhor Deus onipotente, Pai de vosso amado e
bendito Filho Jesus Cristo, por meio do qual vos
conhecemos…bendigo-vos, porque neste dia e nesta hora vos dignastes
receber-me no número dos vossos mártires, no cálice de vosso Cristo…Por
tudo isso vos louvo, vos bendigo, vos glorifico com o vosso amado
Filho, sempiterno e celeste Jesus Cristo, com o qual seja dada glória a
vós e ao Espírito Santo agora e por todos os séculos. Amen”[40].
E aquela confissão de santo Epipodio que, dilacerado em sua carne
pelos dentes das feras, dizia: “Confesso a Cristo com o Pai e o
Espírito Santo, e é digno que lhe restitua minha alma a ele que é meu
criador e redentor. Pouco importa a fraqueza do corpo que se esvai até
o fim, contanto que minha alma seja levada aos céus, para junto do seu
criador.”[41]
À idêntica conclusão induzem os lugares dos mais antigos, onde
simplesmente e sem mais se encontra enunciado que tal é a pregação da
Igreja, a qual se deve conservar como regra de fe. Por exemplo, aquela
passagem de Santo Irineu, 1. I. c. 10: “A Igreja espalhada por todo
orbe terrestre até os extremos da terra recebeu dos apóstolos e dos
seus discípulos a fé em um só Deus, Padre onipotente que fez o céu e a
terra e o mar e todas as coisas neles existentes; e em um só Jesus
Cristo Filho de Deus, encarnado para nossa salvação; e no Espírito
Santo que pelos profetas anunciou os desígnios de Deus, o seu advento e
geração da Virgem Maria e sua paixão, e a ressurreição de toda carne
do gênero humano para que ao nome de Jesus Cristo Nosso Senhor, Deus,
Salvador e Rei, segundo o beneplácito do Pai invisível todo joelho se
curvasse nos céus, na terra e no inferno.” Igualmente, São Gregório
atesta que leu aquela passagem de São Gregório Taumaturgo, na Exposição
da Fé, que, ao morrer, deixou para sua igreja, e por ele mesmo
autografada: “Um só Deus Pai do Verbo vivo, da sabedoria subsistente,
perfeito genitor do perfeito, Pai do Filho unigênito. Um só Senhor,
único do único, Verbo consumador, sabedoria que compreende todas as
coisas, virtude pela qual se pôde gerar todas as criaturas: Filho
verdadeiro do verdadeiro, e invisível do invisível, incorruptível do
incorruptível, imortal do imortal, sempiterno do sempiterno. Um só
Espírito Santo que tem a substância de Deus, causa perfeita dos
viventes, santidade dispensadora da santidade…Trindade perfeita, não se
divide nem se priva da majestade, da eternidade e do reino. De maneira
que na trindade não há superioridade nem inferioridade…Nem o Filho
falta ao Pai, nem o Espírito Santo ao Filho, mas inalterável e sempre
imutável a mesma Trindade.[42]
Na mesma categoria classificam-se aqueles testemunhos em que os
padres antes do surgimento das heresias, livres de toda preocupação com
as disputas e controvérsias, não em tom especulativo mas apenas
glosando, não argumentando, nem sequer assumindo o patrocínio de uma
causa especial, mas apenas falando da abundancia do coração fiel, (o
dogma ainda não havia sido impugnado por nenhuma negação)
expressaram-se tão ingenuamente que de fato não parece que foram eles a
escrever mas sim o genuíno espírito da fé e da tradição a falar neles.
Desse modo, Santo Agostinho anuncia os testemunhos a respeito do dogma
do pecado original em sua obra Contra Juliano, l. I. nº 5-20.
Esses escritos foram depois revistos por ele em um compêndio em que
diz: “Santo Irineu diz que, antes de a chaga da serpente ser curada
pela cruz e pela fé de Cristo estivemos todos como que ligados por
vínculos ao pecado do primeiro homem feito do barro. São Cipriano diz
que a criança perece se não for batizada, ainda que não tenha pecados
próprios a ser absolvidos, mas alheios. São Retício diz que os pecados
do velho homem de que nos despojamos não são velhos pecados mas pecados
ingênitos. Santo Olimpio diz qu, disseminado o vício na origem a
partir do primeiro homem feito do barro nasce o pecado com o homem.
Santo Hilário diz que do pecado se origina toda carne salvo a daquele
que vem na semelhança da carne do pecado sem pecado. Diz que sob a
origem do pecado e sob a lei do pecado está aquele cuja voz diz: “Fui
concebido na iniqüidade.” Santo Ambrosio diz que as crianças que forem
batizadas nos seus primeiros dias de vida são purificadas da malicia.
Diz que em Adão todos morremos, porque por um só homem entrou o pecado
no mundo, e a culpa dele é a morte de todos. Diz que na chaga dele todo
o gênero humano morreria se aquele samaritano que descia não lhe
pensasse as dolorosas chagas. Diz que existindo Adão, nele todos
existíamos; perecendo Adão, nele também todos perecemos. Diz que
estamos maculados pelo contágio antes de nascer e a concepção humana
não está isenta da iniqüidade, pois somos concebidos – diz ele – no
pecado dos nossos pais, e em seus delitos nascemos…Diz Santo Inocêncio
que pelo lavacro da regeneração todo vício pretérito é purgado, porque
por meio do lavacro acontece que aquele que caiu pelo livre arbítrio
foi mergulhado nas profundezas. São Gregório Nazianzeno diz que teria
sido melhor não cair da árvore da vida pelo gosto amaríssimo do
pecado, mas devemos emendar-nos depois da queda…Diz que se purificam
pela regeneração da água e do espírito as máculas da primeira
natividade pelas quais somos concebidos em iniqüidade. Diz São Basílio
que contraímos a doença do pecado, porque Eva não quis abster-se do
fruto proibido…Posteriormente o santo bispo João Crisóstomo também
disse que Adão cometeu tão grande pecado que condenou toda a humanidade.
Diz que Cristo pranteou justamente por isso a morte de Lázaro porque a
mortalidade despojando-se da eternidade amou os infernos. Diz que
Cristo nos resgatou da obrigação do nosso pai Adão a que também
estava ligada sua descendência como débito próprio. Diz que Adão por
isso mesmo é a cabeça de toda a posteridade, porque, assim como ele se
fez causa da morte (que estava ligada ao fruto) de toda a sua progênie,
ainda que não tenha comido do fruto, assim também Cristo é, pela cruz,
o penhor de justiça de todos os que lhe pertencem, ainda que não
tenham praticado nada de justiça. Diz que não parece bastante racional
que um seja condenado no lugar de outro, e entretanto isso aconteceu
por meio de Adão; pelo que convence mais a crer que parece mais
conveniente e mais racional que um seja salvo em lugar de outro, o que
se cumpre em Cristo etc. Assim falaram do pecado original os mais
antigos padres, só os traços primitivos e com simplicidade original de
uma narrativa da tradição.
Mas tomem-se também os brilhantes exemplos desse mesmo gênero de
testemunhos entre aqueles que o próprio Santo Agostinho deixou acerca
da divina graça em seus escritos produzidos em suas primeiras obras
anteriores a toda investigação teológica. Como, por exemplo, aquela
passagem das Confissões, 1. 10, c. 29, 31, 87: “Ó amor, tu que
sempre ardes e nunca te extingues, caridade, Deus meu, acendei-me. Daí o
que ordenais, e ordenais o que quiserdes…Ouço a voz do meu Deus que
ordena: Não se corrompam vossos corações na crápula e na bebedeira.
Mas lembrai-vos, Senhor, de que somos pó e de pó fizestes o homem, o
qual havia perecido e foi restaurado. Fortalecei-me para que possa. Dái
o que ordenais, e ordenai o que quereis…Somos tentados a toda hora
pela vanglória humana, Senhor; sem cessar somos tentados. A língua
humana é sempre um vulcão. Ordenais-nos também tal continência. Daí o
que ordenais e ordenai o que quereis.” Igualmente, aquela passagem De Ordine,
1, 2, nº 52, em que dirigindo-se a sua mãe Mônica, diz: “Roguemos,
pois, não as riquezas, mas aquelas coisas que nos fazem bons e santos.
Para que se cumpram piissimamente esses desejos, nós os unimos, minha
mãe, às vossas orações, pelas quais, estou convencido e confirmo, Deus
me concedeu este espírito para que descoberta a verdade, nada
absolutamente lhe antepusesse, nada lhe preferisse, nada diferente
pensasse ou amasse.” Mas para que não se julgasse que essa oração pela
qual se obtêm outros dons de Deus vem de nós mesmos e não da graça
divina, diz: “Deus criador do universo, concedei-me primeiro a graça de
bem vos rogar, depois a de ser digno de por vós ser ouvido para que
por fim despacheis meu pedido.” Certamente, não foi movido pelo calor
da controvérsia nem preocupado por qualquer outro fim preconcebido, nem
tampouco instruído por profunda investigação teológica, que Santo
Agostinho dizia essas coisas, mas levado apenas pela doutrina que como
neófito aprendera na Igreja, e repleto do espírito de graça que havia
recebido do batismo em que cria absolutamente, falava também com toda
simplicidade conforme aquilo do salmo: “Cri e por isso falei.” Já sabia
que tudo aquilo pelo que somos bons é dom de Deus, até mesmo a fé com
as obras, nada distinguindo entre a primeira e as segundas, entre o
início e o fim, mas compreendendo o próprio início da piedade cujo
fundamento é a fé, e o mesmo primeiro desejo e pensamento de conversão e
finalmente a mesma oração pela qual se obtêm outras graças. Todavia,
que há diferença entre aquilo que se encontra naquelas confissões de
simples fé e os livros em que depois, de forma abundante, acurada,
erudita, expôs também o dogma da graça e combateu a incipiente heresia
dos pelagianos, ninguém negará. Ai também há um novo exemplo daqueles
testemunhos que apresentam uma simples fé da primitiva tradição,
prescindindo de qualquer explicação ou consideração das dificuldades.[43]
2. Mas agora cumpre considerar o segundo estado da doutrina, em que à
simples fé se agregam explicações ainda imperfeitas. Isto se verifica
sobretudo em alguns padres do segundo e terceiro séculos com relação ao
dogma da Trindade quando tentam explicar e expor de algum modo aos
judeus e pagãos o altíssimo mistério, ou quando refutavam os sabelianos
que diziam serem o Pai, o Filho e o Espírito Santo, não só quanto à
natureza, mas também quanto à pessoa, um só Deus; e isto ( o que se
deve notar com atenção), antes de se originarem as heresias de Ário e
Macedonio, negando ao Filho e ao Espírito Santo a natureza divina,
atribuindo-lhes uma natureza criada.
Atenágoras em sua Legatione pro christianis quer que os
mesmos cristãos paguem pelo crime de ateísmo de que eram acusados pelos
pagãos, mostrando que não eram ateus, “eles que professam Deus Pai e
Deus Filho, e o Espírito Santo, e demonstram na união deles a potência,
e na ordem a distinção[44].
Eis aí uma simples e pura confissão da fé cristã. Mas para que ninguém
considerasse ridículo para Deus ser seu Filho ou que os cristãos a
respeito de Deus Pai e do Filho pensassem como fabulam os poetas que
nada melhores que os homens consideram os deuses, acrescenta uma
explicação: “O Filho é o Verbo de Deus Pai em idéia e ação; por ele,
com efeito, e por meio dele, foram feitas todas as coisas, pois o Pai e
o Filho são um só. Mas como o Pai esteja no Filho, e o Filho no Pai,
na unidade e na virtude do espírito, o Filho de Deus é a inteligência e
a palavra do Pai. Por que se vós tiverdes paciência para investigar
com vossa suma inteligência o que significa o Filho, direi brevemente
ser a primeira geração do Pai, não porque seja feito (desde a
eternidade, com efeito, Deus tinha em si o Verbo, visto que racional
desde a eternidade), mas porque aparecerá como a idéia e o ato de todas
as coisas materiais que jaziam à maneira de natureza informe e de
terra inerte.[45]
Nesta explicação há algo obscuro, primeiro porque o Filho se diz
inteligência do Pai, em seguida porque se diz que aparece como idéia e
ato daquela terra inane e vácua de que fala Moisés no início do
Gênesis. Justino, em disputa com o judeu Trifão, (nº36), dizia com
gravíssimas palavras que Cristo é verdadeiro Deus e chamado no Antigo
Testamento o Senhor dos exércitos. Mas depois que o discurso se dirigiu
a outro ponto, resumiu (nº48) Trifão a questão: “Retomando, pois, diz,
o discurso que tinhas abandonado, diz tudo de uma vez. Pois,
realmente, parece-me admirável, e não se pode provar sem dificuldade.
Porque, com efeito, dizes que esse Cristo Deus preexistiu antes dos
séculos, e depois sofreu nascer feito homem, isto me parece não só
inconciliável com a crença, mas também estulto.” Então, Justino responde
que essa doutrina, na verdade, parece inconciliável com a fé àqueles
que não são de Deus e não querem fazer nada para compreender, e diz
que são duas questões distintas: se Jesus é o verdadeiro Messias
predito na Lei e se é verdadeiro Deus; efetivamente, há aqueles que,
como os ebionitas, professam que ele é o Cristo, embora digam que é
homem gerado de homem: a esses tais, diz, não dou assentimento, nem
assentiria ainda que a maior parte (dos cristãos), que me aprova, o
dissesse. De fato, não é por causa de doutrinas humanas que somos
obrigados a crer em Cristo, mas por aquela doutrina pregada pelos santos
profetas e por ele mesmo transmitida. Eis ai mais uma firmíssima e
claríssima profissão de fé católica. Entretanto, para expor com
credibilidade ao homem judeu essa verdade de fé, Justino esforça-se por
mostrar outra coisa além do Pai criador do universo, que na antiga
Escritura se diz Deus e preludiava a futura encarnação através das
teofanias do Antigo Testamento. Reconheceu isto em um dos três anjos
que apareceram a Abraão sob o carvalho de Mambré; nesse anjo misterioso
do qual depois se lê – diz – : “O Senhor fez chover do Senhor do céu
sobre Sodoma e Gomorra enxofre e fogo”. Vê-o também naquele que
apareceu a Jacó e depois a Moisés entre as chamas da sarça ardente e de
si mesmo diz: “Eu sou aquele que sou. Assim dirás aos filhos de Israel:
Aquele que é envia-me a vós.” Então conclui seu pensamento, nos nº
60-61: “Demonstrei-vos que Aquele que disse a Moisés ser o Deus de
Abraão, de Isaac e Jacó, não é apenas o criador do universo, mas também
o mesmo que apareceu a Abraão e Jacó; e cumprir a vontade do criador
do universo e executar o juízo contra os sodomitas segundo sua
sentença, de tal maneira que, ainda que, como dizeis, um foi o anjo e
outro Deus, ninguém, entretanto, a não ser um completo mentecapto,
ousará dizer que o criador do universo e pai, despojando-se dos seus
atributos excelsos foi visto como pequena partícula da
terra…Demonstrar-vos-ei também por outro testemunho das Escrituras que
Deus gerou de si mesmo antes de todas as criaturas certa virtude
espiritual, que também é chamada pelo Espírito Santo glória do Senhor, e
ora Filho, ora Sabedoria, ora Anjo, ora Deus, ora Senhor e Palavra…Com
efeito, tem todos esses nomes, justamente por que executa a vontade do
Pai e pela vontade do Pai foi gerado…Qual é o que vemos nascer do fogo
como outro fogo, não diminuído por ter sido aceso, etc[46].
Onde parece obscuro e difícil o que diz São Justino, é um absurdo se
alguém pensar que o mesmo ingênito Pai apareceu como pequena partícula
da terra e por isso as mesmas aparições de Deus devem referir-se a
outra pessoa; igualmente, o Filho cumpre a vontade do Pai por vontade
do Pai foi gerado.[47]
Santo Hipólito mártir, escrevendo contra a heresia de Noécio, que é
idêntica à de Sabélio, diz no capítulo 8: É, pois, necessário, que,
ainda que não se queira, confesse-se Deus Pai onipotente e Jesus
Cristo Filho de Deus, Deus feito homem, a quem Deus submete todas as
coisas exceto a si mesmo, e o Espírito Santo, e esses são realmente
três. Pois se se quer saber como se demonstra um só Deus, saiba-se que
uma é a virtude ou potência dele.” Pode-se, por acaso, pergunto, mais
expressamente dizer o que cremos? Mas descendo às explicações, diz
Hipólito entre outras coisas no capítulo 10: “Só Deus, porque nada
eterno tem junto a si, quis fazer o mundo. E pensando e querendo e
dizendo o mundo criou…Mas gerava o Verbo condutor conselheiro e
artífice das coisas criadas. Como tivesse em si o Verbo e fosse ele
invisível ao mundo criado, fê-lo visível, emitindo primeiro a voz e
gerando a luz da luz, fez com que as criaturas por si mesmas
compreendessem que têm um Senhor; e aquele que antes apenas a si mesmo
era visível, mas ao mundo invisível, fê-lo visível, para que o mundo
pudesse ser salvo quando visse que ele apareceu. E mais adiante, no
capítulo 14diz: “Se o Verbo de Deus estava com Deus, e era Deus, que
significa isto? Porventura dirá alguém que João diz dois Deuses?
Realmente, não direi dois Deuses, mas um só, mas duas pessoas. A
economia do consenso se reduz a um só Deus. Com efeito, há um só Deus
que manda, Pai. Que obedece, o Filho. Que ensina a ciência, o Espírito
Santo. O Pai que está acima de todas as coisas; o Filho através de
todas as coisas, o Espírito Santo em todas as coisas. De outro modo não
podemos entender um só Deus, se não acreditarmos no verdadeiro Pai e
no Filho e no Espírito Santo”[48].
Onde ainda é obscuro o que se diz a respeito da geração do Verbo que
se fez visível na criação do mundo: talvez mais difíceis ainda possam
parecer aquelas coisas que escreveu Dionísio Alexandrino contra os
mesmos sabelianos; das quais se acha um elenco nos fragmentos que
resistiram ao tempo, as apologias enviadas pelo mesmo Dionísio ao papa
Dionísio. Entretanto, como nelas, com maior brilho, o santo bispo se
retrata dos erros censurados, com tanto mais razão nessa parte nova
acresce a dificuldade, acode maior socorro, onde outros se desfazem. E
com razão observam os editores beneditinos que essa apologia de
Dionísio tem maior peso por isso que nos serve de exemplo do que
teriam feito os outros padres anteriores ao Concílio de Nicéia (que
aparentam algumas familiaridades com a impiedade ariana), se os
compelisse semelhante necessidade a explicar sua intenção.
Portanto, tal é o exemplo que nos dão alguns autores daquele período
em que ainda eram imperfeitas as explanações dos dogmas, isto é, não
havia ainda um modo preciso de falar e explicar, porque não tinham
surgido ainda as mais célebres heresias contra as quais mais tarde, com
maior clareza de conceitos e propriedade de terminologia foi defendida
a fé católica. Com efeito, verificou-se isso com respeito ao dogma da
Trindade, e guardadas as devidas proporções, também com relação aos
outros dogmas dos quais houve fácil compreensão. Assim também acerca do
dogma da encarnação, do qual, antes de Nestório e Eutiques, nos
escritos dos padres encontram-se locuções, que, se examinadas com
estrito rigor dialético, implicariam uma distinção dos sujeitos de Deus
e do homem, ou ao contrário, e com maior freqüência, poderiam dar azo à
malévola interpretação daqueles que defendem a mistura de duas
naturezas em uma terceira.[49]
Igualmente quanto ao pecado original, cujos impugnadores pelagianos
pareciam triunfar, louvando-se em algumas passagens de Crisóstomo, que
foram aclaradas por Santo Agostinho em seu primeiro livro contra
Juliano.[50]
Outrossim acerca do dogma da graça Santo Agostinho confessa que caiu
ingenuamente em alguns erros quando começou a aprofundar a investigação
teológica dessa matéria ainda sem uma linguagem precisa, mas apenas
inquirindo, opinando, sem um exame acurado[51] Os exemplos poderiam multiplicar-se indefinadamente, mas não convém alongar-nos.
3. Resta, pois, falar agora do terceiro estado da doutrina, a que
correspondem três classes de testemunhos: na verdade o estado de
explicação exata, no qual, para usar as palavras de São Vicente de
Lerins, compreende-se com mais clareza aquilo que antes se cria mais
obscuramente, e a posteridade se congratula com a forma precisa daquilo
que os antigos não apreciavam com a inteligência. Este estado com
respeito aos dogmas em geral começou com a paz que Constantino garantiu
à Igreja. Com efeito, a partir daí e doravante foi grande o progresso
da ciência na penetração das verdades reveladas e sobretudo no quarto e
quinto séculos foi conspícuo à medida que surgiam os erros. Então nas
obras de Atanásio, Hilário, Basílio, Nazianzeno trata-se plenamente das
processões divinas; isto alcançará uma perfeição nos quinze livros de De trinitate
de Santo Agostinho, com aquele princípio já claramente enunciado que
dá chave de compreensão, quanto pode a condição mortal, do mistério da
Santíssima Trindade: nas pessoas divinas tudo se identifica onde não
obsta a oposição de relação. Então nas suas controvérsias com os
donatistas, com os pelagianos e com maniqueus esclarece a doutrina dos
sacramentos, da graça, do pecado original, da nova economia do
evangelho em face do antigo testamento. Então aparecem as definições
efesinas a respeito da união hipostática e aquela esplêndida epistola
de Leão Magno a Flaviano, em que se expõe todo o dogma da encarnação
tão claramente, em tão precisos termos e formas.
Mas não há dúvida de que devem ser absolutamente preferidas essas
autoridades da idade posterior. Pois, após as soluções dos padres que
combateram as heresias, recorrer sempre aos mais velhos nada mais é que
estender um laço para os simples, a fim de que certamente prefiram o
que é mais obscuro, mais confuso àquilo que é mais claro, mais
distinto, diga-se de passagem, àquilo que é examinado com mais rigor.
Vê-se também que essa armadilha é mais perigosa, por isso que se propõe
sob a imagem da antiguidade. Com efeito, que há de mais verossímil e
mais verdadeiro que dizer com São Vicente de Lerins que a antiguidade
deve ser seguida, e quem acreditaria haver um engano em tal princípio? E
no entanto há. Deve ser seguida a antiguidade, realmente, é a regra de
São Vicente de Lerins. Mas deve-se acrescentar que, conforme a sua
regra, a posteridade muitas vezes fala com mais clareza. E é isto que
os críticos costumam dissimular, de tal maneira que, afastando-se da
regra do intelecto católico, não temem dizer que, após o surgimento das
controvérsias, os padres não são facilmente audíveis, porque o ardor
da disputa os levou a dizer mais do que queriam. Mas não convém opor o
modo de dizer dos padres antes e depois das disputas com os hereges.
Ambos modos são verazes e úteis à Igreja, pois, enquanto no primeiro
ela vê a natural simplicidade e admirável perpetuidade de sua fé, no
segundo se instrui para uma mais profunda compreensão e noção mais
exata dos artigos da mesma fé. Efetivamente, as heresias tornam mais
agudos os doutores. Embora da outra parte seja também certíssimo que os
padres que escreveram antes do surgimento das heresias têm algo mais
forte, porque aparecem mais evidentes a partir de todo estudo das
partes do livro.[52] Portanto, esses dois modos se complementam mutuamente, e sob um e outro aspecto auxiliam-se reciprocamente.
Assim, pois, já que agora está patente a verdade da distribuição dos
testemunhos da tradição nas três classes supracitadas, e como a
respeito da primeira e da terceira não há nenhuma dificuldade, mas
apenas acerca daquela intermediária que assinala uma passagem da
simples fé para explicações seja de mais profunda inteligência seja de
mais diligente cautela contra as novidades dos heréticos: deve-se ver
já de que maneira se dá uma legítima interpretação daquelas coisas que
nesse estado de transição parecem trazer no bojo uma aparência de
heterodoxia.
§ 3
Toda a investigação se reduz a duas observações. A primeira
constituirá os preâmbulos, porque aqueles lugares dos padres que agora
se consideram, em sentido ortodoxo podem ser compreendidos. A
outra e principal, porque não só podem, mas devem ser recebidos nesse
sentido, prescindindo também das discretas declarações dos autores, se
apenas se considera a razão dos critérios próprios da tradição
católica.
1. Quanto ao primeiro ponto não é licito descer à discussão de
singularidades, mas basta tomar como exemplo daquelas coisas que são
mais difíceis e poderiam oferecer melhor azo à objeção: mais acima
referi-me àqueles testemunhos dos antigos sobre o mistério da Trindade,
com base nos quais pretendem os críticos afirmar que esses antigos
ignoravam a consubstancialidade das pessoas, e, ao contrário do sumo e
supremo Deus, conheciam dois outros deuses inferiores, segundo o dogma
dos pagãos. Com efeito, as causas de engano em tal exegese dos
críticos talvez se devam à negligência dos princípios da teologia
escolástica.
Certamente, a consubstancialidade não só não repugna à ordem de
origem das pessoas entre si, mas, ao contrário, com ela se coaduna
bem, uma vez que, se se cogitassem nas pessoas divinas várias
improcessibilidades, por isso mesmo viria a ser evidentemente um
absurdo o dogma de um só Deus em três pessoas. A respeito dessa matéria
veja-se o tratado De Trinitate, tese 9 e 21, com o
prolegômeno à questão 28. Por essa razão o evangelho inculca com tanta
instância e tanto zelo essa ordem de origem, oferecendo igualmente
fórmulas que podem parecer à inteligência carnal em detrimento da
igualdade, como, por exemplo, quando do Filho se diz que não pode fazer
nada por si mesmo, e do Espírito Santo que não dirá nada de si mesmo,
por que dirá o que tiver ouvido e assim por diante. Portanto, o dogma
da Trindade estabelece uma improcessibilidade de origem do Filho,da
qual, juntamente com o Filho, como se de um só princípio do Espírito
Santo. Assim, com efeito, e não de outro modo as divinas pessoas se
distinguem entre si só pelas relações de origem, mas dizendo muito
pouco, isto é a essência ou substância que com virtude operativa e pela
mesma operação é a mesma tanto ad intra quanto ad extra,
é a única e mesma. Assim também é a mesma a atividade do Pai e do
Filho e do Espírito Santo, mas no Pai realiza-se com relação de quem
comunica, no Filho realiza-se com relação de quem recebe do Pai e no
Espírito Santo com relação de quem recebe de ambos. Mas agora deve-se
examinar se aí se verificam as incriminadas locuções “do Pai a quem
servem todas as coisas o Filho e o Espírito Santo, (Iren. I, 4, c. 7.
Iustin. In Tryph., n. 61); do Pai que manda, do Filho que obedece,
(Hippol., ubi supra); do Pai que opera, do Filho por quem opera, ou do
Pai que é toda substância, do Filho que é derivação do todo e porção,
(Terull. in apolog. c. 21, e c. Praxeam c. 9). E porque até agora não
se pôde verificar a propriedade de palavras de tal natureza, não há
realmente nenhum problema a nosso ver. Mas também nós dizemos de Deus
às vezes coisas que não apresentam maior conveniência de terminologia.
Com efeito, dizemos que Deus se arrepende, que Deus se ira; nem
receamos atribuir a Deus mãos, braços, olhos. Por acaso, com isso,
fazemos um Deus corpóreo? Por ventura fazemo-lo mutável em seus
decretos, submetido às paixões humanas? Absolutamente não, pois, se em
razão de tais locuções se tira algo de humano, nada mais se quer
significar por mãos e braços que a força e o poder; por ira nada mais
se quer dizer que a vontade eficaz de punir os pecados; por
arrependimento nada mais que a mudança, não de decreto, mas das
realidades submetidas a seu decreto. O mesmo argumento vale para o tema
que nos ocupa. Efetivamente, com relação ao ministrante e aquele a quem
ministra e a respeito do mandante e do obediente, finalmente, no
instrumento com respeito àquele de quem é instrumento, considerem-se
duas coisas: primeiro, daquele a quem ministra, a quem obedece, de quem
é instrumento, deriva a virtude operativa ou vontade de operar;
segundo, porque a tem diversa daquela que está no principal operante,
tem-na realmente participada, dependente e sujeita. Retire-se desse
modo aos vocábulos aplicados a Deus tudo aquilo que soa imperfeição de
dependência, e nada mais signficarão senão apenas a ordem de origem,
segundo a qual, como dito há pouco, a atividade no Filho, ainda que
seja numericamente a mesma atividade do Pai, realiza-se nele,
entretanto, com a relação de quem recebe do Pai, como se realiza no
Espírito Santo com a relação de quem recebe de ambos. Há quem diga que
os modos de falar de Irineu, Justino, Hipólito (muito ao contrário do
modo de falar de Tertuliano, cujo estilo é sempre hiperbólico, incidindo
em exagerado realismo), há quem diga que estes modos de falar são
incompatíveis com o sentido ortodoxo, sobretudo quando ainda deles não
abusavam os arianos e entre os cristãos os princípios comuns a respeito
da divindade excluíam por si suficientemente a grosseria da
inteligência carnal?[53]
Ademais, a consubstancialidade excelentemente se consolida com a
apropriação, pela qual algum atributo essencial, embora em si mesmo
seja comum a três pessoas, é considerado entretanto como conveniente a
apenas uma com exceção das outras. Realmente, essa apropriação, usual
tanto nas escrituras quanto em todos os símbolos da fé, quanto em todos
os padres, doutores e teólogos, pertence sem dúvida à doutrina
católica da Trindade, de maneira que causa espanto possa ela ser
ignorada ou rejeitada pelos críticos. “Deve-se dizer, diz Santo Tomás,
que para a manifestação da fé foi conveniente ser apropriados às
pessoas os atributos essenciais. Com efeito, embora não se possa provar
a Trindade por uma demonstração das pessoas, convém, não obstante, que
por meio de alguma coisa se torne mais manifesta. Ora, conhecemos os
atributos essenciais segundo a razão melhor do que pelas propriedades
das pessoas, pois a partir das criaturas das quais temos conhecimento,
podemos com certeza chegar ao conhecimento dos atributos essenciais,
mas não ao conhecimento das propriedades das pessoas. Como, pois, nos
utilizamos da semelhança do vestígio e da imagem encontrada nas
criaturas para a manifestação das pessoas divinas, assim também nos
utilizamos dos atributos essenciais. E tal manifestação das pessoas
pelos atributos essenciais se denomina apropriação.” E não se pode
dizer que tal coisa seja arbitrária, porquanto tem excelente fundamento
em certa conveniência peculiar entre o atributo essencial e a
propriedade da pessoa, além de fornecer um ótimo esclarecimento às
muitas dificuldades que ora se apresentam.
