CARDEAL BILLOT: DA IMUTABILIDADE DA TRADIÇÂO CONTRA A MODERNA HERESIA DO EVOLUCIONISMO


Cardeal Ludovico Billot 
Tradução Pe. João Batista de A.Prado Ferraz Costa

Nota do tradutor

Com prazer ofereço ao leitor de língua portuguesa a tradução da importantíssima obra do eminente teólogo jesuíta cardeal Ludovico Billot De immutabilitate traditionis contra modernam haeresim evolutionismi, feita a partir do texto original latino publicado em 1929.
Esclareço que esta tradução contou com a colaboração (para as partes mais difíceis) dos saudosos D. Manoel Pestana Filho, que muito me incentivou na execução da tarefa, e do dr. José Moacyr de Oliveira.
Dom Pestana recordava a propósito as palavras de seu antigo professor na Universidade Gregoriana Padre Tromp: “A ‘trindade’ da sagrada teologia está constituída por Santo Agostinho (De Trinitate), Santo Tomás (Summa) e cardeal Billot (De Ecclesia).
É bem possível que a presente tradução contenha erros de digitação ou mesmo períodos de uma tradução menos feliz. Agradeço ao leitor que me aponte tais erros para uma melhora do trabalho. Preferi publicá-la antes de uma revisão geral rigorosa para não retardar ainda mais sua publicação que estava prevista para ser lançada por uma editora que desistiu do projeto diante do desinteresse do leitor brasileiro pela aquisição de boas obras teológicas. Como bem sabemos, o mercado editorial de obras ditas religiosas está praticamente dominado pela literatura herética modernista, pentecostal e sincretista.
A presente obra do cardeal Billot é importante para refutar a ideia de “tradição viva” que nega a imutabilidade do dogma. Com efeito, a reta teologia só admite um processo de explicitação e aprofundamento da verdade católica, jamais uma mudança substancial. Por exemplo, a Igreja  sempre ensinou a doutrina da tolerância religiosa (desde o período da patrística até Pio XII). Essa doutrina foi sendo organicamente desenvolvida, sempre conservando o mesmo sentido. Ora, o que era tolerância do erro em foro público não pode transformar-se em liberdade do erro, ainda mais quando a Igreja condenou rigorosamente a liberdade de cultos.
Boa leitura!
Pe. João Batista de A.Prado Ferraz Costa