Mas com razão é muito empregada a apropriação da onipotência, da
sabedoria, da bondade, e é tão conhecida que dispensa maiores
explicações. Pois a onipotência tem razão de princípio, e é apropriada
ao Pai que é o princípio nas pessoas divinas. A sabedoria,a
exemplaridade, a idéia, a arte brilham na concepção do intelecto e por
isso se apropriam ao Filho que procede como verbo. A bondade, por sua
vez, é a razão e o objeto do amor, e apropria-se ao Espírito Santo que
procede como amor. Assim como os antigos atribuíam ao Pai a obra da
primeira criação, da qual se diz no Gênesis: “No princípio criou Deus o
céu e a terra; a terra, porém, estava informe e vazia, e o espírito de
Deus pairava sobre as águas, porque nessa obra resplandece a
onipotência tirando do nada absoluto o mundo, assim também ao Filho
como Verbo do Pai atribuíam a obra da segunda criação, isto é da
formação, da distinção e do ornato das coisas, porque esta obra é obra
de sabedoria. Além disso, eles consideravam a processão do Verbo do Pai
em ordem ao mundo a ser ornado como certa emissão do Verbo concebido
desde toda eternidade para a luz, ou parto para o exterior. Nesse
sentido Atenágoras disse que o Verbo procedeu como idéia – que havia de
chegar a ato – de todas as coisas materiais que existiam à maneira de
matéria informe da terra. E Hipólito disse que o Pai criando o mundo
gerava o Verbo, fazendo-o palpável e visível, quando antes era
impalpável e invisível. Como, por exemplo, o arquiteto tendo em sua
mente a idéia do edifício que ninguém antes tinha visto, torna-a
visível quando de matérias informes começa a formar o edifício.: assim o
Pai proferia ad extra o seu Verbo gerado desde a eternidade,
quando dizia: faça-se a luz, faça-se o firmamento, etc, como diz o
Gênesis. E como a arte do artesão de certo modo se expande para fora de
maneira que o artesão nela esteja impresso e figurado e se torne seu
ato e forma: assim na obra do ornado do mundo manifestava-se aquela
arte incriada apropriada ao Verbo, da qual diz o livro dos Provérbios
8, 27: “Quando preparava os céus, eu ali estava, quando traçou o
horizonte na superfície do abismo, quando firmou as nuvens no alto,
quando dominou as fontes do abismo, quando impôs regras ao mar, para que
suas águas não transpusessem os limites, quando assentou os
fundamentos da terra, junto a ele estava como artífice.” Portanto, os
antigos padres, desde o primeiro até o último, não vêem esta segunda e
temporal geração do Verbo, da qual levantam tanto questionamento os
críticos, senão como uma manifestação de Deus na criação das coisas,
enquanto aquela idéia ou razão concebida do universo, que se apropria
ao Verbo especialmente ao modo de processão. Com efeito, tal
manifestação não acrescenta nada de novo ao Verbo, mas estabelece uma
mutação apenas da parte da criatura, a única que poderá ter dúvida,
sendo-lhe ainda desconhecidos os primeiros [54]princípios
da teologia natural; ao contrário, ficará evidente que a idéia
interior do arquiteto não se altera quando vem à luz pela execução da
obra. De que modo, pois, os conceitos dos antigos acerca do Verbo
procedente do Pai para fora como artífice do mundo podem parecer a
alguém como incompatíveis com um sentido ortodoxo?
Mas que diremos agora a respeito de todos os lugares de Justino nos
quais as teofanias do Antigo Testamento são atribuídas ao Filho, pelo
que “ninguém a não ser um perfeito mentecapto ousará dizer que o autor
do universo, abandonada a glória celeste, foi visto em pequena
partícula terrestre?” Expõe mais claramente esse argumento abaixo, no
mesmo diálogo com Trifão (n. 127), quando diz: “Não penseis que o mesmo
ingênito Deus desceu para algum lugar ou subiu de algum lugar. Com
efeito, aquele indizível Pai e Senhor do Universo não vem a nenhum
lugar, nem anda, nem dorme, mas em sua região, qualquer que seja,
permanece, vendo e ouvindo atento, certamente não com os olhos e
ouvidos, mas com força inenarrável , vê e conhece todas as coisas , e
nada que nos diz respeito lhe está latente, ele não se move nem pode
ser limitado a nenhum lugar, mas está em todo o mundo aquele que era
antes que se fizesse o mundo. De que modo, portanto, falará a alguém ou
aparecerá a alguém ou será visto em alguma parte estreita da terra?” Ao
menos aqui – dirá alguém – será necessário dar mãos à palmatória, para
que não sejamos forçados a confessar que Justino reconheceu no Pai e
no Filho uma natureza certamente dessemelhante. Absolutamente não,
digo: para que se concluísse uma dessemelhança, como se pretende, a
natureza do Filho, para Justino, teria de ser corpórea e animal, que
pudesse subir, descer, andar, dormir, etc, coisas que se negam a
respeito do Pai. E pergunto: que coisa mais inadmissível? Como Justino
diria que o Filho é Deus gerado antes dos séculos e encarnado da Virgem
no tempo em um lugar? Como interpretaria aquelas magníficas palavras
da Escritura: “Eu sou aquele que sou, Senhor dos exércitos, Senhor
forte e poderoso”, e outras semelhantes que com tanta freqüência na
primeira Apologia e no mesmo Diálogo afirma referirem-se a Cristo?
Mas para que não se esqueça, digo, que Justino disputa com um
judeu, e na medida em que quer convencer o judeu de que as teofanias do
Antigo Testamento não se referem apenas àquela pessoa divina que os
judeus reconheciam, empenha-se sobretudo em destruir aquela absurda e
carnal opinião a respeito das mesmas teofanias sustentada pelos judeus
com os quais disputava. Do mesmo modo – diz no nº 114 – agrada aos
vossos mestres que imaginam o criador do universo e ingênito Deus à
maneira de um animal composto de mãos, pés, dedos e alma ensinar ser
assim o mesmo Pai que apareceu a Abraão e Jacó. Mas contra essa judaica
e grosseira imaginação militam os argumentos acima apresentados.
Explica que não devem ser assim entendidas as teofanias, como se Deus
em sua própria substancia tivesse sido visto, mas segundo uma ação
divina que produzia espécies visíveis e vozes audíveis. Mas Justino
atribui tal operação assim como as espécies representativas a uma
pessoa distinta do Pai: certamente aquela pessoa que haveria em uma
ocasião encarnar já então assumia a missão de anunciar aos homens as
vontades do Pai; àquela pessoa à qual, em razão de sua processão,
podiam convir os nomes de anjo ou mensageiro, que nas teofanias da
Antiga Escritura são recorrentes; àquela pessoa da qual, desde o início
da disputa (nº 56), tinha dito: “Esforçar-me-ei para persuadir-vos,
quando realmente compreendeis as Escrituras, daquilo que digo:
certamente ser outro aquele que se diz sob o nome de Criador do
Universo, o Deus e Senhor, que também é chamado anjo, porque anuncia
aos homens tudo quer anunciar-lhes, Criador do Universo, sobre o qual
não há Deus.”[55]
Finalmente, àquela pessoa da qual diz (nº 127): “Nem Abraão, portanto,
nem Isaac, nem Jacó, nenhum outro dos homens viu aquele inefável e
Senhor de todos, mas aquele que segundo a sua vontade é também Deus e
seu Filho e anjo porquanto cumpre sua vontade, que quis também nascer
homem da Virgem e apareceu como fogo em colóquio com Moisés na sarça
ardente.” Não causa estranheza que Justino submeta o Filho ao Pai. Com
efeito, não o submete como servo ao criador, mas como filho ao Pai, de
maneira que, segundo nossa concepção, (balbuciando como podemos,
fazemos ressoar a glória de Deus), se exprima a ordem de origem.[56]
Tampouco se assaque a Justino a heresia de ter dito o Filho segundo a
vontade do Pai ou da vontade do Pai ser gerado do Pai. Pois, além de
ser entendido naquele sentido que na primeira parte (q. 41, a. 2),
expõe Santo Tomás[57],
para que realmente nessa geração do Filho a partir da substância do
Pai ninguém imagine uma necessidade dominando o Pai e a ele imposta com
força, como a partir de seu segundo princípio e fantasia imaginavam
Deus os marcionitas: o próprio Justino se explica no mesmo diálogo com
Trifão, nº 128, dizendo: “Mas aquela virtude, a qual a palavra
profética também chama Deus e anjo não só pelo nome, como luz do sol,
mas também, conforme expliquei brevemente acima, ser numero, e sendo
número é algo diverso (isto é, algo subsistente, distinto), embora diga
ser aquela virtude gerada do Pai, por virtude e vontade sua, contudo
isto não quer dizer uma separação, como se a substância do Pai se
dividisse, do mesmo modo que todas as outras coisas que se dividem e se
separam não são as mesmas coisas que antes da separação; a razão deste
exemplo tomei-a dos ígneos que vemos acesos a partir de outro fogo, não
daquele bruxuleante do qual muitos podem ser acesos, mas daquele
permanente.” Por onde se vê que opõe a geração do Filho por vontade do
Pai à geração que, para nós, é por diminuição da substância, isto é,
opõe a espiritual à material. A esta conclusão induz a comparação do
fogo, pela qual, de algum modo, Justino se adianta à definição do
Concílio de Nicéia: Deus de Deus, luz de luz.”
Temos portanto em todas essas explicações imperfeitas concepções
confusas, expressões realmente impróprias e ambíguas, que, se não
precedessem ao surgimento da heresia ariana, poderiam parecer
suspeitas. Mas certamente não consideramos que não possam receber uma
interpretação ortodoxa. Ademais, tudo o que se diz acerca dos padres
anteriores ao concílio de Nicéia, no que concerne ao dogma da Trindade,
tem uma egrégia confirmação do célebre fato que narra Sócrates,
História Eclesiástica, 1. 5, c. 10. Pois, como o imperador Teodósio
Magno estivesse solícito da paz da Igreja perturbada por toda parte
pelos arianos e buscasse um remédio: “Tendo convocado o bispo Nectarius
de Constantinopla, tratou com solicitude da paz com ele, de que modo
libertar a religião cristã das dissensões e como seria possível
reconduzi-la à unidade. E dizia que se debatesse a controvérsia, a fim
de que se superassem as causas das discórdias e fosse restituída a
concórdia às igrejas. Ouvindo essas palavras, Nectarius hesitava entre
ansioso e solícito e, mandando chamar o bispo Agelius, porque com ele
naturalmente comungava na fé, manifestou-lhe a decisão do imperador.
Ele, embora fosse um homem pio e religioso, não tinha a menor aptidão
para uma disputa teológica, incumbiu então o seu leitor Sisinius da
missão da disputa doutrinária. Mas Sisinius, homem sobretudo discreto e
dotado de grande circunspecção, como notasse com razão que esse método
de disputa não sanaria as causas da discórdia, mas antes pelo
contrário acirraria ainda mais os ânimos dos hereges, deu a Nectarius o
seguinte conselho: “Convença o imperador a desistir das disputas
teológicas, mas a promover a apresentação dos antigos autores, de
maneira que o imperador interrogue os chefes de cada uma das seitas: se
porventura tiverem fundamento nos antigos doutores da Igreja
anteriores à controvérsia, declarem suas razões, mas se, ao contrário,
não provarem isso, sejam excomungados…”Apenas ouviu essa sugestão,
Nectarius dirigiu-se a palácio e apresentou-a ao imperador. Este
acolheu feliz a idéia e executou-a com prudência. Ocultando então o que
tinha em mente, interrogou um do hereges se havia doutores da Igreja
antes da dissensão, se apresentariam algum dos seus argumentos e se os
acatariam como idôneas e dignas testemunhas da doutrina cristã. Quando
ouviram isso, os bispos das seitas e seus polemistas, hesitaram sobre o
que haveriam de fazer. Com efeito, dividiam-se em várias
opiniões…Embora unidos na malícia, manifestou-se a divisão entre a
doutrina deles e a daqueles velhos gigantes. Depois que o imperador
verificou a grande dispersão deles, que eles só se apoiavam na
sofistica mas não no testemunho dos antigos, tomou outra decisão.[58]
Como se pode ver, os próprios arianos, ainda que se jactassem de
afirmar para a plebe ignara que conservavam uma fé transmitida pelos
padres e até conseguissem encobrir sua heresia com algum matiz do dogma
da Trindade tirado daquilo acima referido, entretanto, interrogados
com espanto se queriam permanecer fiéis à antiga tradição, recusaram a
autoridade e o testemunho dos antigos padres. Realmente, com tal
argumento eles não poderiam absolutamente duvidar sem que encontrassem a
própria condenação na antiga e perene tradição.
A mesma coisa se deve dizer a respeito dos mistérios dos outros
dogmas. Por exemplo,a epístola de Cirilo de Alexandria a João Anchenus
na qual refere as calúnias de seus adversários que o acusavam de
defender uma confusão ou mistura do Verbo feita de carne, passível e
divina etc.[59] Igualmente, Santo Agostinho fala excelentemente da tradição do dogma da graça até Pelágio.
2. Pois bem. Sendo assim a coisa, convém agora investigar se aqueles
testemunhos mais dificultosos dos padres não só podem mas também devem
ser entendidos naquele sentido católico a que nos referimos. Não é
necessário buscar alhures a resposta, pois basta a conclusão das
premissas do capítulo primeiro. Com efeito, naquelas coisas que
constituem a suma da fé, há um argumento fortíssimo de que a fé da
Igreja de hoje é a mesma da Igreja primitiva, como se demonstrou acima.
Ademais, do mesmo sentido não puderam afastar-se todos aqueles padres,
cuja autoridade sempre foi acatada e ainda o é. Cumpre, pois, se
naqueles escritos se encontra algo que com cautela não se diria hoje,
observando-se os critérios próprios de hermenêutica da sagrada tradição
e de seus monumentos, receber esses textos no sentido indubitavelmente
ortodoxo, no qual podem ser interpretados, ainda que com probabilidade
pareçam em sentido contrario á luz de uma crítica cientifica rigorosa.
Este é o método solidíssimo de argumentar de Santo Agostinho a
respeito de São João Crisóstomo, cuja autoridade contra o dogma do
pecado original era empregada por Juliano. De fato, observava Santo
Agostinho que era impossível que São João Crisóstomo cresse de modo
diferente, assim como outros autores cujo consenso já evidenciara,
principalmente no que concerne à matéria que não admite diversidade de
sentenças, mas se trata dos fundamentos da religião. Pois, realmente,
se se julgasse do outro modo acerca de causa tão importante, daquilo
que constitui a suma da religião cristã, não teria ele na Igreja tanta
autoridade. E justamente por conservar-se íntegra na Igreja a sua
autoridade, é sinal de que o seu sentido era católico. “Porventura,
pergunta Santo Agostinho (L. I. c. Iul. n. 22), ouves estas palavras
de São João Crisóstomo em sentido completamente contrário às sentenças
dos seus colegas e o separas da amizade harmoniosa com eles e o
proclamas como adversário deles? Absolutamente, não se pode imputar
tamanha maldade a tal homem. São João Crisóstomo, de modo nenhum, a
respeito do batismo das crianças e da satisfação do pecado original por
Cristo, divergiu de tantos outros bispos como Inocêncio Romano
(sobretudo deste), Cipriano de Cartago, Basílio de Capadócia, Gregório
Nazianzeno, Hilário de Poitiers e Ambrósio de Milão. Há outras
passagens em que às vezes também os doutissimos e excelentes defensores
da ortodoxia da doutrina católica, ressalvados os artigos de fé, não
são convergentes, e um fala melhor e com mais propridade sobre um
assunto do que outro. Mas aqui nos referimos aos fundamentos da
fé….Comparando então as crianças com os adultos, João Crisóstomo diz
que estes têm os próprios pecados perdoados no batismo e que aquelas
não têm pecad; não como tu consideraste suas palavras, não maculados pelo pecado,
como tu queres interpretar, não maculados pelo pecado do primeiro
homem…Reproduzirei as palavras gregas ditas por João Crisóstomo…….Essas
palavras em latim significam:Por isso, batizamos também as crianças,
ainda que não tenham pecados certamente, verás que ele não disse as crianças não estão maculadas pelo pecado, mas não têm pecados: interpreta corretamente e não haverá contenda. Mas dirás por que não acrescentou ele próprias?
Por que, pensamos, não falava ele de forma mais segura senão por que,
disputando na Igreja Católica, não julgava que seria interpretado de
outra forma, uma vez que não era provocado por ninguém a tal respeito,
não tendo vós ainda levantado a controvérsia?
Portanto, Santo Agostinho não segue as regras da crítica textual,
como dizem os nossos modernos, mas princípios mais altos que devem
reger toda legítima exegese patrística. Refiro-me a tais princípios
cuja rejeição ou negligência constitui o principal vício da crítica de
que se falará no próximo capitulo.
Capítulo III
Do defeito do método histórico na análise dos monumentos da tradição
A investigação das coisas divinas sem as devidas cautelas nas premissas é causa de todos os males.
Acerca do método histórico, que constitui sem dúvida a grande
questão entre os modernistas, mas não tratado igualmente por todos, não
há um juízo uniforme. Dizem ser necessário fazer distinções, pois uma
coisa se refere aos preâmbulos da teologia, em que se demonstram os
fundamentos da fé (se se deve admitir ou não revelação cristã); outra
coisa refere-se à própria teologia, em que, após o conhecimento da
existência da revelação e de suas fontes, investiga-se a íntima dos
dogmas revelados, (que sentido tem, qual sua interpretação, qual o
verdadeiro sentido da palavra, o que do céu descendo de Deus está
contido no instrumento da escritura inspirada ou da divina tradição). E
realmente uma distinção óbvia, elementar, mais evidente, que não
necessita de explicação. Mas considere-se agora onde, de acordo com o
juízo dos novos teólogos, se aplica ou não o método histórico. Não se
aplica quanto aos preâmbulos, não se aplica quando se está no
vestíbulo, quer dizer, ao julgar o fato da revelação, se esta doutrina
que se chama cristã tem origem no céu ou no homem. A razão disto é que a
inteligência absolutamente não capta os argumentos externos da
revelação, isto é, os milagres, as profecias, que por tal método
histórico são deixadas na metade do caminho; de modo que se deve aí
substituir pelo método da imanência para demonstrar a verdade
religiosa, ou credibilidade da fé cristã, só a partir das aspirações,
exigências e energias próprias da alma humana. Pensar-se-ia que se
trata de história e de aplicar os critérios próprios da história à
disciplina sagrada na qual se abre um grande campo para a história. Mas
não se trata disto. Pois este mesmo método histórico, que se
pretende deixar fora do vestíbulo, encontrará seu lugar (coisa
admirável) no âmago do santuário; e aquilo que, em matéria de apologia
se exprobrava como obsoleto, agora em matéria teológica, aclama-se como
o método por excelência. A razão disto é que tudo quanto está fora da
história é a priori, está na nuvem, e não merece crédito do homem
moderno. Incumbe, portanto, à escola histórico-teológica submeter a
uma crítica os pontos frágeis da religião e construir o edifício da
teologia, solapado pelo tempo, com um novo material em lugar dos antigos
fundamentos.
Mas, pergunto eu, que coisa revelam tais devaneios senão uma
completa confusão de idéias, um absoluto caos e a que nos conduzem
esses novos sistemas? Negam justamente o método histórico onde ele tem
valor. Aplicam-no onde não tem legitimidade. Isto ficará bem claro nos
próximos parágrafos.
§ 1
Por que o método histórico, por oposição ao método da imanência, é o
único método legítimo no que se refere aos preâmbulos da fé, quando se
tem de provar o fato da revelação, isto é: se a doutrina cristã
revelada por Deus é crível e como tal deve ser crida.
O método histórico em geral consiste em duas coisas. Primeiro,
naquilo que se refere ao texto ou monumentos, ou fatos externos.
Segundo, naquilo que se refere aos únicos critérios experimentais de
que se possa valer a faculdade natural da razão humana. Mas em ambos
modos, imediatamente ou à primeira vista aparecerá conveniente à
demonstração dos preâmbulos da fé. Com efeito, nesse sentido o
princípio do seu processo inicia-se em fatos externos. Pois, “para que o
obséquio da nossa fé fosse concorde com a razão, diz o Concílio
Vaticano, Sess. 3, cap. 3, quis Deus aos auxílios internos do
Espírito Santo juntar argumentos externos da sua revelação, fatos
realmente divinos, principalmente os milagres e as profecias.” É
igualmente conveniente da parte dos critérios obtidos da experiência
natural. Ainda não se supõe o conhecimento da revelação. Ao contrário, a
própria existência da revelação é objeto de toda investigação, e por
isso, para que não cometamos o pecado de um círculo vicioso, convém
considerar a parte quaisquer regras ou normas derivadas da revelação,
de modo que a apreciação e crítica dos fatos que se recebem como
argumentos se subordinem ao ditame apenas da reta razão. Em tal método
histórico observam-se todas as condições aqui exigidas. E não só isso.
Mas o mais importante é que só com tal método um discurso racional chega
à conclusão firme da demonstração proposta. Com efeito, a revelação é
um fato; é um fato liberalíssimo da parte de Deus; é um fato
sobrenatural, isto é, não exigido absolutamente da natureza; é,
finalmente, um fato que não pode ser conhecido em si, diretamente, por
nós. Onde, pois, está tal argumento que demonstra um fato dessa
natureza? Realmente, teria sido dito por Deus o que foi dito por Jesus
Cristo, o qual não se distinguia externamente dos outros homens? Mas
dito por Deus aquilo que foi pregado pelos apóstolos, o que foi
recebido de boca a boca por eles, foi transmitido até a nós pela
Igreja? Deve-se pensar muito sobre isso. Se não se quer erigir um
absurdo apriorismo como princípio, deve-se demonstrar o fato divino em
si não cognoscível por outros fatos divinos em si cognoscíveis:
certamente, poderão ter para nós valor de sinais, visto que propostos à
nossa experiência e juízo, tanto em sua transcendência sobre as forças
da natureza, quanto em sua coerência com a revelação cristã, se
realmente como divina for assinalada e autenticada. E esses fatos
poderão ser, e realmente o são, de múltiplo gênero. O fato das
profecias compridas pelo ocorrido; aqueles fatos físicos que
simplesmente sem mais são ditos milagres; igualmente, os diversos outros
fatos eminentes por seu modo admirável sobre todas as leis da
história, como aqueles referidos pelo Concílio Vaticano na passagem
citada: a propagação admirável da Igreja, a eximia santidade e
inesgotável fecundidade em boas obras, a unidade católica, sua invicta
estabilidade e outras coisas semelhantes. Pois estas coisas se contêm
igualmente na ordem dos fatos: ainda à luz de critérios históricos
brilham como divinos, e, portanto, são idôneos para uma demonstração:
embora o seu principal fundamento tenha de ser tomado dos milagres e
profecias, pelo que aqueles sinais são mais evidentes para nós e
acessíveis à inteligência comum de todos os homens. Tal procedimento
foi, portanto, sempre proposto, a começar pelo próprio Cristo Senhor e
por seus apóstolos, como o atesta toda a narrativa evangélica desde o
início até o fim: “autenticando-a Deus, diz Heb. II, 4, com sinais,
milagres e prodígios e pelos dons do Espírito Santo distribuídos “[60]
Mas agora esse método, não sei por que considerado vicioso, é
substituído por um novo método, que toma o princípio de demonstração
não dos fatos externos, mas só do subjetivo estado da alma: quer dizer,
os dogmas cristãos são postulados por um tal estado de alma e a ele se
ajustam, a fim de que a alma possa descobri-los em si mesma, ou ao
menos penetrá-los a vontade e com sua própria energia assimilá-los
imediatamente e se propõem contanto que se ocupe em sua purificação e
retidão moral. Pois o progresso da nossa vontade obriga-nos a confessar
nossa insuficiência, leva-nos a sentir a necessidade de certo auxílio e
permite-nos olhar, conhecer e finalmente acolher a ordem sobrenatural.
Portanto, só este método é legítimo, porque todo dogma provado
extrinsecamente põe um limite indevido aos direitos da razão e anula
sua necessária autonomia, que quer que só adquiramos como verdade
aquilo que é imanente a nós. De resto, não há por que nos ocuparmos
mais disto. Basta que se saiba que o princípio da imanência é a
aquisição definitiva da filosofia moderna. Com efeito: “Quem se recusa
a admitir este princípio, já não é contado entre os filósofos. Quem
não chega a compreendê-lo demonstra ipso facto não ter senso
filosófico. Há alguma dúvida? Mas se a alguém não lhe bastam estas
declamações retóricas nas quais consiste toda a demonstração do
problema, talvez admire a base imaginária do sistema, a construção
fantástica, a sua absoluta inanidade. E se realmente se proferir tal
juízo sobre a nova teoria no campo estritamente teológico,
consequentemente aparecerá como condenável porquanto corruptora da
noção fundamental de entre sobrenatural, e até mesmo destruidora de
toda fé cujo motivo seja a autoridade de Deus revelador, como aliás se
deve agora como é débil quanto ao fundamento pressuposto, quão inepta
quanto ao fato concebido, quão ridícula sua presunção de eliminar e
superar a solidez da apologia tradicional com fulcro nos milagres e em
outros argumentos exteriores da revelação.
Digo que é vá quanto ao fundamento que previamente se fixa. Com
efeito, desprezando os argumentos externos pelos quais Deus uno e
verdadeiro, criador e Senhor nosso, é conhecido como que pelos efeitos;
fechando os olhos para todas as gestas divinas no mundo, para a vida,
pregação e obras de Jesus Cristo, para a preparação e seu conseqüente
advento, para quaisquer outros fatos objetivos pelos quais desde o
início até hoje os testemunhos divinos se tornaram dignos de toda
credibilidade: todo o conjunto da verdade religiosa, também a revelada,
compreendida também a existência de Deus, tenta demolir tudo isso em
nome apenas de uma consideração da insuficiência, indigência,
inquietação e das aspirações da alma humana. Realmente, crer-se-ia
ouvir filósofos sonâmbulos. Com efeito, pergunto, qual o gênero de
argumento, qual é este discurso raciona: sou indigente, logo sou
indigente da parte da coisa é aquilo de que sou indigente ou a mim mesmo
pareço indigente? Alguém diria, conduzido apenas pelo ditame do senso
comum: Estará no desejo, estará na aspiração, estará também, e com mais
freqüência, naquela fantástica objetividade cuja causa e princípio é a
própria alma, criando tão facilmente e chamando à existência os seus
desejos. São as chamadas ilusões da alma: “Mas quantas são as ilusões
da alma, diz Santo Agostinho, se quiser dizer tempo quando basta?
Realmente, que alma não sofrerá isso? Breve é o que advirto, de que
modo nossa alma está repleta de ilusões.” Todavia, daquela imaginada
objetividade à objetividade objetiva há tanta distância quanto há entre
a realidade e o sonho. Finalmente, o desejo, a aspiração, e qualquer
outra coisa semelhante, por si não mostra nada senão indigência; a
indigência nada revela senão vacuidade; mas a vacuidade, que eu saiba,
nunca poderá demonstrar existir realmente aquilo pelo que se enche.
Estas coisas são manifestas nos diz aquele senso filosófico do qual por
suma desgraça estamos privados.
Se alguém replicar dizendo que todos aqueles que antes de nós
escreveram com sabedoria e eloqüência sobre a alma, a felicidade e o
fim do homem chegaram a muitas conclusões solidíssimas a partir do
desejo da natureza que não pode ser ilusório ou permanecer inane: a
este direi que advirta com atenção que suas condições de argumento
estão muito distantes do fundamento do método da imanência. Com efeito,
consideram a natureza como obra de Deus sapientíssimo criador e
providente; de Deus, direi, princípio e fim de todas as coisas, a quem
por outra parte conhecem por suas aspirações: isto é, do fato da
existência dos efeitos das coisas do mundo que não têm em si sua razão
suficiente de ser, de sua ordem e de sua evolução. Portanto, o desejo da
natureza não é tomado como nu e simples desejo, mas como desejo
radicado na natureza por Deus autor, a cuja sabedoria claramente
repugna imprimir à sua criatura proporção, exigência e tendência que
não possam ser satisfeitas. Aqui a aspiração natural é considerada
formalmente como inclinação da coisa para o seu fim natural, conforme
disposição do seu criador.[61]
Aqui também, a partir do apetite da alma pode-se formar um argumento
eficaz, ainda que não de qualquer apetite, mas só do apetite, como
dizem, inato, ou também elícito não excedente os limites do inato.[62]
Entretanto, quando me encerram em aspirações, que se diz serem
imanentes; quando do fundo das aspirações se quer fazer emergir todo o
edifício da verdade religiosa, por onde se pretende afirmar a
existência de Deus, existir a revelação, existir uma ordem superior,
quando todas essas verdades respondem, nem mais nem menos que às meras
aspirações do coração, em meu íntimo rio e digo que é vão, ilusório,
fantástico, oco semelhante a um devaneio tal fundamento.
Mas, por favor, deixemos tudo isto de lado. Admitamos por ora esse
fundamento e demos maior premissa de todo o processo: haver necessária
conexão entre as aspirações da alma exatamente como tais e a concreta
existência das coisas que por elas se postulam. Chegaremos assim ao
fato que o novo método apologético coloca no lugar da menor, realmente:
as aspirações do coração na verdade requerem, exigem, postulam a
revelação. Ai também só há sonho, jogo da imaginação. Com efeito, um
fato dessa natureza está longe de toda experiência positiva. Negam-no
em primeiro lugar todos os racionalistas. Negam também todos os
teólogos católicos. Nega-o finalmente o Concilio Vaticano,
estabelecendo expressamente e definindo que a revelação foi
absolutamente necessária apenas na medida em que foi do beneplácito de
Deus por sua infinita bondade conceder ao homem um beneficio indevido,
ordenando-o a participar dos bens divinos que superam completamente a
capacidade da inteligência humana, pois o olho não viu nem o ouvido
ouviu nem o coração do homem sentiu o que Deus preparou para aqueles que
o amam. Mas ainda há outra coisa: aqueles que em primeiro lugar
deveriam recusar esse erro são imanentistas, embora não tenham nenhuma
verdade legítima a não ser aquela tirada do fundo da própria alma.
Realmente, não se pensa nada mais estranho que a revelação no fundo da
alma humana, e imediatamente busca-se qual gênero de quimera seja a
alma se não pode receber nenhuma verdade senão a autóctone e ao mesmo
tempo não necessita nada mais do que da instrução e da doutrina
recebida do exterior, isto é, de Deus revelador que vem fora e acima de
todas as leis da natureza.
Que dizer, se descermos à concreta aplicação de tal teoria! Pois a
revelação que dizem ser exigida pelas aspirações do coração não é a
revelação em geral, mas aquela revelação existente no individuo, a qual
se chama fé católica. “Mas a fé católica é esta, um Deus na Trindade,
e a Trindade na unidade veneramos, sem confundir as pessoas, sem
separar a substância. Uma a pessoa do Pai, outra a do Filho, outra a do
Espírito Santo, mas uma mesma é a divindade do Pai, do Filho e do
Espírito Santo, igual a glória, coeterna majestade…Deus Pai, Deus
Filho, Deus Espírito Santo, mas não são três deuses, mas um só Deus…Pai
que não foi feito por ninguém, não criado, não gerado. Filho do Pai
só, não feito, não criado, mas gerado, Espírito Santo do Pai e do Filho
não feito nem criado, mas procedente…Esta é também a fé reta, para que
creiamos e confessemos que Nosso Senhor Jesus Cristo é Filho de Deus,
Deus e homem…O qual, ainda que Deus e homem, não são dois, mas um só
Cristo, um, não pela confusão da substância, mas pela unidade da
pessoa…Que padeceu por nossa salvação, desceu aos infernos, ressuscitou
dos mortos ao terceiro dia, subiu aos céus, está sentado à direita do
Pai…Esta é a fé católica, a qual se alguém não guardar fielmente não
poderá ser salvo.” Pois bem, veja o leitor, indague agora o que há de
comum entre esta fé católica e as aspirações, exigências e postulados
que latem no fundo da alma humana. Se o leitor vir, nuito bem; eu não
vejo nada.
Mas alguém dirá: não é sob este aspecto que se deve considerar a fé
cristã quando se deve emitir um juízo sobre a sua conveniência com as
aspirações do coração: não da parte teórica, mas sim da parte moral,
que afeta o senso prático. Seja como for. Mas também deste modo digo
que é tão eficaz e tão rigoroso há de ser o argumento pelo qual algum
turco demonstraria a credibilidade da revelação trazida por seu profeta
Maomé. Pois também Moisés trouxe uma revelação ao mundo e teve
colóquio com |o Arcanjo Gabriel segundo relata o Corão: como também
encontramos no Evangelho, Jesus Cristo desceu do céu para nos comunicar
as palavras daquele que o enviou. Além disso, se o juízo depende das
exigências e tendências do coração, parecerá muito mais verídica a
revelação de Maomé que a de Cristo a quem ouve suas aspirações! De nada
vale dizer que as aspirações a que corresponde o paraíso de Maomé não
são boas, enquanto não se demonstrar a verdade de seus postulados.
Porque, deixando agora de lado as outras premissas, quem ensinará esta
distinção entre aspirações boas e não boas? E eu também, enquanto não
abandono o homem real, enquanto apreendo minha natureza como
constituída sob a ordem da primeira causa, do primeiro princípio e do
fim último de todas as coisas, enquanto respeitar esse supremo fim
posso julgar e julgo a bondade ou maldade de minhas aspirações. Mas
ainda insisto: se estou encerrado em minhas aspirações como no primeiro
princípio do qual se deve retirar e comparar toda verdade, já não sei
quais sejam as boas ou más aspirações. Não conheço nada a não ser
aspirações verdadeiras e reais. Mas descubro em mim aspirações que
desejam um paraíso maometano, outras que desejam o paraíso de Cristo, e
concluo serem igualmente verdadeiras as revelações do Corão e do
Evangelho, ambas aceitáveis. Veja-se como é inepto, inconsistente e
contraditório este sistema.
Há algo pior, pois, na medida em que alguém confia na solidez do
novo sistema, persuadido de que a apologia tradicional perdeu o seu
vigor no esplendor de sua luz com os milagres e outros argumentos
externos da revelação (dos quais afirma não duvidar), por já não
corresponder à mentalidade moderna e tais milagres não terem mais força
demonstrativa para os homens contemporâneos. Nisto, com efeito, o
cúmulo se acrescenta aos fantásticos juízos de que consiste todo o
sistema. Crer-se-ia que os estudiosos da imanência até agora não sabem
nada nem ouviram falar absolutamente nada acerca dos novos e
esplendidos com que aprouve a Deus até hoje, no teatro de suma
publicidade à luz do sol, confirmar a credibilidade da fé católica.
Para a história desses fatos, portanto, na qual há uma perfeita
refutação da ridícula teoria, remetemos os inovadores[63]
efetivamente, é verdade que o moderno espírito de incredulidade resiste
aos milagres e imagina o impossível para não admitir a realidade dos
milagres e voluntariamente fecha os olhos para não confundido pelo
irrecusável testemunho dos milagres[64].
Mas fora isso, ah deuses imortais! não há nenhuma novidade, a não ser
talvez se se queira dar certo ar moderno próprio do tempo dos escribas e
fariseus, a conclusão seria completamente diferente daquela que querem
tirar. Realmente, os inimigos da revelação tentam solapar suas sólidas
demonstrações; mas contra a tênue e nebulosa apologia da imanência
quais armas e forças aplicar? Dela zombam e zombarão sempre, e o diabo
com eles.
Assim, pois, aparece quão absurdamente se afasta da chamada teologia
fundamental o método histórico. Mas surge a questão se indevidamente
expulso do vestíbulo, com legitimidade é admitido no santuário da
ciência sagrada. Disto trataremos no próximo parágrafo.
§ 2
Por que o método histórico, por oposição ao método teológico, é não
apenas insuficiente e desproporcionado, mas também indutor de erros
positivos de todo gênero, quando após os preâmbulos da fé não indaga se
a revelação cristã existe mas investiga o seu sentido, e qual a
interpretação daquilo que está contido em suas fontes. E por que o
mesmo método, se chega ao ponto de, sob a enganosa imagem de abstração
de regras superiores, utilizar-se da mesma independência em suas
habituais hipóteses e conjunturas que pretende concretizar, e se
aquelas regras superiores não existirem, tem em sua base uma heresia
mais perniciosa porque artificiosamente dissimulada e mais grave porque
abre caminho mais livre para toda negação dos dogmas revelados.
A razão geral desta tese é evidente, de modo que não há necessidade
de uma longa explicação. Com efeito, em qualquer ordem de exegese, o
primeiro e indispensável critério de interpretação deve ser sempre
tomado a partir daquelas coisas que são próprias do autor e da escola
cuja doutrina se investiga. O comum bom senso o dita; a razão óbvia o
demonstra. Pois o que se diria, pergunto, de quem se atrevesse a
comentar os livros de Aristóteles ou expor autores da escola
peripatética descurando a terminologia própria de Aristoteles, suas
regras e seu método, os princípios que regem sua escola? Quando se
busca a interpretação, seja dos livros que tem a Deus por autor
revelador, seja das obras, que, ainda que não inspiradas por Deus, mas
pertencem a uma escola, se se pode dizer, fundada por Deus e instituída
para a guarda e propagação da doutrina revelada, antes de tudo é
necessário atentar para toda as normas derivadas da mesma revelação e as
regras especiais que a revelação ou sua natureza inspira ou de fato
estabelece. Estes são critérios teológicos. Ao contrário, o método
histórico ignora justamente estes critérios e utiliza-se dos critérios
profanos que se empregam nas coisas humanas. De que modo, então,
poderão ser eles legítimos? Certamente, conduzirão a erros gravíssimos
na interpretação de muitos textos. Ilustraremos isto com alguns
exemplos.
Leia-se, por exemplo, no Evangelho segundo São Mateus, que antes que
José Maria se casassem, concebeu Maria por obra do Espírito Santo;
leia-se que José não a conhecia até que deu à luz seu filho
primogênito; também há a menção a vários irmãos e irmãs de Jesus. Ora,
encerrado no método histórico, facilmente conclui-se daí que há irmãos e
irmãs uterinos; diz-se primogênito, não só um antes que nenhum, mas
também depois de vários; portanto o sentido do evangelista é que antes
que Maria fosse conhecida por José teve filhos e filhas e que, por
conseguinte, perdeu a virgindade. Comete-se um erro, ou melhor,
incorre-se em heresia formal. Se se respeitassem os critérios superiores
da fé, esse sentido certamente estaria excluído. Compreender-se-ia que
o evangelista excluiu essa possibilidade que poderia ocorrer ao
pensamento; compreender-se-ia que ele estabeleceu como indubitável e
como que fora de qualquer possível suspeita que, após tal concepção do
Espírito Santo, o sacrário da divindade permaneceu inviolável;
compreender-se-ia finalmente ser dito no mesmo sentido: não a conhecia
até que, etc, aquilo que diria no sentido: este não fez penitência até a
morte, porque, quando se trata de penitência, só se pode falar do
tempo presente, e quem afirma que alguém não se arrependeu enquanto aqui
viveu, diz que não se arrependeu jamais, até na eternidade.
Lê-se em São Lucas que Jesus crescia em sabedoria e idade e graça
perante Deus e os homens, e porque não se diz de Jesus de modo
diferente o que se diz de qualquer menino dotado de boa índole,
conclui-se que o evangelista quis dizer que Jesus crescia
intrinsecamente na virtude, porque pouca a pouco, sem perceber, tomava
consciência de si, pois, como qualquer outro, de ignorante fazia-se
sábio. Labora-se em erro. Certamente aqui São Lucas, à maneira de um
historiador, atesta o fato externo, sensível, experimental, visível
àqueles junto aos quais crescia Jesus; isto é, o fato de qualquer
progresso observado pelas ações exteriores, à proporção que por essas
ações, fossem acerca dos deveres para com Deus, fossem dos deveres para
com os homens, cada vez, com o passar do tempo, manifestavam-se a
sabedoria e a graça. E se realmente se houvesse de emitir um juízo
sobre o sentido do evangelista e do fato por ele atestado segundo as
regras gerais, de fato seria legítima a passagem, legitima a ilação de
um progresso interior, porquanto aquele, no curso normal das coisas,
está ligado ao fenômeno exterior como a causa com o efeito. Mas algo
impede que se faça tal juízo conforme essa norma ordinária e geral.
Quanto ao fato, veda-o o princípio revelado pelo qual somos ensinados
que as ações de Cristo não resultaram de uma crescente sabedoria e
virtude, mas apenas como crescentes manifestações da sabedoria e da
virtude de que estava pleno desde o início. Quanto ao sentido do
evangelista, porém, veda-o a certíssima fé na inspiração do evangelho,
da qual na verdade se pode às vezes abstrair, mas contra a qual ninguém
pode jamais sentir.
Lê-se em São Marcos que Jesus, vindo a Nazaré, não podia aí fazer
nenhum milagre mas apenas curou poucos enfermos impondo-lhes as mãos, e
daí conclui-se que o escritor estava persuadido de que era limitado o
poder dos milagres em Cristo e que o defeito do poder foi realmente a
causa de não ter beneficiado com milagre inúmeros enfermos. Aqui também
se labora em erro. Com efeito, supostas as regras da fé sem as quais
os livros de Deus não têm reta interpretação: “Deve-se dizer que aquilo
que se diz: “não podia aí fazer nenhum milagre” não se refere à
potência absoluta, mas àquilo que se pode fazer congruentemente”[65]
Não porque, diz São Jerônimo, àqueles incrédulos não pudesse fazer
muitos milagres, mas porque não condenasse aqueles cidadãos incrédulos
fazendo muitos milagres. Conforme aquilo que está no livro dos Gênesis
18,17: Acaso não poderei ocultar a Abraão o que hei de fazer? E em
19,22: “nada poderei fazer antes que lá tenhas chegado.” Igualmente, em
São Mateus, lê-se que Cristo admirou-se ouvindo falar o centurião, e,
como para nós a admiração resulta de algo inesperado, transferir a
causa da admiração para Cristo é afirmar, portanto, que Cristo
participa de um defeito comum nosso ou da nossa ignorância. Assim,
pois, se procede humanamente; mas critérios mais altos subministram
outra explicação: “Deve-se dizer que a admiração é propriamente de algo
novo e insólito. Em Cristo, porém, não podia ser algo novo e insólito
quanto à ciência pela qual conhecia as realidades no Verbo, e tampouco
quanto à ciência pela qual conhecia as realidades por espécies
aplicadas. Pôde, entretanto, haver algo novo e insólito segundo a
ciência experimental, segundo a qual diariamente lhe ocorriam coisas
novas. E portanto se falarmos dele quanto à ciência beatífica ou também
quanto à infusa, não houve em Cristo admiração. Mas se falarmos dele
quanto à ciência experimental, então pôde nele haver admiração, e
assumiu esse efeito para nossa instrução, a fim de realmente nos
ensinar que é admirável porque ele mesmo se admirava.”[66]
Encontra-se uma dificuldade em conciliar entre si os evangelistas
quanto à ordem e circunstâncias das aparições de Cristo às mulheres
após a ressurreição, e apoiando-se em no método modernista, que sempre
recorre às hipóteses mais verossímeis e mais fáceis, opina-se que nesse
ponto há lapsos dos evangelistas, ou de todos ou de alguns deles. Com
efeito, isso seria provável se se tratasse de livros humanos; não é
provável, mas deve ser certamente excluído se se trata de livros
divinos. – Compara-se o evangelho de São João com os sinóticos e feito o
confronto, julga-se que se Cristo falou conforme São João, não pôde
falar como os sinóticos, ou vice versa, se falou como os sinóticos, não
pôde falar como São João. Tal conjectura é muito débil, ainda que
tivesse toda probabilidade, para quem admite a doutrina certíssima da
fé que apresenta os quatro livros de um mesmo evangelho de Jesus
Cristo. E assim sucessivamente em muitos outros casos que poderiam ser
enumerados se não nos faltasse tempo.[67]
Porque, se agora se opõe à defesa do método modernista o fato de os
evangelhos serem também documentos realmente históricos, que como tais,
nem mais nem menos, devem ter sido recebidos nos preâmbulos da fé por
ordem ao juízo de credibilidade, quando as regras e os critérios que
derivam da fé ainda não são usados nem podem ser, a fim de que – o que
não se admite – não se incorra em manifesto círculo vicioso,
responderei que isso é muito verdadeiro, mas acrescentarei logo que ,
em uma inadequada concepção do evangelho, não é absolutamente possível
um juízo adequado e completo sobre a coisas do evangelho. Tomar-se-ão,
pois, os fatos externos, visíveis, de ordem experimental, que no
evangelho são atestados; mas quanto à razão íntima das coisas,
evocar-se-á à memória o que à luz só dos critérios comuns chegará
apenas a conclusões hipoteticamente verdadeiras; hipoteticamente, digo,
isto é só segundo a ordem das coisas geralmente contingentes, ordem que
aí não existe, conforme ensinará a luz superior da fé. Tomar-se-á
também a substância da narração histórica, que é evidentemente a mesma e
se apresenta principalmente em todos os nossos livros, e tal qual a
todo homem sincero oferece solidíssimo fundamento de convicção a
respeito dos milagres e outros sinais. Mas quanto ao modo de narração e
aos acidentes, convém recordar que o habitual método crítico-histórico
poderá conduzir a muitas conjecturas mais ou menos verossímeis, que
não passarão de conjecturas, até que a fé na inspiração, transcendendo o
procedimento modernista, mostrará que elas talvez sejam falsas.[68]
Haverá com freqüência passagens em que se suspende o juízo e se dirá
que só à luz da ciência histórica não consta tudo quanto acerca dos
fatos da história sagrada ou da sua absoluta infalibilidade a sagrada
doutrina conserva e transmite. Mas de qualquer modo, o método de tratar
e interpretar o evangelho com aquela liberdade e independência que se
admite nos documentos profanos da história é falso, vicioso e induz em
erro.
Ademais, guardada a proporção o mesmo erro se verifica quanto à
interpretação da tradição, quando concebem a tradição como se estivesse
colocada no fato histórico comum, isto é, no fato da transmissão de
qualquer doutrina segundo apenas as forças e recursos dos engenhos
humanos; e relegam completamente a segundo plano os critérios
superiores que no caso são necessários para a formulação de um juízo
legítimo acerca do sentido dos antigos padres em muitas passagens que
nos parecem obscuras, e absolutamente falando, podem oferecer azo a
diversas interpretações; entre as quais os críticos, por seu prurido de
opinar livre e independentemente, escolhem aquelas que inclinam para o
lado heterodoxo, para que cheguem à conclusão desejada: o sentido da
igreja primitiva teria sido diferente daquele que prevaleceu mais
tarde. Com efeito, se a tradição fosse conduzida só pelo espírito
humano, então, efetivamente, nada obstaria a que se admitisse a
possibilidade da mutação do sentido e compreensão dos dogmas. Então não
seria necessário tomar emprestada das claras explicações dos padres
posteriores a segura e certa norma de interpretação das mais obscuras
exposições dos mais antigos. Então seria licito confrontar os
sucessores com os antecessores. Então talvez se pudesse dizer que
aqueles grandes doutores dos séculos quarto e quinto ou enganaram ou se
enganaram, quando professaram, tão veementemente e tão instantemente,
estar ligados completamente ao sentido e às sentenças dos seus maiores.
Santo Agostinho não teria compreendido os autores dos quais escrevia
no exórdio dos livros sobre a Trindade: “Todos os que pude ler, que
antes de mim escreveram sobre a Trindade que é Deus, os tratadistas
católicos dos livros sagrados, assim o entendem segundo ensinam as
Escrituras que o Pai, o Filho e o Espírito Santo de uma mesma e única
substância constituem uma unidade divina de uma igualdade inseparável e
portanto não são três deuses mas um só Deus.[69]
Em suma, os escritores primitivos teriam conhecido, sob o sumo e
suprem Deus, no Filho e no Espírito Santo deuses inferiores ou
demiurgos e, assim, teriam introduzido um novo paganismo diverso do
antigo só sob uma forma acidental. Direi que talvez se possa dizer
essas coisas, que, ainda que pareçam bastante grosseiras, mesmo assim
são conclusões admissíveis por aquela disciplina que tem por habito
repousar sobre muitas hipóteses e conjecturas.[70]
Aqui também, não de outro modo que na Escritura, se deve reconhecer um
elemento mais humano; e como se tratava do método histórico e se devia
dizer deletério e abertamente insuficiente para a interpretação do
evangelho, do mesmo modo será para a interpretação dos monumentos da
sagrada tradição.
Mas note-se bem: não devaneamos porque se certas coisas bem
demonstradas segundo os critérios legítimos da disciplina histórica,
poderão, entretanto, às vezes, mostrar-se falsas segundo os princípios
superiores da fé e os critérios próprios da teologia. Absolutamente
não. Não é este o sentido das premissas. Mas dizemos apenas que no
trabalho crítico desenvolvido as regras frequentemente levam a juízos
meramente prováveis, a conjecturas mais ou menos verossímeis, para não
completamente imaginárias. Pois bem, aquilo que à luz da crítica
histórica poderia ser conjectural ou até mesmo provável já não é
provável se se opuser à verdade que por outra via com absoluta certeza
se manifesta. De fato, é herético ou errôneo, e não é licito opinar se
contradiz aquelas coisas que a fé ensina ou os critérios teológicos
demonstram. Ademais, se com a aparência de precisão derivada de
critérios superiores se intenta tratar os documentos da Sagrada
Escritura ou da Tradição com a mesma liberdade e independência que se
concede aos estudos profanos, não só não se evitará a corrupção
herética, mas acrescentar-se-á também o delito de artificiosíssima
falácia. Escrevia o autor do opúsculo O Evangelho e a Igreja,
na introdução de sua obra: “Neste opúsculo temos a intenção de
considerar todas as coisas apenas segundo o critério histórico; não
desenvolvemos uma apologia do catolicismo e do dogma tradicional. Se tal
fosse nossa intenção, o presente opúsculo seria muito incompleto e
defeituoso, sobretudo no que concerne à divindade de Cristo e à
autoridade da Igreja…Não pretendemos aqui demonstrar nem a verdade do
Evangelho nem a verdade do cristianismo católico, mas apenas definir o
modo de ser pelo qual o Evangelho e a Igreja católica na história estão
unidos. O leitor de boa fé não se enganará quanto a isso.[71]
Não se pode dizer isto se a tantos incautos ilude esta dolosa
declaração. Acaso, diziam, uma coisa é distinguir, outra negar? Acaso
não é axioma aceito por todos eles: distrair não é mentir? Por acaso
não é uma a visão do historiador e outra a do teólogo? Realmente. E
chegando ao fim do livro vêem-se todos os dogmas da fé cristã, um após o
outro, destruídos. São considerados, em suma, dignos de abjuração,
senão mesmo o contrário do dogma admitido e aprovado pelo historiador
para que possa ser recebido como certíssimo pelo fiel. Por isso, digo: o
método histórico, levado ao extremo sob a dolosa aparência de abstração
de regras superiores, emprega a mesma independência nas suas
costumeiras hipóteses e conjecturas a serem construídas ainda que não
existissem tais regras superiores, tem em seu fundamento uma heresia
tanto mais perniciosa quanto mais abre caminho mais livre para a
destruição de todos os dogmas revelados.
Capítulo IV
Do erro da verdade relativa nos dogmas da tradição[72]
“Disse-lhe Pilatos: Que é a verdade?”
(Jo. 27, 38)
(Jo. 27, 38)
Uma vez admitido que o entendimento da Igreja antiga a respeito dos
dogmas primários da nossa religião fosse realmente diverso do
entendimento que prevaleceu posteriormente na Igreja, não se pode mais
afirmar a imutabilidade da tradição, estável e sempre constante, mas,
ao contrário, dever-se-á reconhecer que ela sempre esteve sujeita a
uma indefinida variação. Em decorrência disso, como querem os novos
mestres, as noções que a Igreja propõe como dogmas revelados não são
verdades descidas do céu e conservadas no mesmo teor em que se
propunham desde sua origem, nada impede que sempre se modifiquem e
sempre se despojem daquele modo que condições especiais de cultura nos
séculos futuros trouxeram, de maneira que cada vez mais se revistam de
uma forma cientifica mais aprimorada. Com muito mais razão se deve
dizer que nada o impede, há muita coisa que exige tal mudança. A
filosofia reformou-se completamente; hoje o conhecimento da história e
do universo é muito mais amplo, hoje….hoje….etc.
Mas dirá alguém: Se assim se deve julgar acerca da sagrada
tradição, se aquilo que até ontem era ensinado como verdade hoje deve
ser corrigido, se se admite uma indefinida evolução, e toda evolução
traz consigo algum descrédito da doutrina antes ensinada, logo errou a
tradição antiga como erra também a tradição presente; toda
infalibilidade é completamente arrancada ao magistério apostólico, e a
promessa feita por Cristo à Igreja do carisma de verdade simplesmente
não existe. Sem dúvida, uma grave dificuldade, que tem, entretanto, uma
excelente solução na distinção que se deve fazer entre verdade
absoluta e verdade que se poderia dizer relativa. Realmente, é esta a
distinção que sugere a filosofia kantiana contra o falacioso dogmatismo
da Escola. Com efeito, não errava ele, que considerava incognoscíveis
os númenos (as coisas em si) ou as naturezas íntimas das coisas,
sobretudo daquelas que estão acima de nós. De fato, quem poderá confiar
realmente em seus conceitos como se fossem conformes com a realidade
objetiva? Que coisa mais incrível que o axioma da antiga filosofia que
considerava a verdade em nossa mente como adequação do intelecto com a
realidade? Que coisa mais absurda ainda, se se referir especialmente
às coisas divinas que se elevam infinitamente sobre tudo aquilo que
nossas idéias possam exprimir? Portanto, para nós, a verdade é uma
contínua investigação, antes que a impossível consecução e posse
daquilo que se investiga; é a concepção que se possa aproximar mais da
realidade; é o melhor modo de falar que possa haver nas nossas presentes
condições e circunstâncias, mas a esse modo de falar não convém jamais
estar vinculado definitivamente. E porque os próprios dogmas da fé
foram formados mediante certa redução dos mistérios divinos às comuns
noções humanas, como a própria estrutura deles o demonstra muito bem,
claro está que neste ponto também, sobretudo neste ponto, considerada a
absoluta transcendentalidade do objeto, a verdade nada mais será que
aquilo que melhor e mais aptamente se disser segundo as correntes idéias
e o estado da cultura próprio de cada época. Nisto consiste a razão da
verdade relativa, que, embora favoreça a doutrina da tradição e das
definições eclesiásticas, concilia excelentemente entre si duas
realidades que antes pareciam incompatíveis, isto é, a evolução
doutrinal e a infalibilidade entendida em justo modo.[73]
Assim a nova escola que agora ganha força, e parece não levar em
conta o anátema proferido pelos padres do Concilio Vaticano, Sessão 3,
cânon 3 sobre a fé e a razão, contra aqueles que dizem “poder suceder
que aos dogmas propostos pela Igreja, alguma vez conforme o progresso
da ciência seja atribuído um sentido diverso daquele como o compreendeu
e compreende a Igreja. Além disso, o escopo do presente capitulo é
explicar como se deve julgar aquela ficção da verdade relativa até
agora celebrada, em primeiro lugar quanto a si mesma e depois a sua
aplicação ao dogma da nossa fé.
§ 1
Porque o conceito de verdade relativa é em si absurdo e porque fora
da definição consagrada pela antiga filosofia (adequação da
inteligência e da coisa), nenhuma outra noção de verdade é admissível.
Como o bem designa aquilo a que tende a vontade, assim a verdade
designa aquilo a que tende o intelecto. Mas há essa diferença entre a
vontade e o intelecto ou qualquer conhecimento, porque o conhecimento é
segundo o que foi conhecido no cognoscente, ao passo que a vontade é
segundo o que a vontade se inclina à mesma coisa apetecida, e assim o
termo do conhecimento que é o verdadeiro está no mesmo intelecto…Mas
como toda coisa é verdadeira conforme tenha a própria forma da sua
natureza, é necessário que o intelecto enquanto é cognoscente seja
verdadeiro enquanto tem a semelhança da coisa conhecida, que é a sua
forma enquanto cognoscente. E por isso, pela conformidade do intelecto e
da coisa define-se a verdade.[74]
E ainda mais: na coisa verdadeira, se o conhecimento deriva da sua
própria natureza, representação do objeto existente no intelecto,
segue-se imediatamente que a verdade, na medida em que é a própria
perfeição do conhecimento, não pode consistir em outra coisa senão na
sua conformidade com o mesmo objeto. Digo, porém, conformidade que não
deve ser buscada na entidade do ato cognoscitivo por comparação à
entidade da coisa fora do intelecto, mas precisamente naquilo que a
coisa em si mesma se constitui objeto como o intelecto apreende e diz
ser objeto constituído.
Mas para que o intelecto diga alguma coisa sobre a real constituição
do objeto, é necessário que ele se refira a outro com um ato seu, e
não faz isso na simples apreensão, mas só no juízo que se exprime por
uma proposição. Com efeito, todo juízo compreende duas noções, das
quais uma se toma como sujeito que supõe em lugar da coisa à qual a
mente se refere, e outra como forma que se atribui ao sujeito e dele se
predica. E supondo o sujeito em lugar da coisa fora do intelecto,
sempre enuncia algo designado e distinto, embora ainda imperfeitamente
apreendido como algo quase potencial que é determinado pelo predicado. E
não se repugnam entre si. Pois certamente o matemático começa a falar
do triangulo antes de saber suas propriedades, e o físico a falar do
magnetismo como de causa de certos efeitos sem que ainda conheça sua
intima constituição; tu nomeias uma planta antes de determinar sua
espécie; nomeias anjo, conquanto tenhas dele uma noção muito vaga e
imperfeita; nomeias Deus embora saibas que estás infinitamente longe da
concepção de sua essência, pois basta que digas primeiro ente, causa
da qual dependem todas as coisas, ou algo semelhante, como se dissesses
que o distingues de tudo o que ele não é. Como, pois, cada ser
corpóreo se apresenta a mim distintamente, ainda que ignore muita coisa
a seu respeito, e esteja oculta para mim a sua própria constituição
numérica ou a razão da sua individuação: assim o sujeito do juízo se me
apresenta como algo singularmente designado, embora potencial, que
deve ser determinado pelo predicado. Agora, pois, se a forma significada
pelo predicado convém à coisa indicada pelo sujeito, como o juízo
afirma convir, ou se não convém, como o juízo nega convir, tem-se a
verdade; mas se ao contrário, a falsidade; mas em ambos casos, não
relativamente, mas absolutamente, simpliciter, sem mais nada a
acrescentar. Com efeito, a conveniência da parte da coisa ou é ou não
é, e esta é conveniência objetiva à qual deve adequar-se a conveniência
afirmada pelo intelecto, para que isso seja exatamente verdade, e nada
mais: adequação do intelecto e da coisa.
Mas observem-se bem os termos da adequação. Os termos da adequação
não são o intelecto e a coisa, como se a partir dai realmente se
colocasse o objeto em toda sua realidade, mas a partir daí o intelecto
exaurindo toda a inteligibilidade dessa realidade, e por meio disso,
como se não devesse haver nada no objeto que não houve igualmente no
intelecto. Assim quiseram os novos mestres interpretar a adequação do
intelecto e da realidade, a fim de ridicularizarem a definição de
verdade recebida da antiga filosofia e assim com razão e facilmente
repudiá-la. Mas quem, pergunto eu, pôde imaginar algum dia que é a
mesma coisa a notícia verdadeira e o conhecimento compreensivo, pelo
qual a realidade é conhecida tanto quanto é cognoscível? Portanto, não é
desse modo que se entendem os termos da adequação, mas sim que de uma
parte seja aquilo que da realidade o intelecto afirma e de outra parte
aquilo que na coisa corresponde a uma afirmação semelhante. Por
conseguinte, quando julgo que Deus é sábio, não digo que haja
adequação entre meu conhecimento e Deus ou sabedoria de Deus,
absolutamente não; mas apenas entre o que é, haver sabedoria em Deus ou
convir a Deus, e o que acerca dessa conveniência fica claro em meu
juízo.
Igualmente, os termos da adequação não são a medida do intelecto no
conhecimento e julgamento, e a medida da coisa em si mesma, porque aqui
também uma coisa é a medida do conhecimento e totalmente outra aquela
que se afirma do objeto por essa medida do conhecimento. Por isso,
Santo Tomás na primeira parte, q. 13, a. 2, perguntando se se podem
formar proposições verdadeiras a respeito de Deus e levantando a
objeção que todo intelecto conhecendo a realidade diferente do que
seja, é falso, e que por outra parte a medida de Deus é completamente
diversa da medida de nosso conhecimento, assim responde: “Em terceiro
lugar, deve-se dizer que essa proposição: o intelecto conhecendo a realidade diversamente do que seja, é falso, é dupla, pois esse advérbio diversamente pode determinar esse verbo conhecendo,
da parte do intelecto ou da parte de quem conhece. Se da parte do
intelecto, essa proposição é verdadeira, e o sentido é: Qualquer
intelecto conhece ser a realidade diversa do que é, é falso. Mas isso
não ocorre na proposição, pois o nosso intelecto formando uma
proposição de Deus não diz que ele é composto, mas simples. Se, porém,
da parte de quem conhece, então a proposição é falsa. Com efeito, uma é
a medida do intelecto no conhecer e outra da realidade no ser.
Realmente, é manifesto que “o nosso intelecto conhece imaterialmente as
coisas materiais existentes abaixo de si, não porque as conheça
imateriais, mas porque tem o modo imaterial de conhecer. E de modo
semelhante, quando conhece as coisas simples que estão acima de si,
conhece-as a seu modo, quer dizer, de forma composta (o que significa
compor o predicado com o sujeito), mas não de maneira que as conheça
como compostas. E assim o nosso intelecto não é falso formando
composição acerca de Deus.” E igualmente por razão semelhante, quando o
nosso intelecto afirma perfeições simples a respeito de Deus, não lhas
atribui segundo um modo determinado e participado tal como elas
existem em nós. Porque nos nomes que atribuímos a Deus, cumpre
considerar duas coisas, isto é, as mesmas perfeições significadas, como
a bondade, a vida, a sabedoria, etc, e o modo de significar. Quanto,
pois, á perfeição que significam esses nomes, propriamente competem a
Deus, muito mais propriamente que às criaturas, de maneira que lhas
atribuímos, não ao modo imperfeito como existem em de perfeição
participada.[75]
Por conseguinte, ainda que não conheçamos positivamente o modo próprio
da perfeição divina, e mesmo que não possa ser conhecida positivamente
antes de sermos dotados da visão, entretanto, naquelas coisas que a
nosso espírito cogita retamente acerca de Deus, a adequação é do
intelecto e da coisa, porque sempre é verdade em Deus aquilo que o
intelecto afirma competir a Deus, e tal como afirma competir-lhe.
Veja-se, portanto, quão sofisticas são aquelas coisas que excogitam
para construir a sua noção de verdade relativa. Dizem, com efeito: De
que modo seria absolutamente verdadeiro aquele juízo no qual o sujeito é
apreendido confusamente e o predicado tem um modo completamente
diverso daquela que a coisa tem em si mesma? Como não estará mesclado
de falsidade, e portanto, não será ao sumo relativamente verdadeiro um
conhecimento tão distante da realidade de toda parte elevada acima de
nós? Em suma, se nem Deus, nem seus atributos, nem a própria razão
deles nos são conhecidos, haverá mesmo assim um modo qualquer de falar
dessas coisas diferente daquele a que estamos habituados ao refletir e
discorrer sobre Deus e as coisas divinas? Assim é, embora absurdo,
porque todas essas coisas mostram que o nosso conhecimento pode receber
maior perfeição, seja graças às melhores espécies que aquelas que
agora temos, seja por direta intuição dele que agora não se manifesta
senão por meio dos seus efeitos, seja por uma nova luz pela qual a
potencia intelectiva se robustece; mas não provam que algum dia os
juízos retos do nosso intelecto inclusive acerca das coisas altíssimas
hão de ser reformados. Nada importa que o sujeito do juízo não seja por
si manifesto; basta, com efeito, se ele for designado de tal forma que
saibamos do falamos. Realmente, nada importa que o predicado seja
inferior à forma significada; basta, de fato, que o conceito seja posto
sob tal abstração, sob a qual possa estender-se também a uma realidade
que sob algum aspecto exceda nosso conhecimento, como, por exemplo, a
respeito das substâncias separadas, nas razões formais que não incluem
em seu significado uma limitação própria às realidades corpóreas; mas a
respeito de Deus, uma limitação da criatura. E se por exemplo o
conceito de vida, de conhecimento, de amor, etc, incluíssem aquele modo
de viver, de conhecer, de amar, que nos é peculiar, com mais razão,
certamente, não se atribuiria a Deus sem falsidade, como falsamente
diríamos que Deus é corpo ou animal, etc. Mas, como estas noções se
abstraem de nossas determinações, e em si mesmas implicam pura
atualidade mão mesclada de algo restritivo, assim podem e devem ser
atribuídas ao ente infinito. Todavia, nada importa que o modo de ser de
Deus seja estendido à imensidão tal como a concebemos; efetivamente,
como dissemos acima, não julgamos que haja em Deus aquele modo de
perfeição que conhecemos, ou concretude ou composição tais como nos
nossos enunciados. Convém, pois, dizer que Deus é sábio, imenso,
onipotente, onisciente, etc, e o juízo assim proferido terá sempre a
mesma verdade imutável em qualquer estágio de cultura, e na proporção
de qualquer intelecto, seja qual o objeto que por um modo mais alto
atingem as mentes superiores, mais plenamente penetrando sua
inteligibilidade e aproximando-se mais do seu perfeito conhecimento.
E com razão qualquer doutrina que pretenda mudar suas afirmações ou o
sentido delas, de maneira que não se conheça mais com exatidão o que
antes se admitia, deve evidentemente reconhecer que simplesmente errou,
e não simplesmente ignorou o que agora conhece, ou se situou apenas em
certo grau inferior de verdade relativa. Se a física alguma vez
admitiu que a luz se propaga pela emissão das esferas, e depois
reconheceu que consiste nas vibrações ou nas periódicas alterações de
algum fluido, sem dúvida que antes errou. Se algum dia se demonstrasse
que a alma humana esta unida ao corpo só ao modo de causa eficiente ou
motriz, e não pela íntima comunicação de sua realidade substancial,
quem quer que seja que antes pensou que a alma e verdadeira forma do
corpo incorreu em erro. Se os modernos com razão afirmassem que a
personalidade se constitui pela consciência, e não pela razão formal do
subsistente distinto, certamente essa a razão por sua natureza
antecede toda operação e até mesmo toda consciência de si, quem quer
que tenha dito que em Cristo há duas naturezas e uma pessoa, quando há
na verdade duas consciências correspondendo ao conhecimento divino e
humano, certamente emitiu um juízo falso a respeito de Cristo. E do
primeiro ao último, que mais claro peço, que mais evidente que é
impossível que a doutrina mude seja como for sem que tal mudança se
mostre como indo do erro à verdade ou da verdade ao erro? E se se
disser que se caminha da verdade relativa para uma verdade relativa
melhor, só se acrescentam palavras sem sentido, ocas, não se sabe o que
se diz.
Mas talvez contra-argumentem: Não ocorre mudança entre os mesmos
termos, mas a significação dos termos, com o progresso da ciência
torna-se outra, de maneira que a mudança se dá, não tanto nos juízos
nos quais reside formalmente a verdade, quanto nos conceitos e nas
simples apreensões dos quais depende o sentido das afirmações e a razão
de toda a doutrina. Certamente, respondemos, depende muito.
Justamente por isso, antes de se pronunciar alguma proposição, cumpre
definir exatamente o sentido de cada palavra, como era costume na
antiga escolástica, e na moderna se negligencia. Mas vejamos. Por acaso
está realmente mudado o sentido das palavras? São outros os conceitos?
Qual o corolário da mudança dos juízos? De duas uma. Ou mudou-se de
tal maneira o sentido que já se trata de uma coisa completamente
diferente daquela antes significada, e então um novo juízo, por que não
é referente à mesma coisa, não deverá absolutamente ser comparado com o
anterior, ou será considerado como seu modificador e reformador; de
modo que, se tal mudança algum dia ocorrer, será necessário confrontar
as palavras e observar que só se trata de nova terminologia, ou novo
vocabulário. Ou mudou-se de tal maneira o sentido que a mesma palavra
sempre se referirá à mesma realidade, e todavia será determinada com
alguma nota contrária àquela que se entendia antes, e então é evidente
que se alterou, não já entre os mesmos termos sob as mesmas palavras,
como se sempre se dissesse que a alma é a forma do corpo, mas sim
compreendendo por forma a causa meramente extrínseca, mas não a causa
intrínseca e constitutiva. Então é também evidente que o que antes se
dizia era falso e agora se diz a verdade, ou antes a verdade e agora o
falso; mas de qualquer modo, seja antes seja agora, não há lugar para
verdade relativa.
Por derradeiro, advirta-se quanto dista entre aquela que dizem ser a verdade relativa e aquela que todos admitimos, a perfeição relativa do conhecimento da verdade.
Mas com razão, como há infinitos intelectos possíveis, uns mais
perfeitos que os outros, até ao sumo intelecto que é Deus, assim
também há infinitos graus de perfeição no conhecimento da verdade. Há
conhecimento compreensivo , e não compreensivo; há conhecimento
intuitivo e abstrativo; há conhecimento próprio e quididativo; há
conhecimento impróprio e analógico. Há espécies inteligíveis que em
diversos modos representam as realidades; há luz intelectual mais ou
menos potente na penetração o conteúdo das realidades e julgar segundo
elas mesmas. Há claridade dos princípios mais ou menos intensa; há
consideração mais ou menos atenta das notas do objeto, dos fatos que se
oferecem à experiência, dos efeitos em ordem às causas. Há juízos
certos, prováveis; há argumentos apodícticos; há simples conjecturas
etc. pode-se, pois, dizer que perfeito é em relação ao homem aquele
conhecimento da verdade, que seria, em relação ao anjo,
imperfeitíssimo, exatamente no mesmo sentido em que com razão se diria
grande em relação a um menino a ciência de que se envergonharia um douto
filósofo. Mas, digo, daí não se deduza que toda verdade que disser o
menino não seja também verdade para o filósofo. Não se conclua que a
mesma verdade a ser dita seja relativa a vários intelectos, ou várias
as condições dos mesmos. Na realidade, a adequação em que consiste a
razão da verdade não admite graus, visto que constituída por aquilo que
como forma expressa pelo predicado convém realmente ao sujeito real
como afirma o intelecto. E tal adequação existe ou não existe. Donde o
juízo ou é absolutamente verdadeiro ou é absolutamente falso. Se é
composto, decomponha-se em partes, e cada parte será em si ou
verdadeira ou falsa absolutamente. E na parte verdadeira deverá convir
todo intelecto, até o mais sublime, ainda que ele pareça mais sublime,
do mesmo modo a mente inferior ainda que se afaste maximamente da
perfeita e adequada penetração do objeto segundo toda sua
inteligibilidade. Conclua-se, por conseguinte, que a verdade relativa ou
não tem nenhum sentido, ou reduz a noção de verdade ao conceito de
Protágoras, segundo o qual verdade é aquilo que aparece, de maneira que
podem ser ao mesmo tempo verdadeiras as coisas contraditórias, quando a
respeito delas julgam de diversos modos pessoas diversas.
Pois bem, se o filósofo não pode admitir tal concepção de verdade,
ou melhor tal ignorância universal ou tal demência, muito menos o
teólogo ou o fiel, porque já não será destruída a razão natural, mas
também a religião, a fé, a revelação de Deus, conforme será explicado
na proposição seguinte.
§ 2
Porque os dogmas da nossa religião são real e propriamente do céu e,
portanto, repugnariam com especial razão ao conceito de verdade
relativa, ainda que não houvesse por outra parte aquelas questões
notoriamente contraditórias. E também porque a mesma pretensão absurda
de aplicar à sagrada tradição a teoria da evolução destrói não apenas o
motivo formal da fé, mas também seu objeto material e o método de suma
certeza que a fé deve ter no crente.
Com dificuldade compreende-se como, tomados por tal alucinação, os
nossos neocríticos se transfiguram a sério em reformadores da teologia e
promotores da mais alta inteligência do dogma católico, quando, entre
eles, cresce tanto a confusão de idéias, que não se sabe mais dizer se a
doutrina da fé vem de Deus ou dos homens. Eis que, realmente, para
convencer que na nossa fé não há mais que verdade relativa, já não
duvidam afirmar que os conceitos que a Igreja propõe como dogmas
revelados não são verdades reveladas do céu, porque aqueles dogmas,
ainda que se queira divinos quanto à origem e substancia, entretanto
são humanos quanto à estrutura e composição.[76]
Além disso, o que por origem e substância em oposição à estrutura e
composição se deva entender, não explicam. Mas não é necessário que
expliquem, sobretudo porque onde falam claramente do elemento divino
que somente quanto ao nome conservam em nossos dogmas, nitidamente
aparece ser também esse elemento humano, como enfim todas as coisas na
ordem humana, a origem, a substância, a estrutura e a composição. Isto
posto, não há interesse em saber as diferenças de cada vocábulo. Por
enquanto, omitamos essa questão. Tomemos a distinção entre o elemento
divino e o humano dos dogmas no melhor sentido que absolutamente ele
possa ter, e vejamos se de uma distinção desse modo (cuja legitimidade
por certa razão ninguém negará) resultará efetivamente que os conceitos
que a Igreja propõe como dogmas revelados não sejam imutáveis e
verdades provenientes do céu, mas apenas conceitos mutáveis,
reformáveis, relativos e sempre depuráveis por uma progressiva
expurgação do resíduo e da borra que antes continham.
Certamente, os dogmas conforme nos são propostos encerram primeiro
palavras; são em segundo lugar conceitos recebidos do alto, resultando
de coisas simples conceitos simples ou incomplexos, ou complexos;
encerram também um nexo pelo qual se compõem os conceitos em juízo. Que
querem nossos evolucionistas quando dizem que as verdades dogmáticas
não são descidas do céu?
Por que não há palavras descidas do céu? Certamente, concedemos
isto, pois nunca imaginamos que nos chegasse do alto uma nova língua
com uma revelação de Deus. Por que não há conceitos descidos do céu?
Isto também concedemos sem dúvida, se o discurso se referir aos
primeiros conceitos e elementos, porque as noções dessa natureza, se
não as tivéssemos, deveriam chegar a nós, justamente para que se nos
tornasse inteligível o discurso da revelação, ou por infusão milagrosa
ou por meio daquilo que apresentasse aos nossos sentidos e à nossa
intuição os novos objetos. Mas para nada disso serve a revelação. Não
nos acrescenta novas imagens inteligíveis, não nos oferece visões, não
nos eleva àquele novo modo de compreensão pelo qual só no estado final
seremos agraciados. Pressupunha, pois, os nossos conceitos, ao menos os
primeiros e elementares. Pois a mesma razão não compreende
inteiramente os conceitos complexos, porque nada impede que a revelação
traga certos novos conceitos, que a nossa razão não teria outros,
como, por exemplo, consubstancial, Mãe de Deus, transubstanciação, etc,
nos os elementos de complexidade já nos eram em geral familiares, mas a
mesma complexidade não. Mas isto não vem ao caso. Basta, com efeito,
observar por ora que os conceitos recebidos do alto se referem a
doutrinas, como as letras do alfabeto aos vocábulos, ou os vocábulos
aos discursos; e porque os mesmos conceitos entram em diversas
doutrinas de origem diversa, do mesmo modo que as letras entram em
diversos vocábulos de significação diversa. “As mesmas letras, diz Santo
Agostinho, em tantos milhões de palavras e discursos se repetem, não
se aumentam; há infinitas palavras, mão as letras são finitas; ninguém
pode numerar as palavras, qualquer pode contar as letras, portanto há
multidão de palavras. Quando uma letra é colocada em vários lugares, em
cada lugar não tem o mesmo valor. Que coisas tão diferentes como Deus e
o diabo? Entretanto, no começo está a letra D, quando dizemos Deus e
quando dizemos diabo. Portanto, a letra vale conforme o lugar. No
entanto, erra, e é máximo absurdo, e revela um coração pueril quem, por
exemplo, quando ler a letra D no nome de Deus temer colocá-la no nome
do diabo, para não fazer injúria a Deus”[77]
Mas por acaso, tome-se o cuidado, transfere-se também a comparação
do coração pueril para a nossa questão para que se veja até a evidência
que pode haver palavras tiradas da terra, bem como conceitos
elementares da terra, estrutura e modo de enunciações derivados da
terra, embora sejam verdades do céu e dogmas que a partir desses
conceitos se formam, que estão significados por essas palavras, que
estão expressas por essa estrutura do discurso.
Realmente alguém me dirá: do fato de haver apenas vinte e quatro
letras do alfabeto que estão ao alcance de todos, por que com essas
letras posso escrever o que quiser, o senhor por acaso deduzirá que
alguma verdade que só eu conhecia e agora lhe manifesto por escrito, na
medida em que lhe é manifestada clara e formalmente, não procede ela
de mim? Ou do fato de que a língua que o senhor emprega, não a inventou
mas aprendeu-a completamente de outros, do fato de seu vocabulário,
idiotismos, estrutura, regras, nada teve origem no senhor: deste fato,
digo, da língua que o senhor emprega, deverei por acaso concluir que os
sentidos pelo sr. expressos na língua não são seus; que as sentenças
enunciadas, não são suas sentenças; que as afirmações e os juízos
proferidos não são afirmações e juízos procedentes do sr. e de sua
autoria ou revestidos de sua autoridade? Reflita-se sobre a matéria.
Pois dos conceitos humanos Deus não era autor, precisamente enquanto
revelador. Entretanto, os mesmos conceitos comparavam-se a Ele como o
alfabeto ao escritor, como o vocabulário ao orador, como a língua já
fixa e formada previamente ao autor que dela quer utilizar-se para de
algum modo, seja perorando, seja escrevendo, seja ditando, manifestar
aos outros os pensamentos ocultos da sua mente. Que importa, então, que
as letras do alfabeto e as palavras do vocabulário tomadas por Deus
revelador não desceram do céu? Com efeito, as sentenças e os dogmas
jamais residem nos elementos alfabéticos ou fonéticos ou até mesmo nos
elementos ideais, mas apenas na composição pela quais esses elementos
se associam para originar sentenças e ser formulados em enunciados. Mas
no nosso caso uma composição desse modo, sem dúvida emana do céu,
porque é Deus quem revela e dita.[78]
Portanto, do fato de nossos dogmas observarem uma estrutura e um
modo dos conceitos humanos, não é licito deduzir o que pretendem os
novos mestres. Mas a única conclusão que se pode tirar é que os
mistérios divinos têm outro modo na palavra da revelação e outro modo
em si mesmos, como observou Santo Tomás na II-II, q. 1, a. 2: as coisas
são conhecidas pelo cognoscente, diz, segundo o modo do cognoscente.
Mas há um modo próprio do intelecto humano para conhecer a verdade
compondo e dividindo. E por isso, aquelas coisas que são em si simples,
o intelecto humano as conhece segundo certa complexidade, como ao
contrario o intelecto divino conhece sem complexidade aquelas coisas
que são em si complexas. Assim, pois, o objeto da fé pode ser
considerado de duplo modo. De um modo, da parte da própria realidade em
que se crê, e sob esse aspecto o objeto da fé é algo incomplexo, isto é
a mesma coisa acerca da qual se tem fé. De outro modo, da parte do
crente, e sob esse aspecto, o objeto da fé é algo complexo pelo modo de
enunciação”. A isto também se refere Santo Agostinho explanando o
prólogo do Evangelho de São João, quando, a respeito do Verbo que no
princípio estava em Deus, diz: “ Quem poderá dizer que é isto? Ouso
dizer, meus irmãos, talvez nem sequer o próprio São João disse o que é,
mas ele também só disse o que pôde, pois o homem quando fala de Deus,
ainda que inspirado por Deus, é homem. Porque inspirado, disse algo; se
não estivesse inspirado, não diria nada; mas como homem inspirado, não
disse toda realidade; mas como homem inspirado não disse toda a
realidade, mas o que pôde como homem.”[79]
E a razão última é que na revelação sobrenatural ou na expressão, o
alfabeto da redação está constituído por conceitos naturais próprios
do homem, e tal alfabeto não compreende o modo próprio de Deus. Não
porque diga que Deus tem outro modo diverso daquele que tem em si
realmente; porque seria falso, como se disse acima. Mas porque ninguém
diz nem pode dizer positivamente qual seja aquele modo que transcende
toda limitação e toda mescla de imperfeição, que, por assim dizer, por
múltiplas composições de suas letras exprime e enuncia a verdade de
Deus. E nisto não há nenhuma diferença entre os dogmas da teodicéia
natural e os dogmas da revelação, porque ambas na mesma língua
inteligente estão expressos e se exprimem. Mas enquanto nos primeiros a
união dos elementos do juízo depende da razão que se move pela
evidência, nos segundos depende de Deus que nos ensina a conveniência
do predicado com o sujeito, mesmo onde aquela conveniência foge a toda
consideração racional, supera toda sua reflexão. Mas, ao contrário, se
nos juízos formados retamente pela nossa mesma razão, está sempre a
absoluta verdade, quanto mais naqueles que são formados diretamente por
Deus, a não ser que se queira fazer de Deus autor da falsidade, ou
negar-lhe o poder de exprimir a verdade dos seus mistérios em nossa
língua ainda que imperfeita e defeituosa.
Ademais, é muito penoso demonstrar como naquele plano da verdade
relativa aos dogmas propostos pela Igreja o que pertence à fé cristã, o
que pertence á teologia, à qual se subtraem tanto o motivo formal
quanto o objeto material bem como o modo próprio da solidez e certeza.
Primeiro, subtrai-se o motivo formal, que é a autoridade de Deus
revelador. Com efeito, que lugar haverá para a autoridade de Deus
naquelas concepções que absolutamente não são verdadeiras, mas apenas
se aproximam, tanto quanto possível, da sua realidade, que consistem em
modos de falar, que flutuam, variam e mudam ao sabor das doutrinas
humanas? Teremos, pois, opiniões humanas; mas de modo nenhum teremos a
fé que se fundamenta na primeira verdade ou no testemunho de Deus.
Subtrai-se igualmente o objeto material. Em que então poderemos
crer? Que seja ao menos algum mistério confusamente análogo ao que
prega e ensina a Igreja? Mas não poderemos crer nessas doutrinas,
como, por exemplo, o Pai e o Filho e o Espírito Santo são um só Deus e
entre si consubstanciais, que Jesus Cristo é uma pessoa que tem uma
natureza humana e divina, que o pão e o vinho se convertem em seu corpo
e sangue, que sob as espécies do sacramento se contêm realmente e
substancialmente seu corpo e sangue. Efetivamente, falamos assim agora,
porque não podemos falar melhor agora. Mas virá um tempo em que
segundo uma melhor evolução dos estudos, falar-se-á de modo diferente e
mais veridicamente. Portanto, por causa da disciplina, fixamo-nos nas
fórmulas propostas autenticamente: nas fórmulas, digo, não naquelas
coisas que são significadas pelas fórmulas.
Subtraí-se com mais razão o próprio modo de crer que na fé divina é
necessário, na verdade, o modo de adesão fora da dúvida e firme acima
de todas as coisas. Pois realmente deveria dar minha vida antes de pôr
em dúvida a consubstancialidade da Trindade, a dualidade das naturezas
em uma pessoa de Cristo, a transubstanciação na Eucaristia etc. Mas, ó
sangue inutilmente derramado, ó vida não estimada para o seu verdadeiro
valor, se só se trata de humanas fórmulas que hoje estão em voga e
amanhã caducarão! Mas se me é lícito pensar que a consubstancialidade é
um vocábulo próprio de uma escola, ao qual outro vocábulo e outro
senso poderá alguma vez substituir-se! Se posso pensar que talvez Jesus
Cristo não seja Deus senão por uma transformação de sua alma, e não
sei qual consciência adquirida por não sei que união com o Pai! Ou que
sua presença na eucaristia não será talvez mal explicada em virtude da
perene presença do seu espírito no meio daqueles que continuam e
promovem sua obra no mundo! Pois bem, com qual mente, com que espírito
ou credulidade pronunciaremos no futuro a nossa profissão de fé
dizendo: “Eu com firme fé creio e professo todas e cada uma das
verdades contidas no símbolo da fé adotado pela Santa Igreja Romana,
sem dúvida, etc? E mais ainda: “Esta verdadeira fé católica, fora da
qual ninguém pode ser salvo, a qual livremente no presente professo e
realmente afirmo, prometo e juro livremente guardá-la e confessá-la, com
o auxílio de Deus, constantemente, íntegra e imaculada até o fim da
minha vida. Assim ajude-me Deus, etc.?
Está evidente, pois, a total oposição que a teoria moderna da
verdade relativa tem com os primeiros e fundamentais princípios da
religião católica. Isto basta. Agora devem ser examinadas mais
acuradamente as razões extraídas das fontes históricas, pelas quais
essa teoria moderna quer convencer.
§ 3
Porque para defender em vão seu erro apelam para noções ou doutrinas
que dizem importadas das escolas profanas e aplicadas à doutrina
sagrada, ou apelam para adaptações da teologia – assim imaginam – à
filosofia, sobretudo à aristotélica.
1. Tendo em vista o que foi dito no parágrafo precedente, fica
patente como as noções que são realmente comuns à doutrina da fé e às
escolas filosóficas de forma alguma se coadunam com aquilo que agrada
aos modernistas, quer dizer, nossos dogmas não procedem do céu; e por
isso também, não são de outra condição, o que concerne à absoluta
verdade e o que concerne a quaisquer outras doutrinas da origem humana e
da autoridade. Ficou claro como o dogma sobrenatural se utiliza dos
mesmos elementos que a ciência natural para a formação dos seus
próprios conceitos e seus próprios juízos. A verdade é nova na nova
composição das idéias, ainda que as idéias componentes sejam antigas;
nova também é a idéia complexa de muitas notas, ainda que as mesmas
notas sejam vulgares. Com efeito, nada mais nos seria inteligível em
matéria de religião, se nela não se pudessem utilizar os conceitos mais
fundamentais de ente, substancia, corpo, alma, vida, espírito, causa e
efeito, meio e fim, potência e ato e outros da mesma natureza.
Pergunto: que adiantaria nomear Deus, se dele não formássemos um
conceito, ainda que à força de abstração e analogia, não intuitivo e
próprio, tal como convém só a Deus, representando-o por notas tiradas
de objetos comuns, como o ente primeiro, perfeito sem limite, causa do
ser de todas criaturas mas não de si próprio? Que saberíamos da
Trindade se não tivéssemos noção de pessoa como individuo subsistente
na natureza intelectual? Que saberíamos da encarnação se não
compreendêssemos o sentido das palavras: pessoa divina, natureza humana,
a recepção de um por outro, etc? Revelou-se, pois, a composição dos
conceitos, não se deram, nem se deveriam dar de novo, os primeiros
conceitos.
Erram, pois, erram completamente, em questão de direito, deduzindo
do referido fato da generalidade dos conceitos conseqüências
ilegítimas. Mas erram igualmente em questão de fato na medida em que
estendem o fato para além dos limites, na medida em que acrescentam à
filosofia certas noções que na verdade pertencem exclusivamente à
teologia, considerando, por exemplo, como conhecidos pelos antigos
pagãos e presentes nas escolas profanas os conceitos de
consubstancialidade e transubstanciação.
Certamente o conceito de substância não era ignorado pelos antigos,
bem como o conceito de identidade. Falaram os antigos sobre a
identidade substancial, tanto da numérica quanto da específica. Na
verdade, quanto à numérica, observavam que o indivíduo idêntico a si
mesmo não consigo próprio relação real, mas apenas de razão, na qual só
podem ser constituídos os termos da comparação. Ao contrario quanto à
específica, consideravam-na como conveniência na mesma razão
substancial, todos os indivíduos cuja essência corresponde à mesma
definição, e a distinção provém da divisão da matéria. Mas, por outro
lado, o conceito complexo expresso pela palavra consubstancial
nunca ocorrera à mente humana, ou ao menos nunca fora claramente
formulado, antes que a fé na Trindade conduzisse os homens a tratar das
pessoas entre si distintas pelas relações de origem e não por alguma
realidade absoluta. Talvez pudessem os platônicos cogitar algo
semelhante quanto àquelas formas universais que segundo eles
assinalavam uniformemente todos os indivíduos da mesma espécie, mas o
absurdo conceito deles jamais pôde tornar-se preciso, e permaneceu
confuso sem nenhuma fórmula determinada. Talvez igualmente os
averroístas pudessem dizer que os homens são consubstanciais naquele
intelecto que eles consideravam único e comum, de maneira que pela
continuação dos vários fantasmas com ele cada indivíduo fosse
inteligente. Mas aqui também permanece sempre absurda a opinião como uma
sombra vaga sem termos delineados e expressão precisa; além do que,
pela mencionada unidade do intelecto, resulta que seriam comuns as
operações intelectuais em distintos sujeitos, não havendo neles
identidade numérica de substância. Donde o verdadeiro conceito de
consubstancialidade não foi jamais excogitado nas escolas dos filósofos
e tampouco nelas aparece algo correspondente ao vocábulo homousion.
Mas a palavra que já tinha começado a oferecer-se entre alguns padres
do terceiro século para designar as pessoas divinas foi definitivamente
consagrada no concilio de Nicéia para refutação de todas as fraudes
dos arianos. Pois quando se dizia o Filho ser uma mesma realidade com o
Padre, inferiam os arianos que portanto não era distinto do Padre. Se
se dizia que era outro distinto do Padre, concluíam: logo, não tem com
ele a mesma essência. Se não tem princípio, logo não é filho. Se tem
princípio, não é Deus. Se segundo, não é igual. Se igual, logo não
procede. Se não produzido, de que modo gerado? Se produzido, como não
será criatura? Em suma, por todo lado procuravam artifícios, e só
aquela palavra expressiva da identidade absoluta em alguma distinção
real, (pois não se pode dizer consubstancial aquilo que não é
verdadeiramente outro, e não tem ao mesmo tempo a mesma substância em
número), foi a palavra vitoriosa, à qual não puderam opor outra senão
uma raivosa negociação[80].
De modo semelhante, nunca lhes tinha ocorrido que a real conversão
de uma substância pudesse realizar completamente em outra substância
singularmente designada e preexistente, a qual por força da conversão
nada se agrega, como ensina a fé no mistério da Eucaristia. Com efeito,
estão distantes todas as transformações naturais de que trata a
filosofia, nas quais sempre resta algo do termo a quo da conversão, e sempre o termo ad quem
resulta novo, ou certamente aumenta em si mesmo, mas não se pressupõe a
partir da integra conversão. E entretanto, aqui também se extraem as
primeira e elementares notas da experiência comum, como, por exemplo, a
noção de substância, a noção de substância do todo ou de substância
segundo todos seus elementos constitutivos; por fim, a noção de
conversão concernente à razão generalíssima da positiva mutação pela
qual uma coisa termina em outra ainda se conserva. Graças a isso,
podemos compreender o sentido daquelas palavras: toda a substância do
pão se converte no corpo, e toda a substância do vinho se converte em
sangue de Jesus Cristo, permanecendo apenas as espécies. Mas nenhum dos
mortais tinha juntado ao mesmo tempo noções desse modo, e não só não
tinha juntado em tese, mas nem sequer em hipótese, ou cogitando só a
possibilidade de tão singular ou de tão admirável conversão. Quem,
pois, imaginou presente nas escolas o conceito de transubstanciação não
aprendeu bem no catecismo o que implica a transubstanciação e quão
longe está de toda transformação, mesmo da transformação substancial.[81]
Que se deve dizer agora sobre a idéia de palavra, que os
críticos, seguindo os caminhos do clérigo João e Moshemii, pretendem ser
derivada na doutrina revelada, da escola neoplatônica de Alexandria?
Que dizer senão exatamente aquilo que já foi dito nos exemplos
precedentes? Certamente, …(grego) ou Verbo, com sua própria
significação, pertence à ordem do conhecimento humano. Pois torno a
indagar: se absolutamente não tivéssemos essa noção, se não houvesse em
nosso vocabulário uma palavra correspondente á noção, de que modo
teria podido falar-nos o evangelista do Verbo que no princípio estava
com o Pai? Teria sido necessário para ele encontrar uma palavra nova,
dando sua definição e para tanto teria devido utilizar-se de nomes para
nós inusitados. Mas tal não sucedeu, porque a idéia de palavra já
estava formada, e à glória da escola platônica pertence, que em tão
nobre especulação a tenha sido versada. Realmente, Aristóteles tinha
atentado para o problema; muito mais que isso, com maior precisão, como
de costume, tinha declarado (…grego) ou o conceito mental que é a
coisa inteligida in esse no intelecto, e a mesma palavra
intelecto. Mas não tinha considerado a palavra como exemplar da obra
que o artífice põe fora de si, nem sequer tinha dito algo sobre a
palavra que é no sumo intelecto a causa exemplar do universo. Mas ao
contrário, os platônicos foram conduzidos a tala consideração por sua
absurda doutrina acerca dos universais, ou idéias subsistentes que em
qualquer espécie dos seres corpóreos seriam a razão de todos os
indivíduos e o princípio do ser. Assim, chegaram a considerar alguma
idéia primeira, emanada do sumo e supremo Deus, ao qual responderia a
estrutura e ordem das coisas de todo universo[82].
Em tal concepção havia algo de verdade. Entretanto, quanta coisa falsa
estava misturada, quanta coisa diametralmente oposta aos princípios da
doutrina cristã! Petavius oferece, sobre esse assunto, uma exaustiva
demonstração no livro I de Trin. c. I, e Dom Maranus no prefácio à
obra de São Justino, 2/ª, c. I.
É verdade que Santo Agostinho e outros escritores eclesiásticos
atribuíam aos platônicos idéias quase que cristãs sobre o Verbo. Mas
cumpre notar em primeiro lugar que aqueles santos padres,
comprazendo-se naquilo que de espiritual e divino tinha a escola de
Platão em comparação às outras, foram intérpretes mais benévolos do que
propriamente viram o que implicava a simples realidade da coisa; nisso
tiveram posteriormente imitadores escolásticos no que concerne a
Aristóteles. Note-se em segundo lugar que a verdade revelada ilumina
parcialmente também aqueles que a repelem, e que o cristianismo obrigou
imediatamente os filósofos alexandrinos do segundo e do terceiro
séculos a expor suas próprias sentenças com algumas melhores aparências
de verdade. Note-se, sobretudo, em terceiro lugar, que o chefe e
preceptor da escola neoplatonica tinha sido Filo, que, como judeu,
conhecia excelentemente as Escrituras do Antigo Testamento e tinha
redigido comentários a várias dessas Escrituras. Mas nas Escrituras do
Antigo Testamento, como, por exemplo, Provérbios VIII, 22, (omitindo
agora muitos outros lugares), a palavra é gerada pela sabedoria ab aeterno,
a qual Deus possuía desde o início dos seus caminhos, antes de fazer o
que quer que fosse ao princípio. A qual já havia sido concebida, já
tinha sido gerada, quando não ainda não havia abismos nem jorravam as
fontes; a qual assistia ao criador quando preparava os céus, quando
fortificava por lei os abismos, quando firmava os céus, quando nivelava
as fontes das águas, quando impunha limites ao mar e leis às águas
para que não transpusessem seus termos, quando consolidava os
fundamentos da terra; a sabedoria estava com ele compondo todas as
coisas e deleitava-se todos os dias brincando sobre o globo terrestre[83],
a essa sabedoria, na verdade, era aplicada a doutrina platônica do
Logos ou Verbo ou da razão ideal pela qual todas as coisas são criadas,
formadas ou dispostas[84].
E é isto o que fez Filo, o qual em várias passagens fala do Verbo
sempiterno de Deus. O que ele diz deriva evidentemente da doutrina do
Antigo Testamento, seja do Gênesis, seja do pré-citado lugar dos
Provérbios e de outros paralelos: “Qualquer um que queira estar livre
dessa vergonha dúvida que acompanha o vulgo dirá livre e publicamente
que nada daquilo que está imerso na matéria tem suficiente força para
sustentar a massa do globo. Mas ao contrário aquele Verbo sempiterno de
Deus é incomparavelmente o mais forte e firmíssimo sustentáculo do
universo. Este é o ser a cujo arbítrio o curso da natureza obedece
sempre de um extremo a outro. Com efeito, ele une e encadeia todas as
parte entre si, porque o Pai pelo qual é gerado quis que ele fosse o
vínculo fortíssimo de todo o universo. Portanto, não é de admirar se
nem o peso da terra nem o oceano com tanta força das águas em seu
interior nunca se dissolvam, nem o fogo se extinga por causa da névoa,
nem o ar conflite com o fogo, porquanto aquele Divino Verbo que se
constitui como que certo meio vocal entre elementos mudos a fim de que
exista uma harmonia suave e justa de todo o universo como na música
formada e dividida por suas notas e receba as ameaças dos contrários a
serem moderadas e suavizadas em harmoniosa conjunção.[85]
Isto é o que diz Filo em uma das suas passagens mais célebres
recolhidas por Eusébio. Mas embora fosse auxiliado pela luz do Antigo
Testamento, enquanto se esforçava em adaptar às idéias platônicas a
doutrina da Escritura, não hesitava em considerar o Verbo como um
segundo Deus subordinado ao primeiro e supremo Deus. “Por que –
pergunta ele – diz que o homem foi feito por ele à imagem de Deus, mas
não a sua, se falasse igualmente de outro Deus? Mas isto na realidade
está preclaramente celebrado pelo divino oráculo, (Gen. 5, 1). Em suma,
não havia nada de mal que pudesse ser consignado pela imagem daquele
primeiro Pai universal. Entretanto, admitia-se o segundo Deus em
referência ao Verbo.[86]
E esta concepção pagã, maculada de muitos outros absurdos,
encontra-se em autores posteriores da mesma escola, como, por exemplo,
Plotino, Porfírio, Iamblico e Proclo[87].
De modo que resulta liquido e claro que aquela misteriosa noção do
Verbo que a fé propõe e transmite o Evangelho de João (refiro-me ao
Verbo que é um só Deus com ele, pelo qual é gerado segundo operação
intelectiva e se distingue dele apenas por uma relação de origem), está
muito longe de tudo quanto puderam dizer os filósofos, exceção feita
daquelas coisas que sobre esse assunto parece terem tido um juízo mais
profundo que outros autores.
Mas nem por isso negamos que a reta filosofia não deva conhecer o
Verbo interior em nossa mente. Mas a simplicidade de Deus e a absoluta
identidade do Verbo com o seu inteligir pareciam excluir toda processão
do mesmo do interior de Deus. Pelo contrário, enquanto não se cogitava
de outra distinção senão a distinção entre absoluto e absoluto, a
exclusão era evidentemente legitima e verdadeira, e, por isso, os
platônicos considerando o Verbo divino realmente distinto do seu
princípio, consideravam um grande absurdo afirmar uma multidão de deuses
no próprio Deus. Todavia, dispôs a divina Providencia que aqueles
mesmos filósofos preparassem e tornassem usual aquela palavra com a
qual se exprime de maneira inteligível para nós, no quarto Evangelho,
aquela sublime verdade já contida implicitamente nos livros
sapienciais do Antigo Testamento e também nos três sinóticos[88],
a qual nos foi finalmente revelada por Deus através de João. Ademais,
a erudição que diz que o Verbo de São João e da teologia católica é
derivado do (grego….) neoplatônico não pode ser a artificial erudição
de uma ciência muito superficial.
Mas dirá alguém: Por acaso a doutrina de fé católica, quando
comparada com as doutrinas dos filósofos, não aparenta ter em comum,
não só noções absolutas ou ao menos certamente quanto aos primeiros
rudimentos, mas também idênticos dogmas desde o princípio? O concílio
Vaticano dará a resposta dizendo: “A santa madre Igreja sustenta e
ensina que Deus, princípio e fim de todas as coisas, pode certamente
ser conhecido à luz natural da razão a partir das coisas
criadas….Entretanto, aprouve à sua sabedoria e bondade revelar ao gênero
humano, por uma via sobrenatural, decretos de sua vontade e outros
mistérios eternos de si mesmo…A essa divina revelação deve-se, com
efeito, atribuir que aquelas coisas que em si mesmas não são
inacessíveis à razão humana possam ser conhecidas por todos facilmente,
na atual condição do gênero humano, com firme certeza e sem nenhuma
mescla de erro. Contudo, nem por isso se deve dizer que a revelação
seja absolutamente necessária, mas sim que Deus em sua infinita bondade
ordenou o homem a um fim sobrenatural para participar realmente dos
bens divinos que excedem completamente do espírito humano; com efeito, o
que o olho não viu nem o ouvido ouviu, nem o coração do homem
imaginou, Deus o tem preparado para aqueles que o amam”. E
efetivamente, sempre foi sentença ratificada e certa de todos os padres
e teólogos que na doutrina da fé se contém toda a ordem das verdades,
das quais umas são sobrenaturais e só são conhecidas na medida em que
são reveladas, mas outras, ainda que conhecíveis pela razão humana,
foram por Deus reveladas e a nós de fato transmitidas, pelas razões
indicadas pelo concílio do Vaticano como se viu acima e conforme
explana Santo Tomás nos primeiros capítulos da Suma contra os gentios.
Também sempre tivemos a persuasão de que em todo tempo houve alguns de
juízo tão reto e bom senso que, seguindo a natureza, conheceram quanto
possível certos princípios. De fato, uma nova entidade exige causa
proporcionada; porquanto o sujeito em potência não chega a ato senão em
virtude de uma ato perfeito; porque a natureza corpórea deve constar
de duplo princípio, material e formal; pois a vida provém de um
princípio mais perfeito que as forças mecânicas; pois a alma une-se
substancialmente ao corpo vivo; porque a operação intelectiva mostra o
espírito independente no ser em relação à matéria; porque a existência e
a ordem do mundo demonstram que Deus existe, etc. Essas e outras
verdades são manifestas a alguma escola não iluminada pela luz da
revelação. De onde Justino dizia que o Verbo em séculos pretéritos
tinha concedido a muitos sábios gentios um raio de sua luz.[89] E Clemente de Alexandria via na filosofia grega certa preparação para a plena verdade do cristianismo.[90] E Santo Agostinho, como se viu acima, com aplauso acolhe tudo quanto há de verdadeiramente sublime nas doutrinas platônicas.[91]
E quando mais tarde, por obra de Boécio e Damasceno, começa a
ordenar-se com maior rigor a disciplina teológica, chega naturalmente o
uso da lógica que aliás já era previsto, bem como o método adequado
ao conhecimento humano que tinha ensinado Aristóteles. Tudo isto se deu
assim, porque a nossa débil razão é ainda capaz de conhecer algo
certo; e se de fato causa admiração afirmar e defender estas verdades
hoje é por causa de tanto inflada ciência. Por isso, seguindo o antigo
senso comum, raciocinávamos: Alguns conhecimentos naturais, frutos da
verdadeira experiência e da sã lógica, encontram-se também na infalível
doutrina católica; portanto, esses conhecimentos naturais eram
verdadeiros, e a reta filosofia os tinha adquirido, na medida em que a
razão natural procede de Deus. Mas em nossos dias mudou-se
completamente o discurso e se diz: A doutrina cristã tem alguns dogmas
que se acham também nas antigas escolas dos filósofos; por conseguinte
esta tal doutrina delas deriva, e como de outra parte as doutrinas
filosóficas são sempre incertas, relativas e mutáveis, é necessário que
a doutrina cristã participe também de tal incerteza, relatividade e
mutabilidade. Mas, pergunto eu, onde está a retidão de tal discurso?
Onde o sofisma de tal raciocínio?
2. Quanto à calúnia da adaptação da teologia à filosofia aristotélica, tratei em outro lugar[92]
Certamente, pelo fato de que as verdade de fé estão expressas, como
visto anteriormente, na língua dos nossos conceitos naturais, tudo
quanto auxilia uma análise acurada dessas verdades auxiliará igualmente
a compreensão e exposição da verdade revelada, do mesmo modo o
vocabulário ou léxico em que as razões dos nomes estão propostas de
modo claro e exato auxiliará a explicação e inteligência de qualquer
autor. Pois bem, se à filosofia compete classificar, definir e resolver
nos primeiros elementos as nossas noções gerais e vulgares, o seu uso
em teologia será considerado na mesma medida do uso do léxico em
matéria exegética. E como o exegeta não acomoda sua exposição ao
léxico, mas apenas busca ai o sentido do seu autor para mais penetrá-lo
e declará-lo, assim também os doutores escolásticos não adaptaram a
doutrina sagrada à filosofia, apenas se utilizaram da filosofia para
exporem com distinção e ordem, com método cientifico, os dogmas
revelados a nós por Deus.
Mas deve-se notar com atenção que nunca alguma filosofia oferecida
como subsidio da teologia tradicional, só por tal título, porque no
mundo prevalecia, ou pela autoridade de alguma escola particular se
recomendava, mas só em razão deste único título: porque foi julgada
consoante à regra da revelação e da reta razão. Por isso, Santo Tomás,
na II II, q. 167, a. 1, ad 3, diz : “O estudo da filosofia em si é
louvável por causa da verdade que os filósofos receberam por meio da
revelação de Deus., como está dito em Rom. 1, 19. Mas porque abusam de
certa filosofia para impugnar a fé, por isso diz o apóstolo em Coloss.
II, 8: “Vede que ninguém vos engane por meio da filosofia inútil e
enganadora, segundo a tradição dos homens, segundo os elementos do
mundo, e não segundo Cristo.” Portanto, nem todas as filosofias são
consideradas no mesmo sentido; mas algumas são tidas como os ídolos do
Egito, que o povo de Israel teve de detestar e repelir; outras, porém,
como ornamentos e vasos de ouro e prata que aquele mesmo povo do Egito
em sua fuga tomou para si, por preceito divino, em vista de um
finalidade mais nobre, como diz elegantemente Santo Agostinho em 1, 2
de doctr. Christi, c. 40.
De todos os modos, pois, resultam vãos os argumentos aduzidos por
aquela absurda ideologia da verdade relativa na doutrina tradicional da
Igreja. E basta o que foi dito.
Capítulo V
Da consumação da ruína por meio do dogmatismo moral
“Tinha sofrido muito de muitos médicos e gastado tudo
quanto possuía, e, longe de ter sentido melhoras, antes cada vez se
achava pior.” (Marc. V, 26)
Pode-se dizer de modo geral dogmatismo moral o sistema que faz
derivar o conhecimento da verdade religiosa da pressão do coração e da
inflexão da vontade moralmente boa. Frise-se que propugna todos os
princípios do sistema da imanência. Proclama também a ruína da verdade
absoluta, isto é, da adequação do intelecto e da coisa, que, em
assuntos religiosos, não é possível, conforme o que foi dito no capítulo
anterior. Mas pretende a reparação da ruína, instaurando o edifício
sobre o fundamento da moralidade, e restituindo aos dogmas seu
verdadeiro valor, que não é tão especulativo e objetivo, quanto prático
e diretivo da ação da vontade. Se se trata realmente de uma verdade
religiosa, subordina-se inteiramente à moral; a moral é o princípio e o
fim da religião; em lugar da religião, prevalece a moral, e se
assimila à moral, ainda que faltem outras coisas. Na moral, pois, terá
aquelas base sólida que buscava em vão na ignorada e incognoscível
verdade objetiva o abatido e prostrado dogmatismo intelectual.
Algo análogo encontramos em Emanuel Kant, de cujas obras procedem os
novos sistemas. Ele tinha destruído radicalmente toda ciência,
considerando como única razão dos primeiros princípios a natureza da
nossa mente inclinada para assim pensar, ou melhor, divagar. Tinha
destruído o conhecimento do universo, não considerando as leis da
natureza senão como projeções exteriores das nossas idéias imanentes,
disposições corpóreas reduzidas a impressões subjetivas, mas também
devem ser consideradas aquelas duas medidas universais do tempo e do
espaço como formas subjetivas, sem as quais se torna quimérica toda a
ordem material. Tinha destruído finalmente em nosso intelecto a Deus,
negando todo modo de provar sua existência, e declarando ilegítima a
extensão do principio de causalidade a todo o complexo dos fenômenos.
De maneira que, falando com lógica, não restava pedra sobre pedra do
edifício da verdade. Mas como o próprio mestre de tanta ruína ficasse
aterrorizado, tentou restabelecer com a idéia da moral tudo aquilo que
na ordem intelectual tinha reduzido a nada. E pareceu-lhe bem alcançar
seu escopo, dizendo: Percebo em minha consciência a idéia de dever, a
ser cumprido juntamente com o imperativo categórico: deve-se, pois,
admitir a obrigação moral, com a qual está intimamente ligada a noção
de liberdade. Repita-se: ao livre cumprimento do dever parece responder
a consecução da felicidade; portanto deve ser a felicidade. Mas a
felicidade na presente vida não existe; portanto, deve haver outra
vida, na qual a alma sobrevive ao corpo. Finalmente, a felicidade da
vida futura não se concebe sem Deus; portanto, deve-se admitir a
existência de Deus. E deste modo, partindo do imperativo categórico que
está na minha consciência, chego ao céu estrelado que está sobre minha
cabeça; deste modo também, pela razão prática restaura-se o edifício
da verdade, para a qual tinha inutilmente trabalhado a razão
especulativa.
E semelhante é a restauração que o dogmatismo moral intenta, após
ter introduzido o niilismo da verdade relativa na doutrina da fé
cristã. Só aceita a noção de moral para, por meio do método dedutivo,
suscitar outras verdades. Mas o que é pior, põe a moral exercida em
ato, isto é, a vontade em ato inclinada para o bem como princípio ativo
pelo qual se determina e rebaixa o intelecto na formação das idéias
religiosas. Ademais, essas idéias ou dogmas religiosos podem afirmar
alguma coisa à medida que, não mais nem menos, servem à moral,
fornecendo a regra à boa ação ou estímulo ou qualquer outro auxílio.
Esta é a restauração excogitada pela filosofia a que denominam
“filosofia da ação”. E a esta mesma preferimos chamar completa ruína.
Temos razão? Faremos o juízo a respeito nas três proposições seguintes.
§ 1
Em primeiro lugar, por que o dogmatismo moral busca em vão um meio
de restauração na vontade, à qual atribui, sem motivo, um primado na
tarefa de investigar e conhecer a verdade religiosa. E porque sem
nenhuma razão apela neste ponto à doutrina católica sobre o
assentimento da fé para obter para si uma espécie e aparência de
ortodoxia.
Com efeito, não há duas noções de verdade: uma valendo para assuntos
religiosos e outra para matérias diversas. Se alguém nega isto, é
inútil qualquer discussão, porque ou devaneia ou porque está consciente
de que chama despudoradamente verdade aquilo que não é verdade.
“Aquele que compreende ao menos que é falsidade crer que é aquilo que
não é compreende que a verdade é aquela que mostra o que é” – diz Santo
Agostinho em De vera religione, c. 36. À inteligência, portanto,
pertence evidentemente a descoberta da verdade em qualquer ordem, a ela
pertence ver, apreender, perceber as coisas que são e como são. Mas
esta faculdade não é a vontade, que não vê, que não percebe, que não
apreende, mas apetece e procura o bem, ou verdadeiro ou aparente, ou
real ou imaginário, que lhe mostra o intelecto. Por isso, depois de
destruída a verdade segundo o intelecto e por ele percebida, intentar
uma restauração da parte da vontade é uma coisa tão dissonante e tão
absurda como se tu providenciasses para um homem cego um remédio feito
por um cego. Não que se negue todo influxo da vontade na obra da
aquisição e conhecimento da verdade; sobretudo daquela verdade que está
altamente acima das nossas mentes, e tanto em si quanto em suas
conseqüências práticas contradiz as inclinações da natureza corrompida.
Mas de que modo se relaciona a vontade com o intelecto, importa
esclarecer.
Em primeiro lugar, a vontade atua como removedora e proibidora. Pois
há muitas coisas que perturbam o juízo da razão e produzem no olho do
espírito pituita e inflamações. São as paixões desenfreadas, são os
afetos perversos, os inchaços da soberba, igualmente as contendas, as
dissensões, as invejas, que à maneira de fogo em madeira encebada
produzem só fumaça, mas não podem ter labaredas claras. E não há dúvida
que a boa vontade influi sobremaneira na remoção de impedimentos desta
natureza. Em segundo lugar,a vontade age no movimento do intelecto na
busca da razões pelas quais a verdade possa aparecer, na aplicação do
olhar do espírito para a diligente consideração e discussão dessas
razões, também a impetração a Deus dos auxílios necessários em tão
grande obra. E porque, certamente, a vontade não será nisto bem
sucedida, se odiar a luz, se temer vir à luz, se preferir as trevas à
luz, por isso mesmo ao amor da verdade Santo Agostinho atribui: “Se
não se deseja a verdade com todas as forças da alma, não será possível
absolutamente encontrá-la mediante nenhum pacto. Mas se a verdade é
buscada como convém, ela não pode subtrair-se aos que a amam. Daí vem
aquilo que também vós estais acostumados a ter na boca: “Pedi e
recebereis, buscai e achareis, batei e abrir-se-vos-á. Nada está oculto
que não venha a ser revelado. Por amor pede-se, por amor busca-se, por
amor bate-se, por amor revela-se, por amor, finalmente, naquilo que for
revelado, permanecer-se-á”[93].
Finalmente, em terceiro lugar, a vontade atua ordenando o assentimento
do intelecto, quando o intelecto mesmo não está dominado pela perfeita
evidência da verdade, e não necessariamente é arrebatado pela total
transparência do objeto que não deixe nenhum lugar a uma dúvida
possível. Mas aqui é sumamente necessário que haja clareza. Pois ou a
vontade ordena um assentimento proporcionado à dignidade das razões que
antes refulgiram ao intelecto como legítimos fundamentos do
assentimento mental, ou ordena um assentimento desproporcionado, o
qual, de todo ou parcialmente, se reduz ao próprio beneplácito ou
arbítrio. Se for o primeiro, muito bem. Mas se for o segundo, que
haverá senão vã e oca ilusão de uma opinião irracional? Com efeito, em
qualquer juízo o que se exige segundo a norma da reta razão, a vontade
não pode intervir como que ocupando o lugar dos argumentos ou
aumentando-lhes o valor, mas apenas fazendo o intelecto assentir
segundo o mérito deles, onde não houver condições nas quais se siga uma
espontânea, necessária e irrefragável adesão do intelecto[94].
E não é necessário prolongar uma demonstração, porque estes princípios
são evidentes, são absolutos, não admitem nenhuma exceção, e nem
sequer em matéria de fé divina recorrem inconsideradamente a fim de
obter para seu dogmatismo certa aparência de ortodoxia.
Dizem que não temos nenhuma razão que exija crer na instituição
divina da Igreja; que a fé é um dom, que é um ato livre; que se a fé
resultasse de nossos raciocínios como conclusão de um silogismo que se
segue das premissas, ninguém, a não ser um mentecapto, poderia jamais
subtrair-se da fé[95].
Mais daí inferem que as nossas razões de crer não têm por si mais
firmeza que aquelas fundadas nas livres opiniões; a inteligência do
crente não está em melhor condição que a do opinante; à boa vontade, à
vontade auxiliada pela graça compete agregar ou suprir, por sua livre
determinação, o que falta ao valor das razões. E por isso, dizem que o
princípio geral do dogmatismo moral está perfeitamente em harmonia com
aquilo que a doutrina ortodoxa confessa acerca da fé teológica e retém
como proveitoso.
Mas é contra tudo isso que se pode replicar, quando se trata do
motivo de crer, ou da razão da própria fé em si, ou da razão dos juízos
que precedem a fé como seus preâmbulos. Se houver realmente uma
discussão sobre os preâmbulos da fé, temos na verdade razões que nos
obrigam a julgar com certeza porque é razoável, porque é um dever, uma
obrigação crer na divina instituição da Igreja como revelada de fato
por Deus. E essas razões são chamam-se motivos de credibilidade,
algumas absolutamente, outras suficientemente relativas, conforme a
diversa capacidade e condição dos intelectos, mas de todos os modos
sempre independentes do beneplácito da vontade. Mas de qualquer modo
ainda não haverá nenhuma conseqüência sem a intervenção do livre
arbítrio, que sempre poderá direta ou indiretamente afastar a mente da
consideração das premissas das quais se origina a necessária conclusão:
por isso que racionalmente crível, por isso obrigatoriamente se deve
crer na revelação católica.
Mas agora, se o assunto for referente ao assentimento da fé em si,
não haverá menor razão que a autoridade de Deus revelador. Tal
autoridade se manifesta com toda evidência a um homem não afetado de
loucura como fundamento digníssimo de firmíssima adesão, na medida em
que se constitui pela infinita sabedoria e sua veracidade que é a
Verdade Subsistente, cujas atestações, por isso mesmo, só pelo fato de
serem suas atestações, são também indefectíveis de ordem verdadeira
absolutamente. Entretanto, embora caia sob tal autoridade, não se
encontra na espontaneidade do intelecto, de modo que ainda é necessária
uma intervenção da vontade livre, não certamente para acrescentar um
assentimento da razão, à qual nada é mais suficiente, mas somente para
determinar a execução ou exercício do ato, na medida em que o intelecto
o julga racional, devido e obrigatório. E portanto nem nos preâmbulos
da fé, nem com mais razão no próprio ato de crer a vontade está no
lugar da razão, ou como complemento da razão. E por isso o Concílio do
Vaticano, frisando a inconcussa solidez da razão, diz: “Em virtude da
autoridade do próprio Deus revelador que não pode enganar-se nem
enganar-nos.” Mas a respeito da razões pelas quais se manifesta
primeiro o fato da divina revelação, acrescenta: “Todavia, para que o
obséquio da nossa fé estivesse em harmonia com a razão, quis Deus aos
auxílios internos do Espírito Santo juntar argumentos externos da sua
revelação, isto é, fatos divinos, principalmente milagres e profecias,
que, mostrando a onipotência de Deus e excelentemente sua infinita
sabedoria, são sinais certíssimos da revelação divina e acessíveis à
inteligência de todos. Sinais, diz, certíssimos. Aos quais, pois, não há
necessidade de juntar o arbítrio da vontade.
Está muito longe, portanto, o dogmatismo moral de receber uma
defesa da doutrina católica acerca da razão e do modo de assentimento
da fé cristã, mas antes por esta doutrina será esvaziado e destruído.
Mas é destruído ainda mais naquele que quer que a fé sincera e
verdadeira dependa necessariamente da vontade moralmente perfeita com a
perfeição do amor ou da caridade. Pois distinguem entre fé de amor e
fé de temor, e dizem que a fé de temor não é fé sincera, porque contém
em si o desejo de não crer; que com ela e por ela se anda nas trevas,
que é uma fé morta, e, por conseguinte, fingida, etc[96]
Em tal argumento parecem tomar algo do testemunho de São Tiago
Apóstolo que diz que os demônios crêem e tremem, relacionado com a fé
do homem, que se não tem obras está morta em si mesma. – Mas diga-se ao
contrário, em primeiro lugar, que aquela fé dos demônios não depende
absolutamente da vontade livre, seja ela boa ou má, mas apenas da
evidência dos sinais, de modo que não se pode dizer absolutamente nem
fé de temor nem fé de amor, a não ser que casualmente seja do agrado
chamar fé de temor aquela que tem o temor por resultado: realmente neste
sentido não se considera mais a coisa em si evidentemente. – Diga-se
também que a fé do cristão sem as obras não se compara absolutamente
com a fé dos demônios quanto à espécie do ato, mas apenas quanto ao
fato de que, assim como aos demônios de nada lhes aproveita para a
salvação nenhum conhecimento acerca das coisas divinas pela evidência
dos sinais que tenham, assim também ao cristão enquanto não se esforçar
por conformar a vida com a sua fé, a fé de nada lhe poderá valer. –
Diga-se ainda em terceiro lugar que a fé do mau cristão se diz morta
não porque seja forçada, não porque careça de sinceridade, mas porque
ociosa não produzindo o fruto das boas obras. – Diga-se finalmente que
toda doutrina que faz a verdadeira fé cristã inseparável da caridade e
do estado de justiça é uma doutrina herética e protestante, já
condenada pelo Concílio de Trento Sessão 6, Cânon 28 e mais recentemente
pelo Concílio do Vaticano sessão 3, cap. 3. Em Trento, com efeito,
está dito: “Se alguém disser, perdida pelo pecado a graça, também se
perde a fé para sempre; ou a fé que permanece, não é verdadeira fé,
ainda que não seja viva; ou aquele que tem a fé sem a caridade não é
cristão, seja anátema. E no Concílio do Vaticano diz-se: “Porque a fé
em si mesma, embora não opere pela caridade, é dom de Deus, e seu ato é
uma obra pertencente à salvação, pelo qual o homem presta a Deus livre
obediência, a sua graça, à qual pode resistir, consentindo ou
cooperando. Aqui, pois, inutilmente apelarão para a doutrina católica,
justamente no ponto em que com clareza contradizem o dogma solenemente
definido.
Portanto, do primeiro ao último argumento afirma-se falsamente que o
conhecimento da fé mendiga o seu valor à boa vontade. Diz-se
falsamente que o defeito da adequação com a verdade objetiva nos dogmas
se compensa por aquilo que vem do influxo de uma boa vida. Supõe-se
falsamente que nas coisas da religião valem tanto, nem mais nem menos,
quanto tendemos. Por fim, falsamente afirma-se aquela nova noção de
verdade, que já analisamos o que vem a ser, mas que influi a
moralidade. E agora é necessário investigar se tal moralidade, que
está no fundamento de todo o sistema, nele permanece salva e íntegra.
Este será o próximo tema.
§ 2
Porque o dogmatismo moral não só não restabelece o edifício
arruinado da verdade, erigindo como princípio e fundamento a vontade do
bem, mas antes acumula ruína sobre ruína, isto é, a ruína da própria
ordem moral sobre a ruína do conhecimento intelectual, fazendo a noção
da moral independente da noção de Deus e da sua lei e construindo a
regra do honesto apenas sobre as forças ou aspirações imanentes da
alma.
Aqui são absolutamente necessárias certas noções previas de moral. A
noção de moral inclui dois conceitos. Inclui primeiro a noção de
bondade ou malicia nos atos humanos; inclui além disso o conceito de
obrigação pela qual nos compelimos a fazer o bem e a não fazer o mal. E
sempre necessariamente se funda sobre o conhecimento de Deus, seja sob
a razão de fim último da nossa vontade, seja sob a razão de legislador
que ordena para que a ordem seja conservada até o fim, que proíbe para
que tal ordem não seja perturbada.
Considere-se em primeiro lugar a moral enquanto inclui o conceito de
bondade ou de malicia nos atos humanos. Tal bondade, tal malicia, de
onde são tomadas? Falando em geral, a bondade ou defeito de qualquer
ação deve ser tomada tendo em vista o fim que pelo princípio ativo da
ação é pré-estabelecido. Pois a ação é considerada como movimento da
potência operativa direcionado a atingir o fim. É portanto boa se
retamente se dirige para ele, é má e defeituosa se de outra maneira.
Como nas ações da natureza, “quando o ato procede da virtude natural
segundo a inclinação natural para o fim, então se conserva a retidão no
ato, porque o meio não sai dos extremos, assim o ato procede da ordem
do princípio ativo para o fim”[97].
Mas quando o vício do órgão ou alguma perturbação proveniente de
qualquer lugar faz desviar o ato daquela ordem, então incorre a razão
do ato defeituoso e mal. Do mesmo modo ocorre nas operações da arte,
pois ai se conserva a retidão, quando a ação está contida na linha do
fim que a arte se prefixou atingir; incorre a razão de defeito, quando
se desvia de dito fim, qualquer que ele seja. “Como o pecado ocorre
pelo desvio da ordem em direção ao fim, assim no ato da arte ocorre o
pecado de duplo modo. De um modo, pelo desvio do fim particular buscado
pelo artesão, e tal pecado será próprio da arte, como, por exemplo, se
o artesão tencionando fazer uma boa obra, faz uma má, ou intencionando
fazer uma má obra, faz uma boa. De outro modo, pelo desvio do fim
geral da vida humana, e deste modo diz-se pecar se se intenciona fazer
uma má obra e a faz, e por elas outro é enganado. Mas esse pecado não é
próprio do artesão enquanto artesão, mas enquanto homem. Donde, do
primeiro pecado é culpado o artesão enquanto artesão; mas do segundo é
culpado o homem enquanto homem.”[98]
E assim discorrendo por todos os gêneros de ações, sempre se
encontrará a bondade ou o defeito repetidos pelo hábito do ato para o
fim ou término que se prefixa à potência operativa, segundo o ato
retamente se dirija a tal fim ou, ao contrário, se desvie da devida
ordem do mesmo fim.
Deve-se, pois, ver qual é nos atos morais o princípio ativo da ação,
qual é o fim ou término que lhe foi prefixado. Disto, com efeito, e
somente disto decorre resultará a noção de ato moral, bom ou mal, reto
ou não reto. Além disso, o princípio do ato moral assim considerado é a
livre vontade, como todos facilmente concedem, porque daí decorre
naturalmente o gênero do costume, onde primeiro o domínio da vontade se
encontra. Mas é a vontade, à qual manifestamente pertence a direção de
toda a vida, que move as outras forças. Tem, pois, por fim término
último o próprio fim supremo da vida humana, que não é outro senão
Deus, sob cuja ordem toda a vida se constitui. Ademais, a vontade por
sua natureza visa ao sumo e absoluto bem, e embora possa por seu
arbítrio colocar o sumo bem em várias coisas, como, por exemplo, no
prazer, nas riquezas, nas honras etc, entretanto é em um só que se
encontra realmente a razão de sumo bem e não só em aparência; porque um
só é por essência a bondade, Deus.
A retidão e a bondade do ato voluntario ou moral, portanto, sob tal
aspecto, essencialmente consiste na observância da ordem que se dirige a
Deus como fim; a perversidade e a malicia no afastamento ou desvio da
ordem que tem por mesmo fim a Deus. Ai se encontra a norma, a regra, ai
a razão segundo a qual se concebe qual seja o bem e o mal nos atos
morais. Segundo isto, pois, compreende-se em primeiro lugar que o mal
moral é contra o próprio Deus que imediatamente se comete, como
blasfemar contra Deus, descrer de Deus, recusar culto a Deus etc.
Segundo isto também se entende que qualquer mal moral é contra o amor
ordenado do homem a si mesmo: seja porque o amor do bem que temos de
Deus nos conduz a amar mais que nós mesmos aquela causa principal e
suprema da qual todos participamos, e na qual o próprio bem mais se
contém do que em nós mesmos; seja porque, corrompido aquilo que se
considera predispositivamente, já não pode permanecer aquilo para o
qual é necessária a predisposição e a condução. Ademais, o que repugna
ao amor ordenado de si mesmo, repugna também a sujeição a Deus como fim
último, e por isso entre as coisas moralmente más se classifica. Por
esse motivo, finalmente, entende-se que o mal moral é qualquer coisa
que lese ou destrua o bem da convivência ou da sociedade humana, porque o
homem nascendo para a sociedade e não podendo atingir o seu fim fora
da sociedade, corromper a aliança da sociedade humana nada mais é que
retirar a necessária condição ou destruir o meio necessário para tender
a Deus fim último da vida humana , e portanto se diz realmente ser
contra o fim, senão imediatamente, mas com certeza mediatamente, quanto
é da própria natureza.
Tal é, pois, o principio pelo qual se discerne o que é bom ou mau
nos atos morais, e não pode ser outro. Se se remove a Deus como fim ou
se dele se prescinde, já nada daquilo relacionado com a libido humana
poderá aparecer moralmente desordenado, isto é, classificado
precisamente como ato voluntário. Pois excluído Deus como fim, já não
resta outro fim que não sejam as criaturas ou o próprio homem e não se
pode contestar a propósito. Não um fim que exista nas criaturas: seja
porque sob as outras criaturas enquanto tais, das quais nada participa,
o livre arbítrio não se constitui; seja porque junto a nenhuma
criatura natural o livre arbítrio tem o hábito ou a dependência, para
que por elas se cogite de buscar o fim prefixado; seja porque disto
resulta impossível que o ato de livre arbítrio, precisamente naquilo
que tem de perverso e desordenado se manifeste por exorbitar da ordem
de qualquer outra criatura quanto à conveniência, exigência, bondade e
utilidade. E tampouco há um fim no próprio homem, porque o homem não é
um fim em si mesmo para ser buscado, como provam aquelas aspirações do
coração a um bem fora e acima dele, aspirações estas cantadas pelos
próprios imanentistas.
Que se considere agora a moralidade quanto à noção de bem e mal que
se acrescenta à noção de obrigação de fazer o bem e evitar o mal, a
dependência da idéia da moral que pressupõe um conhecimento de Deus
ficará ainda mais clara. Com efeito, nada mais evidente que a obrigação
que liga a consciência e o homem (queira-se ou não), adstringindo
insuperavelmente importe em seu conceito a sujeição à regra de absoluta
necessidade, e esta imposta por algum superior ou por parte da coisa
de fato existente: se, com efeito, a sujeição restritiva da liberdade,
com respeito à abstração que não teria nenhuma realidade fora da
consideração do próprio intelecto, é uma quimera e uma fábula, é um
jogo da imaginação, um fantasma vago, que se expulsa com a mesma
facilidade com que apareceu. E por isso digo que está patente nos
termos que a regra da moralidade, na medida quem se apreende como
obrigatória, apreende-se também, ipso facto, como de uma lei emanada de
um ser dominante. Este ser não pode ser outro senão Deus, como se
torna manifesto pelas razões obvias já explanadas, quando se tratou da
noção de pecado[99]
agora convém recordar brevemente. Com efeito, em primeiro lugar,
quando a regra dos costumes domina no homem, não enquanto este ou
aquele homem, mas enquanto homem simplesmente, só pode ser-lhe imposta
por aquele a quem o homem está sujeito segundo sua natureza. E este não é
senão Deus, que é o único autor e senhor da natureza humana. Além
disso, em segundo lugar a regra da moralidade não pode descer às
vontades defectíveis, senão por aquele cuja intenção não possa
absolutamente desviar-se do fim da moralidade, o qual por essência
permaneça impecável, visto que é inerente de forma indeclinável e
imóvel ao bem supremo que é o princípio e o termo de toda a ordem
moral. Mas este é só Deus. Pois, como se diz no Compêndio de Teologia,
c. 113: “Se em alguma parte a vontade não pode falhar quanto ao fim,
está manifesto que ai o defeito da ação voluntária não pode ocorrer. Mas
a vontade não pode falhar com relação ao bem que é da mesma natureza
daquele que quer. Com efeito, qualquer coisa ao seu modo apetece o seu
ser perfeito, que é bem de qualquer um; mas com relação ao bem exterior
pode falhar, satisfeita com o bem que é conatural a ela. Pois a
natureza de quem deseja é o fim último, e nisto não pode haver defeito
da ação voluntária; mas isto só próprio de Deus, pois sua bondade que é
o fim último das coisas é sua natureza. Mas a natureza dos outros
seres que desejam não é o fim último; de onde poder nelas ocorrer
defeito da ação voluntária por isso que a vontade permanece fixa no
próprio bem, não tendendo para o sumo bem ulterior que é o fim último.”
Além disso, em terceiro lugar, a obrigação moral não está
naturalmente constituída para descer senão pelo bem mais alto superior,
que não só em si é absolutamente santo, mas também quer que todas
outras vontades sejam obedientes à sua ordem. Mas isto também só se
verifica em Deus, em quem querer a si mesmo como fim último de todas as
coisas se identifica com o querer que se conserve no universo da
justiça, bem como nele são a mesma coisa a ordem da justiça e a ordem
do fim último. Finalmente, se queremos prescindir de Deus, que coisa
restará? Restará talvez alguma conveniência estética, algum proveito
pessoal, alguma utilidade social, e outras coisas do mesmo tipo. Mas
tudo isto está muito longe da obrigação absoluta, que deve ser superior
à vontade do homem, superior a qualquer bem resultante de qualquer
coisa, superior a qualquer dor que eventualmente se tenha de suportar,
superior a qualquer dificuldade do esforço para guardar o dever
exigido. Mas claramente repugna que no homem em si mesmo considerado
haja uma necessidade maior que o homem. Repugna que qualquer criatura
seja indefinida e insuperável a razão da regra a ser sempre observada e
nunca postergada. Repugna que seja norma suprema e fim último como
deveria ser para impor tal e tanta necessidade.
Se, pois, do primeiro ao último a noção de moralidade é uma noção
essencialmente fundada sobre a noção de Deus fim último, a quem a
criatura racional se submete totalmente, e do qual recebe uma lei,
realmente preceptiva de todas as coisas referentes ao fim e à
manutenção da ordem; mas proibitiva de tudo o que afasta do fim e
perturba a ordem. Portanto, qualquer coisa que desvincule a noção de
moral da noção de Deus, qualquer coisa que dê outra base, outro
fundamento, outro princípio à moral, destrói a moral considerada em si
mesma, e a reduz a mera inclinação humana, na mesma linha e no mesmo
grau das outras inclinações, que sem dúvida estão submetidas ao livre
arbítrio, e com muito mais razão lhe ditam a lei do reto agir e fixam a
irremovível norma da ação ordenada.
Pois bem, o dogmatismo moral não funda a noção de moralidade sobre a
noção de Deus criador, senhor, legislador e nosso fim último; mas, ao
contrário, pretende que a noção de Deus seja fruto da noção de
moralidade. Antes é a vontade instruída pela moralidade; depois é o
conhecimento de Deus, ao qual a mente se curva sob pressão do coração.
Conclui-se, assim, que a moralidade, para nós, é independente de Deus,
emergindo apenas das forças imanentes da alma ou das aspirações, enfim, a
moralidade está reclusa e circunscrita pelo imperativo categórico
kantiano, o qual, na apreciação da razão, é anódino, inconsistente,
constituído de noções contraditórias e por isso desprezível.
Realmente, sentimos em nós mesmos inclinações para observar a
justiça, a temperança, a castidade, mas também sentimos outras,
completamente opostas. Sentimos inclinações para fazer o bem aos
outros, para amar os pais, os filhos, os irmãos, os próximos; mas nos
animais também se observam inclinações semelhantes, e às vezes ternos e
delicados afetos, como relata São Basílio no livro 8 Hexaem. a respeito
das cegonhas que a seus pais abatidos pela idade protegem com as
plumas, sustentam com alimentos e apóiam no vôo. Até aqui, pois, nada
mais que certo instinto, entre tantos outros dois quais abunda nossa
natureza complexa. Mas quando nos parece ouvir a voz da consciência que
categorice imperat para que sigamos tais inclinações como
regras obrigatórias e não outras, somos objeto de zombaria, pois não se
trata senão de vão sentimentalismo. Mas digo vão sentimentalismo tanto
com relação ao homem imanentista de quem se afirma ser sustentado
pelas próprias forças quanto com relação ao homem real a quem se
libertou da forca, o qual, ao menos confusamente, está cônscio de estar
submetido à lei de Deus e a quem sempre se afasta para mais longe da
forca e não se permite que volte. Impera a consciência? Mas não há
ninguém, em nome de quem impera ou pode imperar. Categoricamente
impera? Mas não é assinável nenhuma necessidade a que seja proporcional
tal injunção categórica. Pois se se confere honra e dignidade a
própria pessoa em questão, pergunto de qual dignidade da pessoa, de qual
honra se fala. Se da honra de que tu gozas junto aos outros? Mas nisto
pode haver um cálculo coibindo a mão ou antes a ação que venha ao
conhecimento de outros homens; mas quanto ao fórum e ao preceito da
consciência, não há absolutamente nada. Ou se trata da honra de que
se alegra consigo mesmo? Mas em oposição ao primeiro, pois a honra
dessa natureza está subjacente ao beneplácito de qualquer. De que modo,
pois, não excedendo os justos limites, aquela injunção, embora contra
aquela que mais ardentemente se deseja, tão insolentemente se insurge?
Mas contra o segundo, pois tão larga e variada costuma ser nos homens o
amor da honra e da dignidade, que daquilo que tua honra busca,
sobretudo só aos olhos da tua consciência individual com direito e
mérito te constituas juiz independente e árbitro. Mas contra o
terceiro, pois, prescindindo sempre do fim superior e da ordem pela
qual te ligas a ele, tu não colocarás a honra e a dignidade em nenhum
outro lugar que não abdicando da liberdade que te deu a natureza e te
fez senhor de tuas determinações. Se houver algo em contrário, será um
espantalho, um preconceito, uma impressão subjetiva, que a razão serena,
voltando a um exame crítico, pronunciará como vã.
Assim, pois, a moralidade a que recorre o dogmatismo moral não é
verdadeira moral, mas radical negação da moralidade. E não obsta que
estendam casualmente tal moral ao vulgo, mais ou menos confusamente
todos a concebem. Com efeito, esta é a contradição perpétua em que
incorrem infalivelmente aqueles que corrompem as primeiras noções que em
nossa razão se assentam como incorruptível fundo. Sempre unem uma
noção verdadeira com uma noção sofistica e a sofística revestem-na de
atributos e propriedades que encontram na verdadeira. Mas agora falamos
da moralidade, tal qual o sistema constrói. Sistema, é claro, no qual o
homem deve haurir tudo do seu íntimo fundo e da potencialidade
vital, de maneira que não se aponha indevido limite a sua legitima
autonomia e ao modo próprio da expansão autóctone. Sistema que prefixa a
boa vontade, a qual o cego instinto toma como critério do bem, e
imaginária lei como regra dirigente. Enfim, sistema que não só dissolve
o vínculo de dependência da moralidade em relação a Deus, mas antes o
próprio conhecimento de Deus e faz vicejar todo outro dogma religioso
sob o influxo do coração a cuja sugestão obedece o intelecto, para que
em última análise fique pura e simplesmente a vontade no lugar da
razão. E não se verá aqui a consumada ruína da ordem moral sobre a
ruína do conhecimento do intelecto, para que haja plena destruição? Há
entretanto outra pela qual mais claramente se mostra a completa
destruição, da qual, por fim, se dirá alguma coisa.
§ 3
Porque o dogmatismo moral consuma irreparável destruição da verdade
da fé, proclamando um valor puramente prático dos dogmas da religião,
isto é, afirmando que neles não nenhum valor objetivo, visto que nos é
completamente desconhecido, mas são apenas normas ou incitamentos à
ação, e assim devemos tê-los na medida em que nos servem para a ação e
se verdadeiros forem, pela fé serão apresentados ao intelecto.
Certamente, nada mais claro que o valor prático dos dogmas da
religião cristã. Nada mais recorrente entre os santos padres que a
afirmação de que a fé reta é o início da boa vida; os cristãos devem
distinguir-se dos infiéis pelas obras e costumes, do mesmo modo que
deles se distinguem pela fé: as obras se constroem sobre a fé, como uma
fábrica se constrói sobre o alicerce. Diz Santo Agostinho, sobre a fé e
o símbolo, n. 25: “Esta é a fé que em poucas palavras deve sustentada
no símbolo é dado ao novos cristãos…., que crendo se submetem a Deus,
submissos retamente vivam, retamente vivendo, purifiquem o coração, com
o coração puro compreendam o que crêem.” Diz São Leão Magno, Serm. 37,
n. 1: “A lembrança pelo gênero humano daquelas coisas feitas pelo
Salvador nos confere grande utilidade, se venerando tudo o que cremos, o
cultivarmos para imitação. Com efeito, nas dispensas dos mistérios de
Cristo, não só as virtudes são graças mas também incentivos de
disciplina, para que aquilo que professamos pelo espírito de fé o
exercitemos igualmente por meio das obras.” Diz São Gregório, hom. 26,
in Evangelia, n. 9: “Crê realmente aquele que exercita por obras o que
crê. Pelo que, contra aqueles que retêm a fé só de nome, São Paulo diz:
Confessam que conhecem a Deus, mas negam-no pelas obras.” E por isso, a
respeito dos fiéis que vivem mal, o mesmo São Gregório em 1. 25 Moral.
C. 10 diz: “Ferem com os costumes o que veneram pela fé. A tais
frequentemente sucede que perante tribunal divino, por terem vivido
iniquamente percam aquilo que salutarmente creram.” E mais adiante, 1.
28, c. 7: Há quem ouça as coisas eternas, realmente creia, e,
entretanto, contradiga pela má vida o que sustenta pela fé.” Mas se
devesse referir todas as coisas a esse respeito, todos os testemunhos
dessa doutrina, não creio que pudessem bastar volumes inteiros. Mas
quem poderá duvidar do sentido da Escritura? Ensina a Escritura que a
fé sem as obras é morta em si mesma; apareceu a graça de Deus nosso
Salvador ensinando-nos a renunciar à impiedade e aos desejos mundanos, a
viver sóbria, justa e piamente neste mundo; aqueles que professam a fé
cristã devem com a força da sua profissão ser pudicos, prudentes,
sóbrios, santos sob todos os aspectos, para que a palavra de Deus não
seja blasfemada; são em grande número sentenças deste gênero. E para
que não pareça que nos satisfazemos com coisas mais vagas, oferecemos
pensamentos mais determinados. O próprio da relação, por exemplo, entre
o dogma especial da encarnação e a regra moral, a Escritura o encerra
em poucas palavras, dizendo: “Tende entre vós os mesmos sentimentos que
houve em Jesus Cristo, o qual, existindo na forma (ou natureza) de
Deus, não julgou que fosse uma rapina o seu ser igual a Deus, mas
aniquilou-se a si mesmo, tomando a forma de servo, tornando-se
semelhante aos homens e sendo reconhecido por condição como homem.
Humilhou-se a si mesmo, feito obediente até a morte e morte de cruz![100]
E do dogma da ressurreição de Cristo a Escritura diz: E, se se prega
que Cristo ressuscitou dos mortos, como dizem alguns entre vós, que não
há ressurreição dos mortos? Pois, se não há ressurreição dos mortos,
também Cristo não ressuscitou. E, se Cristo não ressuscitou…é também vã
vossa fé… “Comamos e bebamos, porque amanhã morreremos” Não vos
deixeis seduzir; as más conversações corrompem os bons costumes.[101]
E a respeito do dogma da Eucaristia diz: O Senhor Jesus, na noite em
que foi entregue, tomou o pão etc..Portanto todo aquele que comer este
pão ou beber este cálice do Senhor indignamente será réu do corpo e do
sangue do Senhor. Examine-se, pois a si mesmo o homem e assim coma
deste pão e beba deste cálice, porque aquele que o come e bebe
indignamente, come e bebe para si a condenação, não distinguindo o
corpo do Senhor.[102]
E assim discorrendo através de cada dogma, da verdade do dogma
chega-se às conclusões concernentes à pureza da vida, à correção da má
vontade e ao exercício de todo gênero de virtudes. E desta condição não
se devem tampouco aqueles dogmas que pareçam puramente especulativos,
como, por exemplo, o altíssimo mistério da Trindade, no qual,
efetivamente, temos um incitamento para submetermo-nos a Deus pelo mais
pleno obséquio do intelecto e da vontade, para começar uma vida que
nos espera com os anjos no céu, para tendermos com todas as forças da
alma àquela visão na qual o único enigma será revelado, conforme
testemunha o apóstolo: Vemos agora por um espelho e em enigma, mas
então veremos face a face; agora conheço em parte, mas então conhecerei
como sou conhecido[103].
Por isso não se deve absolutamente duvidar que os nossos dogmas tenham
grande valor para dirigir a reta ação, e se aquele novo sistema a que
chamam pelo nome de pragmatismo não pretendesse outra coisa enunciaria a
verdade a respeito dos primeiros elementos da doutrina cristã.
Mas isto que se diz sobre os primeiros elementos, isto é, que os
dogmas servem como regra dos costumes, vale na medida em que são
absolutamente verdadeiros e como tais, sem nenhuma sombra de dúvida, os
cremos. A mais alta verdade deve ser aquela que mostra o que é: a
primeira verdade acerca de Deus causa e fim último, acerca de Deus
legislador, de Deus juiz, de Deus remunerador: a verdade acerca do
Filho de Deus encarnado por causa de nós homens e de nossa salvação, o
qual padeceu, morreu e ressuscitou dos mortos: a verdade acerca da
Igreja instituída pelo único Salvador do gênero humano, a qual tem em
si os meios para alcançar a beatitude que o sangue de Jesus Cristo nos
mereceu e conquistou: a verdade acerca dos sacramentos, a verdade da
remissão dos pecados, a verdade acerca da vida eterna prometida àqueles
que fizerem o bem, a verdade acerca da condenação eterna dos que
fizerem o mal. Nesse pressuposto e fundamento da absoluta verdade,
afirmo com toda convicção que a regra do agir deriva dos dogmas.
Retirado este fundamento, não sobra uma estupidez, uma loucura?
“Detenhamo-nos nos corpos dos mártires, dizia São Gregório[104]
Por acaso “eles teriam dado sua carne à morte se não estivesse
absolutamente certo para eles que há uma vida pela qual deveriam
morrer? E falando de um modo geral, pergunto que há de mais estulto que
tomar a regra do agir daquilo que é desconhecido, do nada, de vagas
fórmulas ignoradas e não poder saber o que a elas corresponde na
realidade, mas ao contrário, sabe-se que são consoantes à realidade?
Efetivamente, é o que faz o dogmatismo moral, ao proclamar um valor
puramente prático dos dogmas da religião. Por isso, destrói esse mesmo
valor prático juntamente com o objetivo, e é a ruína absoluta.
Pensam dizer algo quando afirmam que o sentido dos nossos dogmas é
aquilo que devemos considerar ao agir, como se fossem verdadeiras
aquelas idéias que pela fé se apresentam ao nosso intelecto: Deus é
pessoa, quer dizer, comporta-te para com Deus, como te comportas para
com uma pessoa humana. De modo semelhante, Jesus ressuscitou,
quer dizer: Age para com Jesus, como se agisses para com ele ante de
sua morte, como para com um coevo agirias. E igualmente de modo
semelhante, o dogma da presença real quer dizer que deves ter respeito
pela hóstia consagrada com o mesmo hábito que terias para com Jesus se
estivesse visível”[105]
Com efeito, achamo-nos em pleno sonambulismo. Pois, como opino, para
todo aquele que por pouco tempo desperta do sono, esta proposição, Deus
é pessoa, significa que Deus é pessoa, isto é, subsistente em si,
distinto do mundo e de todas as coisas finitas que participam do ser.
Esta proposição, Jesus ressuscitou, significa que Jesus ressuscitou, isto é, da morte voltou à vida. Esta proposição, Jesus está realmente presente no sacramento,
quer dizer que está realmente presente, isto é, que sob as espécies
sacramentais, em lugar da substância do pão está latente o próprio
Cristo, verdadeira e substancialmente. Do contrário, que logomaquia!
Que mentirosa acepção das palavras! Mas sobretudo, ó deuses imortais,
que religião absurda! Vejo o pão, os sentidos anunciam-me o pão, nada a
não ser um pão real, impossível um testemunho ao contrário, e tu me
obrigas a respeito daquilo que conheço como pão, e nada mais do que
pão, a ter um hábito de culto, de adoração, de reverência, como o
deveria ter se Jesus estivesse visível? Jesus é ou foi um homem; é o
que me testemunha a história. De resto, sua divindade não tem sequer
sentido para meu intelecto e tu pretendes que eu tenha para com esse
homem, do qual não sei, nem posso saber, se tem algo de super-homem, um
comportamento como se ele fosse Deus? Jesus morreu; quanto a isso, não
há possibilidade de dúvida.mas, por outro lado, a ressurreição dos
mortos, no que concerne à inteligibilidade, equivale ao círculo
quadrado, e tu me obrigas a ter para com tal morto – porque, para mim,
não passa de um morto – a ter uma atitude como se estivesse vivo?
Amarga e cheia de muitas dores a presente vida; tem, entretanto, certas
doçuras às quais proíbe certa austeridade, que dizem ao vulgo ser
prescrição da lei. Mas de outra parte, a vida futura, se existe, como
seja, tudo isto se encontra na esfera do agnosticismo. Que farei, pois,
eu infeliz, que não quero abdicar da vida presente por uma vã
esperança ou temor das realidades futuras? Mas eis que te oferece uma
solução a filosofia da ação. Age assim, vive assim, como se existisse a
vida futura, na qual estão fixos os prêmios para os bons e as penas
para os maus.
Vê-se, pois, o niilismo levado às suas extremas conseqüências pelo
dogmatismo moral. Na verdade, tomaria racionalmente a regra de agir
tanto de alguma fábula romanesca quanto do evangelho. De nada vale se
se diz que, embora no dogma segundo está no nosso intelecto não haja
nenhuma razão que legitime a práxis, entretanto poderá ela existir na
realidade subjacente, certamente por nós ignorada, mas conhecida de
Deus revelador. Pois, deixadas de lado por ora outras considerações, o
dogmatismo moral trata principalmente de Deus, e sobretudo da revelação
de Deus e de outras coisas mais. “Costuma-se dizer que Deus falou. Mas
neste caso que significa o vocábulo falar? Na realidade, trata-se mais
seguramente de uma metáfora e que coisa se oculta sob tal metáfora?
Ninguém sabe[106].
Portanto não resta nada senão o esforço da mente humana. Com efeito,
dizem que se não quisermos absurdamente transformar a religião em
entidade lógica ou abstração metafísica, é necessário nela introduzir a
noção de movimento e vida, de maneira que se conceba o dogma como algo
vivo, cujos todos princípios são imanentes ao homem.
Resta, pois, mostrar por fim qual animal seja esta fé viva. E
teremos o cuidado de fazer isto, referindo palavras e sentenças do autor
que se incumbiu de vulgarizar tudo aquilo que concerne às origens de
cada animal, ao seus incrementos, progressos, bem como suas pretéritas e
futuras metamorfoses segundo as opiniões dos racionalistas do século
passado. Disto tratar-se-á no capítulo seguinte.
Capítulo VI
Do cúmulo de erros do sistema da fé viva
Sei que tens a reputação de que vives, e estás morto.
(Apoc. III-1)
(Apoc. III-1)
Essa doutrina da fé viva compila em si todos os erros do
racionalismo até hoje surgidos, e sob o nome mentiroso de revelação
dissimula quanto possível a radical negação de todos os dogmas da fé
cristã, sem exceção de nenhum. Se se duvida disto, há agora ocasião de
convencer-se. Interrogue-se a própria doutrina, ela tem idade, fale ela
por si mesma.
§ 1
O que chamam revelação nada mais pode ser que a consciência adquirida pelo homem de sua relação com Deus.
O início da revelação foi a percepção, um tanto rudimentar, daquela
relação que deve existir entre o homem cônscio de si mesmo e Deus
presente sob o mundo dos fenômenos. Sim, especialmente a revelação
cristã em seu princípio e sua origem, não foi senão a percepção na alma
de Cristo, tanto da relação pela qual o próprio Cristo se unia com
Deus, quanto da relação que liga todos os homens ao Pai Celeste.
De modo semelhante o progresso da revelação foi a percepção de novas
relações, ou melhor, a mais precisa, a mais distinta determinação da
relação essencial percebida confusamente desde a origem, enquanto o
homem se informava para conhecer sempre melhor a magnitude de Deus e a
noção do seu próprio dever.
Todavia, há uma diferença entre as percepções de ordem cientifica e
as percepções das verdades religiosas, que se dizem reveladas, pois
estas posteriores não são como aquelas são antecedentes, frutos só da
razão, mas certa elaboração do intelecto sob pressão do coração e
direção do sentido moral ou da vontade do bem.
Ademais essa elaboração que teve um efeito sempre mais perfeito na
religião israelita e depois na religião cristã, é primeiro e
principalmente operação de Deus no homem ou operação do homem com Deus,
na medida em que envolve a ação de Deus que excita o homem a procurar e
o ajuda na seu continuo e indefinido esforço para melhorar. Conquanto a
razão dos eventos históricos ocorridos fosse conhecida por eles, a
religião revelada recebia ocasiões, incitamentos, auxílios, matéria da
sua própria evolução, e tanto mais, quanto maior fosse a vitalidade de
que estivesse revestida. Donde também nada a admirar é se a religião de
Israel e a religião cristã, precisamente graças à intensíssima energia
vital, foram mais que todas as outras religiões obstinadas contra a
mutação.
Portanto, há duas coisas que não se devem confundir, antes devem
ficar justamente distintas. Daí certamente as idéias religiosas que
constituem apenas o objeto da fé e evoluem com os dias. Daí também os
fatos históricos que fornecem à evolução a causa das idéias,
determinante ou certamente ocasional.
§ 2
E começando com Cristo do qual a nossa religião toma o nome, importa
distinguir, por exemplo, dois Cristos. Um histórico, que é o único para
nós na ordem real dos fatos. O outro não histórico, que é o Cristo
da fé, Cristo idéia, Cristo espírito ou Cristo místico.
Além do mais, o Cristo histórico, em primeiro lugar, não é o Cristo
ressuscitado dos mortos. Primeiro, porque o Cristo ressuscitado já não
pertencia à ordem da presente vida, que é a ordem da sensível
experiência. Segundo porque se for considerado o testemunho do Novo
Testamento independentemente da fé dos apóstolos, não oferece senão
limitada probabilidade, que a todos parecerá desproporcional à
gravidade da matéria testemunhada. Terceiro, porque é necessário que
todo argumento natural de um fato sobrenatural seja considerado
incompleto e sempre deficiente.
Novamente, da verdade histórica se exclui completamente o Cristo
Joânico. Pois o quarto Evangelho de nenhum modo pode ser considerado
como testemunho histórico da vida e doutrina do Salvador. Se Jesus agiu e
falou conforme os sinóticos, não pôde agir e falar conforme o
Evangelho segundo São João, e vice-versa, se o relato de João é
histórico, o relato dos sinóticos não passa de um relato artificial que
desfigura a Cristo. Mas o Cristo Joânico é o Cristo da fé, espiritual,
místico, que transcende a todas as condições do tempo e da existência
terrestre. Donde as narrações segundo São João não são histórias, mas
mística contemplação do Evangelho; em verdade as palavras são
meditações teológicas do mistério da salvação.
Igualmente, da mesma verdade histórica está excluído o Cristo de
grande parte dos sinóticos, porque os sinóticos, afora o escopo que
tinham de produzir a fé, não cuidavam inteiramente da fidelidade
histórica, e por meio da narração do evangelho interpretavam-no. Esses
são livros escritos para a edificação e adaptados às necessidades das
igrejas que nasciam pouco a pouco. De modo que incumbe ao crítico fazer
uma seleção dos fatos evangélicos e da pregação do Salvador, entre o
que é de primitiva memória e o que pertence apenas às apreciações da fé
e a posterior evolução da mente cristã.
Daí então não haver verdade histórica no Evangelho: em primeiro
lugar, não há atestação de Cristo de sua divindade; em segundo lugar,
não há uma afirmação de Cristo quanto à sua missão de redenção do mundo
por sua morte de cruz; em terceiro lugar, não há afirmação de fundação
da Igreja, sobretudo como distinta da sinagoga; em quarto lugar não há
instituição de nenhum sacramento.
Em primeiro lugar, não há atestação de Cristo quanto à sua
divindade. Pois essa atestação pertenceria à pregação de Jesus e
deveria como tal ser conhecida pelo historiador, se o quarto evangelho
fosse direta ressonância da doutrina de Jesus, ou se as palavras dos
sinóticos, Ninguém conhece o Filho senão o Pai, nem ao Pai ninguém conhece senão o Filho ou aquele a quem o Filho o quiser revelar,
fossem algo diferente que o germe de tradição posterior. Mas o quarto
evangelho é um livro de teologia mística no qual não se ouve senão a
voz da consciência cristã. Mas na realidade um lugar de Mateus (XI,
25-27) e de Lucas (X 21-22) é certa imitação da oração de Jesus filho de
Sirac (Ecl. LI), e parece ser obra de algum profeta cristão. Como
absolutamente não se pode crer que Cristo quisesse imitar o
Eclesiástico, é bastante provável que as precitadas palavras nunca
foram ditas por Cristo, mas foram fruto da evolução cristológica na
primeira idade da Igreja.
Em segundo lugar, não há atestação por Cristo de sua missão
redentora por meio de morte de cruz. Pois a fé na morte expiatória não
existiu desde a origem, mas foi inventada por Paulo. E aquela passagem
de São Marcos (X, 45), em que se lê que o Filho do homem veio para dar
sua alma em redenção de muitos foi inventada sob o influxo da teologia
paulina, não diferentemente das narrações da última ceia.
Em terceiro lugar, não há fundação da Igreja, sobretudo separada da
sinagoga. Pois a instituição da Igreja não é um fato que se possa
demonstrar historicamente, e a tradição apostólica convenientemente
reconhecida supõe a Igreja fundada sobre Jesus, antes que fundada por
Jesus; ou certamente, se por Jesus, não por Jesus pregando o evangelho
do reino, mas por Jesus ressuscitado dos mortos, o que se situa fora de
todas as condições da história e da demonstração. Ademais, todos os
testemunhos acerca da instituição da Igreja não passam de testemunhos
de fé que apresentam o Cristo místico da fé e sua vontade a respeito da
Igreja.
Em quarto lugar, não há instituição de nenhum sacramento. Pois
Jesus, durante seu ministério, não prescreveu nenhuma forma ritual de
culto exterior, característica da religião; visto que no evangelho por
ele pregado o cristianismo não era ainda uma religião distinta e por si
existente, mas uma simples renovação religiosa no seio do judaísmo.
Por isso a verdade histórica do evangelho não diz nada, desde o
começo até o fim, senão que Cristo pela oração, confiança, amor, para a
máxima união com Deus, e consequentemente para a consciência da
vocação messiânica, se elevou pouco a pouco; que principiou a pregar o
reino dos céus que viria em breve com o fim do mundo; que se afirmou
vigário e ministro de Deus nesse reino; que finalmente, ao supremo
evento da já iminente consumação do século acomodou sua pregação, que
foi toda ela de desprezo do mundo e renúncia dos bens temporais.
Tal é, pois, o Cristo da história, após o qual começa a evolução do
dogma cristão, e primeiro de tudo a evolução do dogma cristológico: do
Cristo místico, do Cristo espírito, do Cristo imortal, do Cristo Deus,
que já não pertence à ordem dos fatos, mas só na fé tem subsistência,
pois só na fé tem origem.
§ 3
1. Além disso, o dogma cristológico na consciência cristã cresceu e
transformou-se, como que por um contínuo esforço da fé que transcende o
seu objeto, e ainda não chega a seu último termo, se bem que sempre
persiga a mesma via, colocando Jesus sempre em lugar mais alto, e a
respeito de sua missão dando sempre uma idéia mais compreensiva,
conforme se abra uma concepção mais generosa da fé iluminada em relação
ao mundo e à humanidade.
E o primeiro grau da evolução foi após a morte ignominiosa de Jesus
quando começou a fé em Jesus vivo, sentado à direita de Deus até o
tempo da parusia, seu último advento do reino dos céus. O segundo grau
ocorreu na conversão dos gentios ao cristianismo, que deu ocasião à
teoria paulina sobre Jesus Salvador de todos os homens, o novo Adão que
por seu sangue expiou o gênero humano e reconciliou com Deus os dois
povos da circuncisão e do prepúcio em um só corpo por meio da cruz. O
terceiro grau deu-se após o contato da fé cristã com a filosofia grega,
quando neste lugar intermédio, entre Deus e o mundo que Filo
assinalara (em grego), Paulo colocou Cristo imortal e místico, como
imagem de Deus invisível, primogênito de toda criatura, pelo qual foram
criadas no mundo físico todas as coisas, todas as coisas no mundo
moral foram pacificadas, tanto no céu quanto na terra. O quarto grau
deu-se com a aparição do quarto evangelho, quando Jesus filho de Deus e
do homem, predestinado salvador, foi transformado em Verbo feito
carne, porque se manifestou aos homens como fonte de vida e luz eternas.
O quinto grau, pouco depois, realizou-se quando a fé teve de encontrar
um meio de conciliar entre si a realidade da história evangélica, a
teoria de Paulo e a teoria de João, de maneira que daí resultasse um
sistema coordenado.
Mas nesse sistema a ser construído, o sentido cristão, após muitas
hesitações, afirmou primeiro que o Verbo e o Espírito são personalidades
distintas do Pai criador. Em seguida, por ocasião do Concílio de
Nicéia, Atanásio afirmou que o Verbo de Deus, se bem que pessoalmente
distinto do Pai, era absolutamente consubstancial com o mesmo Deus Pai.
Então foi condenada a opinião de Apolinário que dizia que o Verbo
estava na humanidade de Jesus em lugar da alma intelectiva. Igualmente
condenada foi a opinião de Nestório que considerava a pessoa de Jesus
distinta da pessoa do Verbo. Também condenada foi a opinião de
Eutiques que pretendia a natureza humana incorporada à natureza divina.
Por fim, acrescentou-se no quinto concílio que a humanidade de Jesus
está unida ao Verbo substancialmente e no sexto concílio estabeleceu-se
que a unidade de pessoa não implica em si a unidade de vontade. E
assim consolidou-se o dogma cristológico tanto quanto era possível
conforme as noções tradicionais e os princípios da filosofia antiga.
Mas agora o problema ressurge completamente, e o mistério da união
hipostática necessita de nova determinação, pois a fórmula tradicional
já não responde ao estado da ciência moderna. Pois, conforme a
teologia, a noção de pessoa é uma noção metafísica, mas na moderna
filosofia tornou-se uma noção psicológica, pertinente à ordem da
consciência. Por conseguinte, se não quisermos dizer que a Igreja
perdeu os dons da fé e do intelecto com os quais construiu a fé do
tempo pretérito, é licito crer que com os mesmos meios poderá edificar a
fé do tempo futuro, explicando seu princípio fundamental da dupla
revelação de Deus no mundo, ou a noção religiosa do Deus vivo e de
Cristo Deus.
2. Do mesmo modo que o dogma cristológico, evoluiu também o dogma
teológico, até culminar com a fé em Deus trino sem a multiplicação de
Deus. E, embora este dogma pareça constar de noções contraditórias, nem
por isso se deve pensar que se tenha acomodado menos ao senso
religioso do qual teve origem. Com efeito, um defeito de lógica e de
consistência racional que é princípio de ruína nos sistemas filosóficos
é o princípio em teologia antes sólido e duradouro, segurança de
ortodoxia, quando não percebe mais a conexão e a concordância das suas
afirmações, proclama o mistério. Efetivamente, assim aconteceu com a
encarnação, quando foi definida a dualidade das naturezas na unidade do
sujeito; assim também com a trindade, quando definitivamente prevaleceu
a consubstancialidade das três pessoas.
3. O mesmo modo de evolução verifica-se no dogma da graça e no dogma
da Igreja. Mas esses dois dogmas germinaram no Ocidente conforme o
gênio próprio dos latinos; enquanto, por outro lado, o dogma teológico
teria uma terra propícia e fácil de cultivo no Oriente, onde a mente
grega se inclinava mais às especulações metafísicas.
Mas além desses dogmas observar-se-á que as determinações do
princípio de autoridade na Igreja não se apóiam na interpretação
literal e lógica do texto, (Mt. XVI-18, XVIII-15 etc), porque não sobre
o texto mas sobre a fé viva foi fundada a Igreja, e por essa fé, não
pelo texto, subsiste, senão enquanto a fé se utiliza dos textos,
interpretando-os, e neles considerando a expressa vontade do seu Cristo,
que não é o Cristo histórico, mas o Cristo idéia, ou o Cristo místico.
Com efeito, é certo que Jesus, que estava persuadido da iminente
consumação do século, não tinha cogitado nada sobre um governo
eclesiástico a ser instituído na terra. Mas após a instituição de tal
governo, por causa do surgimento da exigência daquela suprema lei que é
a conservação da sociedade, imperceptivelmente introduziu-se uma
organização hierárquica sob o primado do bispo de Roma e acomodaram-se
ao mundo que perdurava coisas que Jesus não tinha dito senão em vista
do iminente fim do mundo.
Por conseguinte, o presente regime da Igreja Romana, semelhante ao
regime militar, sob o influxo das contingências ou a menos das
circunstâncias recebeu sua determinação. E como por outra parte, nos
mais graves incômodos ofereça fácil oportunidade, ( desse modo são a
opressão dos indivíduos, e a obstrução do progresso cientifico, e
geralmente todas as formas de livre exame), com direito e razão pode-se
perguntar se a mesma Igreja, que até aos extremos limites exagerou o
princípio de autoridade, dentro em breve não se verá obrigada a atenuar
a forma quase despótica de seu governo; e isto à maneira dos governos
humanos que em nossos dias estão coagidos a abolir tal forma de
governo. Ao contrário, trata-se de conjectura muito razoável, que em
futura democracia, que já se prepara, os bispos já não serão poderosos
aos olhos dos homens, mas nada perdendo dos direitos do seu ministério
(que então reassumirá a primitiva e essencial razão dos seus ofícios),
terão um modo de agir com os fieis mais conforme à fundamental
igualdade e à dignidade pessoal de todos os cristãos.
4. O sistema sacramental também observa a geral condição da
evolução, e mostra claramente o constante esforço do cristianismo para
com o seu espírito penetrar e como que impregnar toda a vida do homem,
do nascimento até a morte.
E com efeito, a Igreja primitiva não tinha ainda senão dois
sacramentos, ou seja, o batismo e a eucaristia, que nesse sentido podem
ser ditos instituídos por Cristo e precisam ser considerados.
Certamente, a instituição do batismo deve ser atribuída ao Cristo da
fé, não ao da história. Pois sobre o batismo temos certas informações
no quarto evangelho, como aquela passagem de Jo. III-5: Quem não
renascer etc., bem como aquelas passagens em que se lê que Jesus
batizava, Jo. III-22, IV-1. Mas freqüentes vezes já foi dito que no
quarto evangelho não se ouve senão a voz da consciência e da fé
cristãs. Ao contrário, a respeito de outras passagens que se encontram
nos sinóticos, como aquela de Mateus XXVIII-19: Batizando-os em nome do
Pai e do Filho e do Espírito Santo, deve observar-se que se atribuem a
Cristo ressuscitado, o qual está fora de toda ordem concreta da nossa
realidade. Ademais, tão categórica e distinta enumeração das três
pessoas, possível apenas no quarto evangelho, não pode encontrar-se no
primeiro senão como glosa inserta sob o influxo do uso cristão. De modo
que o historiador, com direito e razão, afirma que o primeiro dos
sacramentos cristãos nasceu com a comunidade cristã por imitação dos
costumes judaicos. Do mesmo modo, porque é a comunidade que determinou
as condições em que se deve administrar o batismo, também é a
comunidade que tornou o batismo necessário e lhe anexou todas as
obrigações da profissão cristã. Não obstante, na perspectiva da fé,
pode dizer-se que o batismo foi instituído por Cristo, pois o que
ordenou a comunidade foi querido pelo Espírito que a governa, e por
conseguinte pelo Cristo imortal que dá o Espírito.
Igualmente, com mais razão, aplica-se o mesmo à confirmação, que no
cristianismo primitivo ainda não se distinguia formalmente do batismo.
Embora seja licito à teologia admitir uma distinção virtual que foi
reduzida em ato conforme a indigência da comunidade, por autoridade da
Igreja na qual vive Cristo.
Mas a respeito do outro sacramento que tinha a Igreja primitiva,
isto é, a eucaristia, deve pensar-se como acerca do batismo. Com
efeito, na narração paulina da última ceia (I Cor. XI), que é a mais
completa de todas, é difícil distinguir o que talvez seja próprio da
primitiva tradição, daquilo que pertence a um comentário
teológico-moral do apóstolo. Pois Paulo é um teólogo da morte redentora e
é manifesto que interpreta segundo sua própria teoria da redenção
universal a ceia comemorativa da morte. Ademais, parece bastante claro
que aquelas palavras: Este é o meu sangue do novo testamento que por muitos será derramado, foram acrescentadas pelo redator do segundo evangelho a uma narração mais simples que antes dizia assim: E
enquanto comiam, tomou Jesus o pão e benzendo-o partiu, e deu-lhes
dizendo: Tomai, este é meu corpo. E tendo tomado o cálice, rendendo
graças, deu-lhes e beberam dele todos. E disse-lhes: Em verdade vos
digo que já não beberei desta videira até aquele dia em que o beber de
novo no reino de Deus. E esta narração concorda com a narração de
Lucas, sem os acréscimos que da primeira epístola aos Coríntios foram
depois transladados. Com efeito nessa mais breve narração está
insinuada a idéia de uma morte próxima, mas não a idéia de expiação, e
nada assinala uma renovação da ceia fora do convívio messiânico no
advento do reino celeste. De modo que a origem da eucaristia se
apresenta ao historiador nas mesmas condições da origem do batismo,
salvo apenas duas diferenças. A primeira é que se relaciona com a
memória da determinada e precisa circunstância do último banquete de
Jesus com seus discípulos. A outra é que melhor se percebem os
acréscimos nos quais a memória da última ceia de certo modo se encarnou
na ceia da comunidade apostólica, isto é no sacramento da eucaristia.
De resto, a fé na presença real evoluiu ao mesmo tempo que a fé em
Cristo ressuscitado, no Cristo imortal, no Cristo-Espírito, e teve sua
raiz em grande parte naquelas visões em que Jesus aparecia redivivo
partindo e dando o pão a seus amigos.
Mas, ao contrário, a palavra do Cristo joânico a respeito da
remissão dos pecados (Jo. XX-23) não concerne diretamente ao sacramento
da penitência. A teoria que põe em três atos do penitente a matéria, e
na absolvição a forma do sacramento, não tem origem apostólica. A
confissão dos pecados cometidos após o batismo não foi formalmente
prescrita por Cristo. A primeira idade cristã não conheceu como
sacramento a confissão privada feita apenas ao sacerdote. A absolvição
eclesiástica não foi primitivamente tida como sentença judiciária.
Com efeito, na verdade, a Igreja dos tempos primitivos não teve
idéia do cristão pecador e reconciliado, mas só pouco a pouco essa
noção foi introduzida, ao mesmo tempo com aquela noção da segunda tábua
após o naufrágio. Todavia, ainda que o texto evangélico da potestade
das chaves se refiram principalmente ao batismo, mesmo assim supõem na
Igreja a consciência de uma potestade ilimitada para remissão, que, com
o passar do tempo, deu origem à duplicação do batismo em sacramento da
penitência. E esta origem é legítima na perspectiva da fé, pois
apresenta certo aspecto do Cristo que vive e do Espírito que age na
Igreja desde o início. Porque neste sentido o historiador pode admitir
que nada há na presente disciplina da penitência que seja estranho à
instituição de Cristo.
Igualmente, como parece que Jesus prescreveu, ou certamente permitiu
que se fizessem nos enfermos unções de óleo juntamente com algumas
orações para sua recuperação ou saúde, este uso continuando após Jesus
resultou finalmente no sacramento da extrema unção.
Não diferente é a origem do sacramento da ordem, pois, na medida em
que a ceia assumia pouco a pouco o caráter de ato litúrgico, aqueles
que costumavam presidi-la adquiriram o caráter de sacerdotes. Além
disso os mais velhos (daí vem o nome de presbítero), que nas
assembléias cristãs exerciam a função de velar (daí o nome de bispo),
foram instituídos pelos apóstolos para satisfazer a necessidade de
organização nas comunidades cristãs, ou ao menos para a perpetuação da
missão e da autoridade apostólica. O ministério deles coexistia com o
ministério do apostolado, e em seu lugar depois, conforme a
necessidade, de fato sub-rogou-se. Mas a distinção entre bispo e
presbítero veio mais tarde. E todas essas coisas são obras do Espírito
na Igreja; mas instituição de Cristo, para quem crê em Cristo.
Portanto, do primeiro ao último nada mais evidente que a idéia geral
da instituição sacramental, segundo se enuncia nos decretos do
Concílio de Trento, não é representação histórica daquilo que fez Jesus
e sentiu a Igreja apostólica, mas mera interpretação tradicional do
fato que só para a fé tem autoridade e valor.
Daí também consta que a época em que a Igreja determinou os sete
sacramentos ( por volta do século XII) seja apenas certa fase
particular da evolução sacramentaria e que tal evolução absolutamente
não chegou a seu último término, pois não poderá ter fim senão com a
própria Igreja.
Ademais, no futuro os símbolos sacramentais poderão até não ser
considerados como indignos da majestade de Deus, na medida em que, bem
entendido, não se interpuserem entre Deus e o homem como instrumentos
de santificação, mas apenas como evocações na mente do homem da
perpétua presença benfazeja de seu Criador.
§ 4
1. Conclui-se, pois, que a fé não tem mansão permanente na terra,
ainda que precise sempre de tabernáculos transitórios. Conclui-se,
sobretudo, que em vão se esforçariam por retê-la em formas já
antiquadas, que, acomodadas a outra mentalidade, não poderão ser senão
venerandos monumentos de tempo passado.
Com efeito, o novo estado da cultura do espírito humano reclama por
toda parte nova evolução. Naturalmente, nessa nova evolução a Igreja
terá de fazer apenas o que fez desde o início. Pois sempre, com
admirável flexibilidade, se adaptou ao progresso, renunciando ao antigo
sentido dos dogmas e substituindo-o pelo novo, congruente com os novos
tempos.
E não vale dizer que a Igreja católico parece não conhecer a
existência dessa sua mutação nos séculos pretéritos, mas, ao contrário,
sob anátema no Concílio do Vaticano condenou as opiniões que a
sustentavam. Assim, por exemplo, dizer que não chegou à consciência de
sua evolução e ainda não tem teoria fixa acerca da filosofia de sua
própria história. Disto tudo resulta que na Igreja só resta uma coisa a
evoluir, e esta é a idéia ou noção de evolução.
2. Conclui-se, ademais, que são coisas completamente distintas, a fé
e a história. Pois a história diz respeito aos fatos, mas a fé diz
respeito às idéias que conforme a ocasião dos fatos evoluem, e num
movimento continuo progridem rumo ao sumo ideal. Distintos também são
os campos de teologia e os da crítica. Ao teólogo compete, com efeito,
definir a forma da verdade cristã que existe agora; mas ao crítico
compete investigar outra forma que estava na origem. Pois sem paradoxo
pode dizer-se que realmente não há nenhum capítulo da Sagrada Escritura,
do início do Gênesis até ao fim do Apocalipse, no qual se contenha uma
doutrina idêntica à presente doutrina da Igreja a respeito do mesmo
objeto. E por isso tampouco não há nenhum capítulo que tenha o mesmo
sentido para o crítico e para o teólogo.
Por conseguinte, é impossível que o crítico nunca contradiga o
teólogo e vice-versa, a não ser que se mantenha cada um na sua própria
esfera; impossível também, pelo mesmo motivo, que a crítica não esteja
às vezes em oposição à fé. E a razão é que nenhuma oposição é possível
onde nenhum ponto de junção é possível, conforme se deve supor no
presente caso. Se, realmente, a fé não diz respeito aos fatos, mas só
aos conceitos, e certamente segundo a forma contemporânea da evolução,
que é completamente diversa da forma que tinham as concepções dos
tempos passados; se, ademais, a crítica não julga senão acerca dos
fatos ou das formas que tinha a fé nos séculos precedentes: claro é que
o fiel nunca concorre no mesmo tempo com o crítico. O crítico poderá
coexistir no mesmo homem com o fiel, e seja qual for a opinião do
crítico, o fiel permanecerá na pacífica posse de sua fé.
E isso se dará tanto mais facilmente, pois o fiel, por sua parte,
nunca adere de coração a alguma fórmula determinada, mas sempre com sua
intenção adere à verdade absoluta e ignorada que a fórmula imperfeita e
relativa proposta pela Igreja figura. Realmente, aderir à
fórmula como tal, com assentimento de fé divina seria a mesma coisa que
aderir às suas inevitáveis imperfeições; e do mesmo modo proclamar uma
fórmula imperfectível e adequada ao mesmo tempo, embora não seja nem
possa ser absolutamente verdadeira. Portanto, o católico pode crer na
autoridade da Igreja e naquilo que a Igreja ensina, mas nem por isso
pensa que as fórmulas eclesiásticas expressem o seu objeto com tanta
perfeição, de maneira que não haja nada a ser corrigido por via de
interpretação.
§ 5
Até hoje, portanto, se tinha pensado que todo o objeto de nossa fé
fosse algo sólido consistente na ordem da realidade objetiva,
notificado ou atestado a nós por Deus revelador. Mas nisto se terá
enganado, e já é tempo que se saiba que esse objeto não passa de um
complexo de idéias que a mente humana produziu e até agora elaborou.
Cristo Deus é idéia. Cristo ressuscitado dos mortos é idéia. O mistério
da Trindade é idéia. Idéia é a presença real sob as espécies
sacramentais. Idéia é a bem-aventurança eterna com todas as promessas
da vida futura, de maneira que já não em terra firme dos vivos, mas nas
concepções sujeitas à indefinida evolução se deve fixar aquela âncora
da esperança, que antes, por causa de excessiva simplicidade, com
ilusão se pensava chegar até ao interior do Santo dos Santos onde Jesus
precursor entrou para nós, isto é o Cristo real e histórico.
Até hoje pensava-se que no referido objeto da nossa fé muitos fatos
como tais se continham. Digo fatos certamente históricos conforme
atestados pelo testemunho humano da história, mas pertencentes
completamente à fé divina conforme revestidos do mais alto e mais firme
testemunho de Deus. Novamente enganava-se, pois os fatos como fatos não
pertencem e nunca podem pertencer ao objeto da fé. Porque se a paixão,
a crucifixão e a morte de Jesus, por exemplo, estão enumeradas entre
outros artigos da fé, é porque somente pertencem à ordem da fé, na
medida em que são afirmadas pelo sentimento religioso e na construção
de um sistema ideal são introduzidas. Entretanto, a objetividade
material desses fatos é objeto apenas do conhecimento histórico;
coloca-se exclusivamente sob o único juízo da história.
Ate hoje pensava-se que o Evangelho fosse um livro de absoluta
inerrância, no qual a sincera figura de Nosso Senhor Jesus Cristo, cuja
benignidade e humanidade se manifestaram a todos, ensinando- nos a
renunciar à impiedade e aos desejos mundanos, a fim de viver sóbria,
justa e piamente neste mundo. Mas aqui também se trata de um estilo
anacrônico. João, com suas místicas ficções, desfigura completamente o
Jesus real. Ao contrário, os sinóticos tem tantas coisas misturadas,
que se torna dificílimo à critica distinguir as narrativas genuínas
das não genuínas. Sem que se contestem as autenticas e indubitáveis
palavras do Salvador, não deverá, para o futuro, procurar uma regra
certa da verdade e da santidade. Talvez se pensasse que fosse boa a
oração que o Senhor Jesus ensinou. Mas agora se deve saber que a oração
dominical, em algumas de suas partes, dá margem à critica não menos
que a oração à Santo Antonio de Pádua para recuperar objeto perdido e
que, tomada no rigor de sua primitiva e histórica significação, é
subversiva da economia social.
Até hoje pensava-se que nossa religião, a constituição da Igreja, o
sacrifício e os sacramentos cristãos fossem de instituição e direito
divinos. Mas aqui também é necessário que se renuncie à pia
credulidade, ou certamente que se mude por completo a noção de direito
divino que antes se concebia. Com efeito, todas essas coisas são
invenções da comunidade, aspirações da comunidade, prescrições da
comunidade, imposições da comunidade. Mas como, certamente, nada impede
que se considere a comunidade na qual age e vive o espírito do Cristo
místico, se neste sentido for do agrado julgá-la uma instituição
sobrenatural, é-se livre para consolar-se com tais palavras.
Até hoje acreditava-se na sinceridade dos católicos. Pensava-se que
católico fosse aquele que com o coração sentia o que professava com a
boca, como diz aquela passagem do apóstolo: Com o coração crê-se para a justiça, mas com a boca se faz a confissão para a salvação.
Errava-se. Pois, enquanto se professa espontaneamente a fé católica,
enquanto se diz mantê-la com veracidade, enquanto se promete
solenemente, se consagra e se jura conservá-la íntegra e imaculada até o
último sopro da vida, com essas palavras não se adere à fórmula que
com a boca se pronuncia. Pois ouça-se de novo: Fiel em sua intenção
adere à plena e absoluta verdade que figura a fórmula
eclesiástica. Mas aderir à fórmula eclesiástica como tal, com
assentimento de fé divina seria a mesma coisa que aderir à suas
inevitáveis imperfeições e do mesmo modo proclamá-la imperfectível e
adequada, embora seja inadequada e imperfeita”. Que significa isto? Tu
és mentiroso? És perjuro? És hipócrita? E certamente, quanto ao
passado, por uma escusa sem dúvida, dirás que não ainda não tinhas
chegado à consciência de tua hipocrisia. Mas para o futuro, agora
mostras-te solícito. Mas não há nada a temer. Realmente, não foi em vão
que já fomos instruídos, por meio das formas literárias da Sagrada
Escritura, que no Oriente mentira não é mentira. Estende, pois, um
pouco a doutrina do Oriente ao Ocidente, ao menos no que concerne à
matéria da fé, e estarás seguro de todo escrúpulo.
Até hoje considerar-se-ia um crime consentir nas doutrinas dos
heréticos ou daqueles que antigamente eram tidos como tais. Mas vê-se
que era um absurdo preconceito. Acaso não é com o mesmo direito e o
mesmo título da confissão católica romana que a confissão luterana, ou
sociniana ou ariana ou maometana poderá representar aquela absoluta e
ignorada verdade a que só por intenção sempre se adere? Portanto, é de
pouca importância qual a confissão que se professa. Tu és católico?
Torna-te protestante se quiseres. Antes pelo contrário, nada obstará
ser católico e protestante ao mesmo tempo, pois em nada prejudicará à
profissão católica a simultânea profissão luterana, anglicana,
calvinista e assim por diante. E, finalmente, não poderá haver alguém
que em sua intenção dê adesão à única verdade desconhecida que no
futuro talvez deva ser revelada? Portanto, na comunhão de fé já nos
unimos com todas as confissões que há no mundo, e já brilha a aurora
daquela idade na qual haverá uma só religião de toda humanidade,
abolidas para sempre todas as divisões que havia produzido a antiga
superstição.
Notas:
[1] Clemente de Alexandria, Cohort. ad Gentes.
[2] Mt. 28, 16; Mc. XVI, 7; Cor. XV, 6
[3] Jo. 16, 12.
[4] 2 Tim. 1, 13.
[5] 2 Tim. 2,2 e Tit. 1,5.
[6] 1 Tim. 6,14.
[7] Jo. 14, 16.
[8] Bellarm. 1. 4 De verbo Dei, c. 4.
[9] Bellarm. 1. 4 de Verbo, c. 5.
[10] Irineu, 1 3, c. 2.
[11] Iren. 1. 3, c. 3-4.
[12]
Por isso mesmo não parece admissível o que dizem alguns: A tradição em
sentido objetivo é a regra remota da fé, mas em sentido formal é a
próxima. Com efeito, se se trata de regra, pelo que formalmente é
regra, não é necessário considerar o que se deve crer, mas o que
dirige a crer pela proposição do objeto a ser crido. E isto é sempre a
mesma palavra, tanto a escrito quanto a oral, e com maior razão a
Escritura ou Tradição, entendida sempre em sentido formal, não
objetivo. Quanto à distinção entre regra remota e regra próxima,
falar-se-á mais abaixo.
[13] Apud Franzelin, thes., 10.
[14]
O cardeal Franzelin na tese 9 reduz a quatro categorias os auxílios
para a íntegra conservação da doutrina: 1) Não só se observou sempre
que só se elegesse bispo depois que constasse por testemunhos certos a
sinceridade de sua fé, mas também, e sobretudo, os bispos das maiores
sedes continuamente expunham por cartas a seus irmãos e principalmente
ao Romano Pontífice uma distinta profissão de sua fé. “ A razão de tal
instituição é evidente por si, e com elegância declarada por São
Gregório Magno, 1, 7, epist. 4: “Pois como entre nós trocamos a
confissão de nossa fé, que mais faremos na santa Igreja de Deus, se não
untamos a arca com betume, para que não entre a onda do erro? Em
segundo lugar, como os bispos eram zelosos não só individualmente mas
também em conjunto, para que a fé de cada um fosse a mesma que a da
totalidade, evitava-se cuidadosamente que da fé comum não houvesse
nenhum dissidente que aparentasse estar em comunhão com a Igreja, de
maneira que eram vigilantes para que a mesma fé dos bispos fosse
acolhida em todas as sedes. Disto resulta que a sequência dos bispos
ortodoxos nos arquivos de cada uma das igrejas se conserva com todo
zelo, retirando-se aqueles suspeitos de defecção da fé da Igreja
universal. Em terceiro lugar, quando em alguma igreja uma novidade
doutrinária contra a fé tradicional começava a insinuar-se, competia ao
bispo, não só reprimi-la, mas comunicar o fato aos outros bispos,
sobretudo ao Romano Pontifice, a fim de que por uma sentença comum
fosse afastado o erro fulminado pela Igreja. Em quarto lugar, em caso
extraordinário, onde o perigo de novidade iminente parecia mais grave,
organizavam-se como uma proteção eficaz os concílios dos bispos ou
das províncias ou de toda a Igreja.
[15] Belarmino, 1. 4. De Verbo Dei, c.4
[16] Cf. proemium secundae partis tratactus de Ecclesia.
[17] Enchir. N. 1642.
[18]
“Na pregação apostólica podiam ser propostas algumas noções universais
nas quais se continham implicitamente noções singulares que deveriam
ser explicadas pelo magistério da Igreja à medida que surgissem as
dúvidas com o passar do tempo. Assim, por exemplo, bastava a doutrina
acerca da necessidade da graça para toda boa ação na via da salvação,
para que posteriormente, contra os semipelagianos, se definisse a mesma
necessidade para o início da fé. Poderiam estar contidos complexos,
cujos elementos deviam ser explicados: Cristo é Deus e homem; de
maneira que era necessário definir muita coisa acerca de ambas
naturezas. Suprema é a potestade de Pedro, como fundamento visível da
Igreja e centro da unidade; disto resulta a necessidade de explicar
vários direitos e deveres em particular.” Franzelin, De trad., thes. 23.
[19]
“Podiam alguns dogmas ser propostos mais em função prática e consoante
o costume das igrejas, do que em forma de clara doutrina e instante
pregação. Com o tempo, surgiu a necessidade de defini-los solenemente.
Assim, por exemplo, na controvérsia sobre o poder de administrar
validamente os sacramentos fora da Igreja e na história do cânon dos
Livros Sagrados.” Id.,ibid.
[20]
Podiam na pregação apostólica estar contidas algumas verdades mais
simplesmente enunciadas, das quais seria necessário posteriormente, no
confronto com as heresias, formular uma declaração mais estrita. Desde
os padres e concílios definiu-se o modo de falar e de estabelecer a
fórmula eclesiástica como característico da fé.Id.,ibid.
[21] Franzelin, De Tradit,, thes. 23.
[22] I Tim. I-3
[23] Gal. I-7.
[24] Lanfrancus, de corp. et sang. Domini, c. 23.
[25]
August. 1,I, c. Iulianum, n. 14; 6, n. II e em outros freqüentes
lugares. – Santo Agostinho demonstrou em todos os lugares que
mencionamos e em muitos outros que essa prática da Igreja era
suficiente para estabelecer o pecado original. Ele ataca Juliano
pessoalmente nesse ponto. Sendo filho de um homem santo que depois foi
elevado ao episcopado, é de crer que ele havia recebido desde o berço
todos os sacramentos ordinários. Com essa premissa Santo Agostinho lhe
diz: “Tu foste batizado criança, foste exorcizado, foi expulso de ti o
demônio pelo sopro. Menino ruim! Tu queres tirar de tua mãe o que tu
mesmo recebeste, e os sacramentos pelos quais foste gerado…” Dessa
sorte, a tradição estava fundada sobre atos incontestáveis, antes
mesmo que se fosse obrigado a entrar na discussão das passagens
particulares, e assim essa discussão era absolutamente desnecessária.
Bossuet, Defense de la Tradition, 1, 8, c. 2.
[26]
August., 1 c. Juliano, n.13-14; 1. 6, n.22 etc. – “O segundo princípio
de Santo Agostinho: Quando por abundância de direito se quiser entrar
nesta discussão particular, é preciso contentar-se com o testemunho da
Igreja do Ocidente. Pois ainda sem pressupor nessa Igreja nenhuma
prerrogativa que a torne mais digna de crédito, basta para Santo
Agostinho que fosse certo que os ocidentais eram cristãos, que não
houvesse senão nenhuma fé em toda a terra e que esta fé fosse a cristã.
De onde concluía este padre que essa parte do mundo devia bastar a
Juliano para convencê-lo: não que se devesse desprezar os gregos, mas
porque não se podia pressupor que eles tivessem uma outra fé que os
latinos sem destruir a Igreja dividindo-a. Entretanto, Santo
Agostinho insinuava a manifesta vantagem da Igreja Latina…Era a honra
do Ocidente de ter na sua cabeça e no seu seio a primeira sé do mundo.
Santo Agostinho não deixava de fazer valer nessa ocasião tal primazia,
quando, citando, após todos os padres, o papa Santo Inocêncio observa
que se ele era o último em idade, ele era o primeiro pela sua posição,
posterior tempore, prior loco. Por conseguinte, o primeiro em
autoridade. É por isso que, na sequência, recapitulando o que ele
havia dito, ele o coloca à frente de todos os padres que ele havia
citado: à frente, digo, de São Cipriano, de São Basílio, de São
Gregório Nazianzeno, de Santo Hilário e de Santo Ambrosio, sem nomear
os outros que estavam compreendidos entre esses. É, pois, o segundo
princípio de Santo Agostinho que a autoridade do Ocidente era mais que
suficiente para autorizar um dogma de fé.” Bossuet, ubi supra, c.3.
[27]
Agostinho, 1, I, c. Iulian, n. 15-16. – “O terceiro princípio: Para
aproximar-se dos orientais, que Santo Agostinho não estimava menos que
os latinos: é que para conhecer seus sentimentos, não era necessário
citar muitos dos seus autores. Ele contenta-se sobretudo com São
Gregório Nazianzeno, cujos discursos, diz ele, célebres sob todos os
aspectos pela graça que neles rescende, foram traduzidos para o latim. E
um pouco adiante diz: “Credes, diz ele, que a autoridade dos bispos
orientais seja pequena só nesse doutor? Mas é uma tão ilustre
personagem, que ele não poderia ter falado como o fez, se ele não
tivesse extraído o que ele dizia dos princípios comuns da fé que toda a
gente conhecia, e não haveria uma estima e uma veneração por ele se
ele não tivesse reconhecido que ele não tinha dito nada que não viesse
da verdade que ninguém pode ignorar.” Como se vê, longe de dividir os
autores eclesiásticos, Santo Agostinho fazia ver que, não podendo ser
contrários em uma mesma fé, um só doutor, eminente por sua reputação e
por sua doutrina, bastava para patentear o sentimento de todos os
outros.” Bossuet, IBID. c. 4.
[28]
Agostinho, 1, I. 1, c. Iulian n.º 19-34. – “Para julgar os sentimentos
da antiguidade, o quarto e último princípio de Santo Agostinho diz que o
sentimento unânime de toda a Igreja presente é sua prova; de sorte
que, conhecendo o que se crê no tempo presente, não se pode pensar que
se tenha podido crer diferentemente nos séculos passados. É por isso
que Santo Agostinho, após ter feito a pergunta a Juliano sobre São
Gregório Nazianzeno e São Basílio que se acaba de ver, diz: “Queres
mais, isto não te basta? e acrescenta: Dizes que não te basta; leva tua
temeridade até ao ponto de dizer: “Temos quatorze bispos do Oriente,
Eulogo, João Amonião e outros que participaram do concilio de Diospolis
na Palestina, que teriam todos condenado Pelagio, se ele não tivesse
abandonado sua doutrina, que, portanto, o tinham condenado e
professavam a fé do resto da Igreja e serviam de testemunhas, não
somente da fé do Oriente, mas ainda aquela de todos os séculos
passados.” Ibid. c. 5.
[29]
“As maneiras, conforme vimos, como os antigos exprimiram a geração do
Filho de Deus e sua desigualdade com o Pai encerram idéias muito falsas
e muito diferentes das nossas… Todos sabem como esse mistério (da
Trindade) ficou informe até o primeiro concílio de Nicéia…Os antigos
doutores, e sobretudo os do terceiro século, e mesmo aqueles do quarto
século, confundiram o Filho e o Espírito Santo; eles nos fizeram um
Deus convertido em carne segundo a heresia atribuída a Eutiques e não
foi senão por meio de longas disputas que enfim essa verdade (da
encarnação) chegou à perfeição…A graça que se considera hoje como um dos
mais importantes artigos da religião cristã era completamente informe
até ao tempo de Santo Agostinho. Antes desse tempo, uns eram estóicos e
maniqueus, outros eram puros pelagianos; os mais ortodoxos eram
semipelagianos” Ita Jurieu, apud Bossuet Premier avertissement sur lês
lettres de M. Jurieu.
[30] Id. De praedest. SS. Nº 27.
[31]
Nota-se, pois, a distância entre essa afirmação e a posição daqueles
que dizem que as heresias iniciaram o progresso, porque os montanistas
iniciaram o ascetismo, os gnósticos, a ciência teológica, os
sabelianos, a concepção católica da trindade etc. Com efeito, tal
constitui verdadeira blasfêmia. Assim, nas heresias não se reconhece
mais que causa ocasional. Realmente, a heresia ariana deu
lugar à definitiva consagração do vocábulo consubstancial, pelo qual se
elimina toda possibilidade de uma compreensão falsa e se exprime a
distinção das pessoas na numérica unidade da essência, com tanta
simplicidade e claridade. Igualmente a heresia nestoriana trouxe a
necessidade de purificar os conceitos de natureza, pessoa, subsistência
e de atribuir nomes a cada um. Do mesmo modo os protestantes
obrigaram-nos a refutar-lhes as negações com maior erudição bíblica; os
racionalistas a projetar maior luz sobre os argumentos da revelação e
assim sucessivamente. “Muita coisa, diz Santo Agostinho em De Civ. Dei, 1,16, c.2,
referente à fé católica, quando criticada com astuta agitação dos
hereges, para que possa ser defendida contra eles, é considerada mais
atentamente e conhecida com mais clareza e ensinada com mais instância; e
movida a questão pelo adversário, resulta a ocasião de aprender.”
[32]
Por ventura tratou-se perfeitamente da Trindade antes que ladrassem os
arianos? Porventura tratou-se perfeitamente da penitência antes que a
contradissessem os novacianos? Tampouco do batismo se tratou
perfeitamente antes que o atacassem os rebatizadores de fora…, por isso
aqueles que sabiam tratar dessa questão e solucioná-la esclareceram
as obscuridades da Lei, a fim de que não perecessem os débeis seduzidos
pelas questões dos ímpios, por seus sermões e disputas.” Agostinho.
Enarra. in Ps. 54, nº 22.
[33]
“Entre as muitas questões que os arianos costumam disputar contra a fé
católica, propõem-se sobretudo esta astutíssima maquinação quando
dizem: “Tudo aquilo que de Deus se diz ou compreende, não segundo
acidente mas segundo a substância se diz. Ora, uma coisa é ser não
gerado, outra é ser gerado. Portanto, diversa é a substância do Pai e
do Filho.” August. 1. 5 de Trin. C. 3 et álibi saepe.
[34]
Cf. Petavium de Incarn. Lib. 3, c. 2. Igualmente Cirilo de Alexandria,
epist. 39 ad Ioannem Antiochenum, (Migne, Patr. Gr. T. 77, col.174)..
[35] Cf. Santo Agostinho, l. c. Iulian. Nº. 22, seguintes – Et. L. 6. nº24-28.
[36] August. Enchirid. C. 32.
[37] Migne, Patr. Graec. Tomo. 5, col.671, seg.
[38] Migne. P. G. tomo 5, col. 651.
[39] Ibid.col. 722.
[40] Epistola circularis Ecclesiae Smyrnensis de martírio Policarpi, Ibid. col. 1039
[41] Ibid. col. 1454.
[42] Migne, P. G. tomo 10, col. 983, seq. – cf. col. 965. – Vide também São Basílio, de Espírito Santo, c. 29.
[43] Cf. Bossuet, Defense de La tradition, 1. 6, c. 10,seq.
[44] Migne, P. G. t. 6, col. 907.
[45]
Ibid. – Da mesma condição são as explicações que acrescenta Tertuliano
na Apologética contra os pagãos em defesa dos cristãos, c. 21:
“Aprendemos que o Filho é a Palavra de Deus, e gerado pelo pensamento, e
portanto Filho de Deus, e se diz Deus em virtude da unidade de
substância…Assim como o raio se estende do sol, a parte vem do todo,
mas o sol estará no raio, porque o raio é do sol, nem se separa da
substância, mas estende-se. Assim também do espírito procede o espírito,
e de Deus Deus, como luz acesa da luz, permanece íntegra e
indefectível matriz da matéria, ainda que daí se tire o sarmento de boa
cepa, assim também porque procede de Deus Deus é, e Filho de Deus,
etc.”. De Tertuliano, entretanto, não convém aproximar-nos com tanta
confiança. Realmente, a seu respeito vale em geral a censura de
Bossuet:”Tertuliano, o mais figurado, para não dizer o mais exagerado
de todos os autores.” E em outra lugar diz: “Seria necessário desta vez
esquecer esse duro africano, sem cometer um crime contra toda a Igreja
por causa das obscuridades de seu estilo e das irregularidades de seus
pensamentos.”
[46] Migne. P. G. t. 6, col. 611 seg.
[47] No mesmo sentido apud Irineu, l. 6, c.7.
[48] Migne. P. G. t. 10, col. 818, seg.
[49] Cf. Petavium, l.3 de Incarn. C. 2.
[50] August. L. I. C. Iul. nº 21-34.
[51]
Cumpre observar o progresso de Santo Agostinho nessa matéria, da qual
estava por Deus destinado a ser o doutor por excelência. Nela teve
primeiro um estado de simples fé, como se disse acima; no qual
perscrutava o fundo do mistério, mas ainda não adentrava na
consideração das dificuldades e tinha aquelas noções, que, embora
puras, ainda não podiam resistir aos assaltos das objeções. Daí ascende
a outro estado, quando começou, mas ainda imperfeitamente, a examinar a
matéria. O que fez por ocasião da exposição de certas proposições da
epistola aos romanos, onde primeiro caiu em dificuldade, depois em
opinião falsa, como ele mesmo diz na primeira Retratação, c. 23e em De
predestinação dos Santos c. 3. Todavia, saiu dessa falsa opinião
logo, antes que Pelágio dogmatizasse, por ocasião das questões que lhe
propusera o bispo Simpliciano de Milão. E já com compreensão perfeita do
dogma, tornou-se seu egrégio defensor contra Pelagio. – Observe-se
sobretudo que falva muito melhor da graça no primeiro estado do que no
segundo: “ Digno de nota nesse progresso é que ele falava melhor
conforme a abundância do coração sem examinar a matéria do que o fazia
examinando-a mas ainda imperfeitamente. O que não deve parecer
estrannho, pois, assim como foi dito, nesse primeiro estado, a fé e a
tradição falavam como sós, ao passo que no segundo era principalmente o
espírito. É um característico bastante natural do espírito humano dizer
melhor por essa impressão comum da verdade que quando examinando-a
parcialmente, embaraça-se em seus pensamentos. Há frequentemente um
grande desenlace para entender bem os padres, principalmente Origines,
em quem se acha a tradição completamente pura em certas coisas que lhe
saem naturalmente e que ele confunde de uma maneira terrível quando as
quer explicar com mais sutileza; isto ocorre muito ordinariamente antes
que as questões sejam bem discutidas e que o espírito a elas se
aplique inteiramente.” Bossuet, Defense de la tradition l.6, c.16.
[52]
A isto refere-se o que dizia Santo Agostinho aos pelagianos, 1. 2 c.
Iul. n. 34: “Ainda não existieis vós, de quem recebemos a disputa a
respeito do pecado original. Ainda não existíeis vós que dizeis que
em teus livros dizes: Porque a vosso respeito mentiremos à multidão, e
que sob o nome de pelagianos aterrorizaremos os homens…Certamente, tu
mesmo disseste que convém que todos os juízes sejam isentos de do ódio,
da amizade, da inimizade, da ira. Puderam encontrar-se poucos assim,
mas deve-se acreditar que Ambrosio e seus colegas, com os quais privei,
tiveram tais qualidades. Mas ainda que assim não procedessem nessas
causas a eles submetidas e entre as partes conhecidas, enquanto ai
viveram, para essa causa, entretanto, formaram juízo e procederam bem
quando a respeito dela proferiram sentenças. Não atenderam a amizades
nem conosco nem convosco, nem provocaram inimizades; nem se iraram
conosco ou convosco, nem se apiedaram de nós ou de vós. O que
encontraram na Igreja conservaram; o que aprenderam, ensinaram; o que
receberam dos padres, transmitiram-no aos filhos. Não tínhamos ainda
feito petição nenhuma contra vós perante esses juízes, e a nossa causa
já estava encaminhada para eles. Nem nós nem vós tínhamos sido
conhecidos deles e lemos em voz alta as sentenças deles a nosso favor
contra vós. Ainda não lutávamos contra vós, e com seus pronunciamentos
“vencemos”. Bossuet, ubi supra.
[53] Retirai, diz Bossuet, na Sixième avertisssement sur les lettres de Jurien, n
36, retirai do nome de ministro a inferioridade e a sujeição, só
restará no Filho uma pessoa subsistente, uma pessoa enviada que recebe
tudo do seu Pai…É assim que os antigos deram algumas vezes ao Filho de
Deus e ao Espírito Santo o nome de ministro do Pai, e não para
atribuir-lhes uma atividade desigual, porque isso se deve à miséria da
língua human e a essa ferrugem de que é necesário purificar os lábios
quando se quer falar de Deus. É por isso que esses santos doutores com
razão empregaram algumas vezes o vocábulo ministro, depurando-a como se
viu. Mas se algumas vezes eles a viram com essa imperfeição natural a
língua humana, eles a excluíram por isso mesmo dos discursos em que
falavam do Filho de Deus.” Por exemplo, a epistola a Diognetum, nº 7:
“Realmente, o mesmo Deus, que é onipotente e criador de todas as coisas e
invisível, do céu trouxe para junto dos homens a Verdade e a Palavra
santa e incompreensível, não do mesmo modo como alguém pudesse
compreender, pelo envio aos homens de algum ministro, ou anjo ou
príncipe, ou para qualquer lugar daqueles aos quais foi confiado nos
céus o cuidado daquelas coisas a ser administradas, mas o próprio
artífice e criador de todas as coisas pelo qual fez os céus, pelo qual
encerrou o mar em seus limites…à maneira como um rei que envia um filho
rei enviou; enviou como Deus. (Migne. Patrologia Grega. T. 2, c. 1175).
Cumpre notar outrossim que contra os sabelianos ou noecianos foi empregado esse vocábulo de ministro. Por sua vez, os sabelianos diziam que Deus operava por meio do Verbo, como o arquiteto por sua arte. Acontece que arte no arquiteto não é pessoa subsistente, mas acidente da alma. E de tal modo esses heréticos chamavam ao Verbo sabedoria, arte, idéia de Deus. Os ortodoxos repeliam tal sentido, dizendo que o Verbo era o ministro do Pai, e portanto, uma pessoa distinta do Pai. Mas essa altura da verdade divina, o discurso humano mal pode atingi-la sem feri-la em alguma parte. Por isso São Gregório diz: “Balbuciando tanto quanto podemos, façamos ressoar a glória de Deus.
Cumpre notar outrossim que contra os sabelianos ou noecianos foi empregado esse vocábulo de ministro. Por sua vez, os sabelianos diziam que Deus operava por meio do Verbo, como o arquiteto por sua arte. Acontece que arte no arquiteto não é pessoa subsistente, mas acidente da alma. E de tal modo esses heréticos chamavam ao Verbo sabedoria, arte, idéia de Deus. Os ortodoxos repeliam tal sentido, dizendo que o Verbo era o ministro do Pai, e portanto, uma pessoa distinta do Pai. Mas essa altura da verdade divina, o discurso humano mal pode atingi-la sem feri-la em alguma parte. Por isso São Gregório diz: “Balbuciando tanto quanto podemos, façamos ressoar a glória de Deus.
[54]
Quando Deus quis (são palavras de Hipólito), e da maneira que quis,
ele fez aparecer o Verbo…ele gerava o Verbo, e como ele o tinha em si
mesmo onde ele era invisível, ele o fez visível criando o mundo.
Gerá-lo assim não é outra coisa senão que fazê-lo aparecer
exteriormente. Isto não é um novo ser, nem nada de novo dentro do
Verbo. É o mesmo que um arquiteto que tendo em seu espírito sua idéia
como o plano interior de seu edifício, que ninguém via a não ser ele
mesmo em seu pensamento, torna-o visível a toda a gente, dá-o à luz por
assim dizer, e põe-no em dia quando começa a levantar o seu edifício.
Tal é este parto e esta geração do Verbo. Aí tudo concerne à criatura à
qual ele se torna visível, da mesma maneira que as perfeições
invisíveis de Deus são vistas em suas criaturas. O Verbo tampouco muda
como seu Pai, nessa manifestação. E esta manifestação é atribuída
especialmente ao Verbo divino, porque ele é a idéia eterna desse
arquiteto invisível. Acresce que, seguindo-se a comparação, como o
arquiteto fala e ordena e tudo se arranja á sua voz que não é senão
expressão e produção exterior de seu pensamento; assim Deus é
representado na Escritura como proferindo uma palavra, que não é outra
coisa senão seu Verbo manifestado e expresso exteriormente…Eis então a
explicação que havia prometido. Toda essa produção é apenas a
manifestação do Verbo; é a maneira pela qual se explicava então o que
chamamos agora a atividade exterior sem alteração e sem mudança do que
estava no interior.” Bossuet, ubi supra, n. 68, seg. Além disso, os
antigos apologistas expunham com maior prazer tal consideração porque
nela viam alguma analogia com as doutrinas platônicas, concorrendo para
uma exposição persuasível do altíssimo mistério, como acima se
observou a propósito de Atenagoras em sua Legationes pro christianis endereçada aos imperadores filósofos.
[55]
O sentido não é este: haver outro Deus sob o Deus criador do universo,
mas: outro, ou haver outra pessoa que é e se diz Deus, etc.
[56]
Vide apud Hilário, 1, 9 de Trin. n. 54, em que sentido do Filho
segundo é pessoa divina, se pode entender aquela passagem do
Evangelho: o Pai é maior que eu.
[57]
Quando se diz algo ser ou vir a ser por vontade, de duplo modo se
entende. De um modo, como o ablativo indica concomitância apenas, como
posso dizer que eu sou homem por minha vontade, porque quero realmente
ser homem. E deste modo pode dizer-se que o Pai gerou o Filho por
vontade, como por vontade é Deus, porque quer que ele seja Deus e quer
gerar o Filho.
[58] Migne. P. G. tomo 67, col. 583 seg.
[59] Migne, P. G. tomo 77, col. 174.
[60] Cf. Mt. iX; Mc. II; Luc. X; Jo. X, 37, XIV, 12, XV, 24; At. X, 37, seg. etc, etc.
[61] S. Thom. In III, D. 27, q. I, a. 2.
[62]
Diz-se apetite de duplo modo. Inato, que não consiste em alguma
operação, mas na mesma proporção ou conaturalidade de qualquer criatura
ao bem que lhe é conveniente segundo a exigência da própria condição.
Elícito, que consiste no ato da vontade e também é duplo, conforme
contenha dentro de si os limites do apetite inato, ou ao contrário os
ultrapassa, como se alguém apetecesse aquilo que reputa possível, e
possível não é, ou na verdade, embora absolutamente possível,
transcende entretanto sua condição. Do anterior, certamente, se pode
obter o argumento tanto em favor da possibilidade quanto em favor da
existência daquilo a que tal apetite, naturalmente na medida em que não
possa ser frustrada a ordem do autor da natureza, que o apetite deste
mostra. Do posterior, ao contrário, nada, absolutamente nada, porque
pode ser conduzido em qualquer criatura, segundo a imaginação de quem
apetece ou ambição de quem anela àquilo que está acima das forças da
natureza e dos auxílios devidos à natureza.
[63]
Leia-se o excelente livro de |Gregório |Bertrin: Histoire critique dês
evenements de Lourdes. Nele encontram-se os milagres com sumo rigor
critico narrados, milagres que Deus fez para a mentalidade moderna,
milagres dos quais com toda razão diz o autor em seu prefácio: “Eles
formam como um capítulo novo da apologia cristã” . Entre outras muitas
coisas ditas de forma conveniente que na discussão dos fatos se
encontram , com proveito leia-se o parágrafo sob o título: “Forças
desconhecidas”, pag. 190 e seguintes. Aí o autor responde à dificuldade
corriqueira sobre as forças desconhecidas da natureza, mostrando que
essas forças ocultas da natureza, que talvez depois venham a ser
descobertas, não podem estar em oposição às leis conhecidas por nós, e
portanto em vão se objeta quando se trata da distinção do milagre.
[64] Vide apud Bertrin, o. c. p. 233, seg. Les miraculées d’un romancier.
[65] S. T. 3ª pars. Q. 43, a. 2, ad primum.
[66] S. T. 3ª pars. Q. 15, a. 8.
[68]
Deve-se notar aqui que contra a certeza histórica dos fatos
evangélicos quanto à substância nada valem as dificuldades ou
antilogias que em alguns acidentes ocorrem. Prescinde-se delas, pois,
com razão em obediência à credibilidade da nossa fé.
[69] Agust. De Trinit. 1. I, c. 4.
[70]
Os críticos têm consciência de operar constantemente com hipóteses que
o exame dos textos torna mais ou menos prováveis, que ele pode tornar
seguros à medida que a matéria o comporta. A hipótese desempenha na
investigação histórica o mesmo papel que nas investigações propriamente
cientificas. A melhor é aquela que leva em melhor consideração os
fatos conhecidos e a eles se adapta com mais facilidade.” Loisy. Autour d’um petit livre, p. 35.
[70] P.7, primeira edição.
[71] O
conteúdo deste capitulo é quase todo ele extraído integralmente de
dois eruditos artigos de Guido Mattiussi Sj, sobre a imutabilidade do
dogma, publicados no periódico La Scuola cattolica (março de 1903 e seg.).
[73]
Realmente, com grande dificuldade se distingue esse conceito de
infalibilidade eclesiástica daquele que consta no primeiro esquema da
constituição acerca da doutrina católica proposto ao Concilio Vaticano:
“Afirma-se o carisma da infalibilidade da Igreja, mas no sentido de
que entre as várias sentenças sobre o significado do dogma prevaleça
aquela que em tal época seja a mais apta. Assim nessa sentença que
prevalece por definição da Igreja, concede-se que sempre há alguma
verdade, mas não uma verdade simpliciter, uma verdade acabada; de modo
que, com o passar do tempo para um ulterior estado das ciências se
torna necessária uma definição mais perfeita, porque aquele estado
anterior é inepto para o estado posterior da ciência. Assim, dizem, no
século V, devia-se excluir a separação das duas pessoas do homem Jesus e
do Filho de Deus. Mas a condenação dessa separação, conforme a
psicologia daquele tempo, supunha a unidade da pessoa de Cristo, e
assim foi definida uma hypostasis ou pessoa em duas naturezas. Mas
conforme a verdadeira filosofia da nossa época, dizem, já se devem
dizer duas pessoas, divina e humana, permanentes na mesma união, e
portanto não se deve entender uma unidade real da pessoa de Cristo, tal
qual até hoje se entendia, mas uma pessoa composta de duas pessoas,
etc.” Collect. Lac. P. 538.
[74] S. Tomás, I parte, q. 16, a. 1-2.
[75] Cf. Suma Teológica, I parte, q. 13, a. 3
[76]
“As concepções que a Igreja apresenta como dogmas revelados não são
verdades caídas do céu e guardadas pela tradição religiosa na forma
precisa em que apareceram primeiro. O historiador aí vê a interpretação
de fatos religiosos adquirida por um laborioso esforço do pensamento
teológico. Ainda que os dogmas sejam divinos pela origem e substância,
são humanos na estrutura e composição.” L1Évangile et l’Église, c. 4, §2.
[77] Augst. Serm. 32, n. 6.
[78] Acerca do ditado de Deus, ver De inspiratione Sacrae Scripturae. Parte I.
[79] Augustinus. Tract. I in Ioan. N. 1.
[80] Cf. Hilar. 1,.c. Constantium, n. 16; August. Tract. 97 in Ioan. n. 4.
[81] Vide no tomo primeiro de Sacramentis, prolegomenon ad Q.75, § 4.
[82]
Daquelas coisas que, em razão de sua natureza, são apropriadas pelos
sentidos, Platão estabelece algumas delas também em gênero definido
como causas exemplares, chamadas por ele idéias, às quais convenha a
razão de definição de ciência. Com efeito, além de todos os homens
existe o homem, além dos cavalos existe o cavalo; e no universo, além
de todos os animados, fala-se de certo animado carente de origem e de
morte ao mesmo tempo. E do mesmo modo podem ser expressas várias formas
de uma estatueta e muitas imagens de um mesmo homem: em suma, da idéia
dos corpos conhecidos por qualquer sentido, resulta uma força ingente
das naturezas: por exemplo de homem resultam todos os homens. Isto vale
para a natureza de todos os outros seres. Além disso, a idéia eterna
quer que exista certa essência que seja o principio e a causa de todas
as coisas para que possam ser tais como ela mesma é. Assim como as
idéias parciais precedem os corpos sensíveis como um arquétipo do mesmo
aquela idéia belíssima e perfeitíssima, que em seu seio abraça todas
as coisas, afirma-se como a causa exemplar desse mundo. É copiando-o a
partir desse modelo que Deus, o demiurgo, o construiu em virtude da
sua preciência, mediante a reunião de todas as substâncias..”É assim
que Didimo, (citado por Eusébio. Praep. evang. 1, II. C. 23) resume a
teoria de Platão.
[83] Cf. O belíssimo comentário a essa passagem no capítulo 4 Contra Gentiles c. II.
[84] Cf. Atenagoras, Leg. Pro Christianis, n. 10. Ou Jsustino, Diálogo com Trifo , n. 61.
[85] Apud Eusebio, 1, 7 Praep. evang. C. 13.
[86] Ibid, in principi.
[87]
Plotino considera o primeiro dos três deuses o sumo e perfeito, a quem
chama….(grego), mente por si mesma mais excelente. Ao segundo
chama….(grego) mente posterior, gerada pelo primeiro, e a sua imagem.
Finalmente, ao terceiro considera como alma gerada pela segunda mente e
é a sua …(grego). Acrescenta que a mente foi gerada pelo primeiro e
gerou todas as coisas existentes, inclusive toda a beleza das idéias e
todos os deuses existentes. Então explica a sentença de Platão….,e diz
que o sumo Deus Pai é a causa (…grego), isto é, da causa ou princípio,
ou da Mente e do Demiurgo; este na verdade cria a alma. Diz ainda que o
Pai é aquele…(grego), isto é, o mesmo bem, do qual (grego) também a
idéia se propaga; da mente, na verdade, alma”. Petavius, 1. I de Trin.
c. 1.
[87]
Onde se fala de Deus Filho. Pois no nome de Filho está encerrada a
mesma propriedade que no nome de Verbo, conforme diz Santo Agostinho.
Pelo mesmo nome que se diz Verbo diz-se Filho.
[89] Iust.in 2 Apol. n. 13.
[90] Clem. Alex. in Pedagogo.
[91] August. De civit. 1,8, c. 14.
[92] De virtutibus, in epilogo.
[93] Agostinho, De moribus Ecclesiae, c. 17, n. 31.
[94] De his cf. de virtutibus, Prolegom. de fide.
[95]
“Confessamos que para nós não há nenhuma razão que exija crer na
divindade da Igreja. Em primeiro lugar não esquecemos que a fé é um
dom, que ela é um ato livre. Se a fé resultasse fatalmente dos nossos
raciocínios como a conclusão de um silogismo das premissas, ela não
seria um ato livre na acepção ordinária desta palavra, e ninguém, a não
ser um sem juízo, poderia recusar-se a crer, como tampouco podemos
recusar-nos à evidência. Ela não seria um dom, ela não seria a fé, se
ela se deduzisse de proposições antecedentes à maneira dos teoremas de
Euclides, etc…”. Mignot Critique et tradition. Correspondant, 10 de janeiro de 1904.
[96]
“Ademais da fé de amor, há, pois, uma fé de temor. Todavia, elas não
tem nada em comum. E quando a fé de temor é o princípio da sabedoria, é
que no temor mesmo já há outra coisa. Mas crer unicamente por temor,
é crer em nada. É assim que um inimigo crê na existência de seu inimigo
aspirando a eliminá-lo. A fé de temor em si mesma não é uma fé
sincera, pois que ela contém o desejo de não crer. Com ela e por ela
mergulha-se nas trevas. É uma fé morta, uma fé sofrida da qual se
procura desembaraçar e da qual não se consegue libertar. Enquanto a fé
de amor é uma fé viva e querida na qual se fortalece sem cessar e vai
sempre crescendo. Supercrescit fides vestra”. Laberthonnière Le
dogmatismo mora, § 4.
[97] S. T. 1-2, q. 21, a. 1.
[98] Ib. a. 2, ad 2.
[99] De natura et ratione peccati. Introd. §3.
[100] Fil. II, 5-8.
[101] I Cor. XV, 12-33.
[102] I Cor. XI, 23-29.
[103]
“Se existe outro mundo invisível, onde Deus desvela outras maravilhas,
onde ele habita em sua glória, e se mostra sem véu aos seus eleitos;
se fomos feitos para esse mundo melhor, para aí ver e possuir a Deus e
gozar em seu seio das delícias eternas: não será necessário que sejamos
advertidos de nosso sublime destino, para esforçar-nos por realizá-lo?
Não será necessário que nos sejam dadas ao menos algumas noções de
nossa pátria em direção da qual devemos tender, dessa imortal
felicidade que devemos merecer, desse Deus ao qual nos devemos unir
para sempre por amor?…Por longo tempo antes do uso da razão a criança é
esclarecida por uma fraca luz intelectual, que é como a aurora; suas
idéias, a princípio confusas e encerradas, esclarecem-se pouco a pouco;
ela balbucia uma linguagem que ela não compreende, antes de ligar um
sentido claro e distinto às palavras que pronuncia, e só chega através
de um longo estudo dos elementos áridos e quase ininteligíveis para ele
a essa medida de ciência da qual o espírito humano é capaz aqui na
terra. Eis o que uma experiência quotidiana nos descobre; estendamos
agora nossas vistas e elevemos nossos pensamentos. Sendo um ser imortal
o homem, cuja existência, cuja existência começada no tempo, deve durar
para além dos séculos, podemos com razão dizer que a vida presente não
passa de uma infância e sua idade madura é a eternidade Criança
neste mundo, ele aí é como um bosquejo do que será um dia; não tem
ainda plena inteligência das coisas de Deus, mas delas tem as primeiras
vistas incompletas, que se desenvolverão em outro estado; ele aprende a
balbuciar na terra a língua dos bem-aventurados e dos anjos que ele
deve falar eternamente no céu; ele estuda os elementos ainda obscuros
de uma ciência divina, que ele só possuirá em toda sua extensão quando
houver atingido, segundo a expressão de São Paulo, a plenitude do homem
perfeito em Jesus Cristo. Toda esta doutrina é do grande apóstolo,
ouvi-a dele mesmo: “Enquanto somos crianças, diz ele, falamos como
crianças, pensamos, raciocinamos como crianças. Mas quando a maturidade
tiver chegado, tudo quanto é próprio de criança desaparecerá. O que
vemos agora como em um espelho e em enigma vê-lo-emos então face a
face; o que conhecemos só obscuramente e em parte conhecê-lo-emos tão
plenamente como somos conhecidos de nós mesmos.” Para que servem então
os mistérios? Ora, eles formam um degrau necessário, nesse grande e
magnífico desenvolvimento do homem, crescendo aqui em baixo para a
eternidade, e preparando-se, entre as sombras da cidade terrena, para a
luz e a glória da pátria imortal. Para que servem os mistérios? Eles
são o elo que une a terra ao céu, por uma admirável comunhão de
sentimentos, pensamentos e de linguagem. Tudo que os bem-aventurados
vêem, nós o cremos; tudo que eles possuem, nós o esperamos; o que eles
amam e adoram é também objeto de nossa adoração e de nosso amor; nossos
cânticos respondem aos seus; eles rendem graças, nos transportes
permanentes de alegria, pelos bens inefáveis de que gozam; nós
suspiramos, no ardor de contínuos desejos, por esses mesmos bens que os
mistérios nos mostram através dos véus e que eles nos prometem como a
recompensa segura de nossa fé.” (Maccarty, sermão sobre a divindade da
religião cristã provada pelos seus mistérios, para a festa da
Santíssima Trindade).
[104] Greg. M. Homil. 32, in Ev. N. 6.
[105]
“Deus é pessoa quer dizer: Comporta-te nas tuas relações com Deus como
em vossas relações com uma pessoa humana. De modo semelhante, Jesus
ressuscitou quer dizer: Age com ele como terias agido antes de sua
morte, como ages com um contemporâneo. Do mesmo modo, o dogma da
presença real, é necessário ter para com a hóstia consagrada uma
atitude idêntica àquela que se teria em face de Jesus visível”. Le Roy,
Qu’est-ce qu’un dogme. (Quinzaine, 16 de abril de 1905).
[106]
Deus falou, diz-se. Que significa a palavra falar neste caso?
Certamente, é uma metáfora. Que realidade ela oculta? Toda dificuldade
reside aí.” Le Roy, ubi supra.
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