Proêmio

O Concílio Vaticano I, na constituição Dei Filius, capítulo 4, diz: “ A doutrina católica que Deus revelou não foi proposta como uma descoberta filosófica que devesse ser evoluir ao sopro do engenho humano, mas transmitida como um depósito divino à esposa de Cristo, para ser fielmente conservada e infalivelmente exposta. Portanto, o sentido dos sagrados dogmas deve ser perpetuamente guardado, uma vez definido pela Santa Madre Igreja, e jamais afastar-se desse sentido, a pretexto de uma mais alta compreensão.” Além disso, diz o cânon 3º de fide et ratione: “Se alguém disser que pode ocorrer que aos dogmas propostos pela Igreja, às vezes, conforme o progresso da ciência, se deva atribuir um sentido diverso daquele que entendeu e entende a Igreja, seja anatematizado.”
Não obstante, surge agora uma nova corrente, principiada em surdina no século XIX por Gunthero, que defende abertamente a evolução kantiana e racionalista da nossa religião; que considera a mutação do dogma de uma forma para outra, de um sentido para outro,conforme as várias condições do meio e os sucessivos estados da cultura humana: diz que todo o conjunto da doutrina, como uma fecunda lucubração  da razão humana sob pressão do coração e do sentimento religioso, está em contínuo e indefinido movimento.
Nesta perspectiva, dois livros recentemente publicados dizem com toda crueza e insolente escárnio dos padres, doutores, pontífices de todos os tempos: “A fé não tem morada permanente nesta terra, mas necessita sempre de tabernáculos provisórios. Em vão se esforçariam por retê-la em suas formas antigas, que não podem mais adaptar-se a outras mentalidades e não nada mais são do que monumentos veneráveis de tempos pretéritos. Com efeito, hoje, nas presentes condições culturais, não é possível, por mais tempo, que o homem julgue só segundo critérios do senso comum, concilie o que vê e lê na Sagrada Escritura com o que os nossos teólogos parecem afirmar acerca da verdade universal e absoluta da mesma Escritura. Não é possível por mais tempo conciliar a história do doutrina cristã com o que nossos teólogos parecem afirmar a respeito da sua perpétua e contínua identidade. Já não é possível conciliar o sentido natural dos textos evangélicos, sobretudo dos autênticos, com o que os nossos teólogos ensinam ou parecem ensinar sobre a consciência ou ciência de Jesus Cristo. Já não é possível afirmar, como adequada à economia da salvação, a teoria concebida na ignorância da história do homem sobre a terra e da história da religião na própria humanidade. Portanto, é hora de considerar totalmente vacilante a fé na autoridade das Escrituras, mostrando o que é realmente a Bíblia, e qual gênero de verdade se lhe deve atribuir. É chegada a hora de considerar totalmente vacilante a fé na redenção e na salvação, buscando sob formas ou idéias agora mortas o princípio da verdade imutável que nelas está profundamente latente, e por fim a noção inteligível daquelas coisas em que Cristo teve parte na regeneração moral da humanidade. Já é tempo de considerar vacilante a fé na ressurreição do Salvador e na sua presença eucarística, penetrando mais o mistério do Cristo imortal que vive perene em Deus e na sua obra etc. Em suma, é o momento para que a Igreja Católica seriamente reconsidere que, por longo tempo, não temeu bastante escandalizar os doutos; e que o próprio catolicismo se reserva uma ruína fatal, enquanto sua pregação parecer impor aos espíritos uma concepção do mundo e da história discrepante daquela que o avanço dos últimos séculos restabeleceu; mas sobretudo, enquanto os fiéis forem proibidos, por medo de ofender a Deus, de pensar e admitir na ordem filosófica, científica e histórica, conclusões e hipóteses que os teólogos da idade média não previram.
Com efeito, não se poderia excogitar negação mais radical de todos os princípios e regras da fé cristã católica. Chega-se assim, não só por dedução lógica e inevitável conseqüência, mas também por uma confissão formal e eloqüente dos autores, à categórica negação de toda a revelação, isto é da verdadeira e própria palavra de Deus. Mas esta heresia, se se pode ainda falar em heresia, não revestiu imediatamente a forma completa sob a qual agora se trai. Teve suas primeiras raízes no falso conceito de tradição católica, como se efetivamente esta tradição estivesse contida no simples fato humano histórico, cujos testemunhos pudessem e devessem ser tratados segundo os mesmos critérios  e regras, nem mais nem menos, como os outros monumentos da antiguidade. Disto resulta o chamado método histórico nos estudos de teologia positiva; adotando tal método, alguns eruditos parecem admitir manifesta oposição entre o sentido do dogma conforme os mais antigos padres, sobretudo os anteniceneanos, e o sentido que os concílios e doutores de idade posterior abraçaram.
De maneira que, reintroduzido na dogmática aquele progresso guntheriano já condenado pelo Concílio Vaticano I, acrescentada apenas certa espécie de novidade derivada da teoria da evolução, que após Darwin havia obtido tanto sucesso por toda parte e deu origem à noção de fé viva, como dizem, isto é, a noção de fé que primeiro se continha em gérmen  e depois, como que a partir de um óvulo que se desenvolve, e passando de espécie em espécie, à maneira do animal darwinano, por via de seleção e sob o influxo do meio ambiente, sempre se transforma em algo melhor. Para que talvez alguém não ficasse inquieto de como conciliar semelhante teoria com a doutrina católica sobre a infalibilidade  da tradição e do magistério da Igreja, oportunamente foi ressuscitado o conceito de Gunther sobre a verdade relativa. Falam em verdade relativa por oposição à verdade simpliciter, em relação à qual, houve, até certo ponto, na medida da possibilidade de acréscimos, maior ou menor aproximação, havendo sempre, porém, grande distância da desconhecida verdade absoluta, que a seu tempo talvez se revele. Mas, como da verdade relativa se prepara fácil descida para a negação de toda verdade objetiva, por isso ulteriormente extraíram das oficinas da filosofia kantiana a idéia do dogmatismo moral ou postulado que nada mais é que a subjetiva lucubração do intelecto sob o determinismo da vontade. Finalmente, chegou-se ao sistema completo que está exposto na  referida obra O Evangelho e a Igreja. Nela, a Trindade, a Encarnação, a Redenção, a Igreja, os Sacramentos, enfim todos os nossos dogmas na medida em que neles cremos, são apenas certa fase da evolução. Igualmente, a crítica histórica e a fé relacionam-se entre si de tal maneira que nunca possam contradizer-se, porquanto a fé refere-se à presente forma de que se reveste a idéia cristã, a crítica, ao contrário, versa sobre todas as diversas formas que estavam na origem.
Pretendo tratar ordenadamente de todas estas questões e, em primeiro lugar, do conceito errôneo de tradição, que está na origem de toda esta teoria. E porque o erro concebido não aparece senão à luz dos princípios verdadeiros, tratarei inicialmente destes princípios.

Capítulo I

O conceito católico de sagrada tradição.

Guarda o precioso depósito, pela virtude do Espírito Santo que habita em nós.
(2 Tim. 1-14)
“Muitas vezes e diversos modos outrora falou Deus aos nossos pais pelos profetas. Ultimamente nos falou por seu Filho.” Com estas breves palavras em concisa sentença o apóstolo compendia integralmente toda a revelação católica, desde o princípio até sua conclusão. Dizemos, com efeito, que a revelação é toda locução de Deus dirigida a nós, seja pelo órgão humano unido hipostaticamente ao Verbo, seja pelos instrumentos separados, tais como foram aqueles santos homens de que fala a 2 Epístola de São Pedro, 1-21. Essa revelação está encerrada tanto da parte da palavra oral, pela boca do próprio Cristo, e dos seus apóstolos, pela inspiração do Espírito Santo, sem a consignação por escrito, quanto da parte da palavra escrita pelo ministério dos hagiógrafos do Antigo e do Novo Testamento. De ambos modos dirigia-se a revelação a toda a Igreja futura até a consumação do mundo.
Ora, em toda palavra, distingue-se a coisa ou verdade dita pela palavra, que se pode chamar a palavra em sentido objetivo, e a expressão pela qual é dita a verdade, que é a palavra em sentido formal. Se, pois, a fala se refere às coisas ou verdades expressas pela palavra, então não há diferença nenhuma entre a palavra de Deus escrita e oral, porque seja de um modo ou de outro se supõem expressas verdades igualmente ditas por Deus, pertencentes ao objeto material da fé. Mas se a fala se refere à própria palavra pela qual a verdade revelada foi expressa por inspiração divina, então há certa diferença entre a palavra e a verdade. Pois a palavra escrita de per si fixa e permanente, e portanto a mesma locução divina, uma vez impressa, pode ser conservada no mesmo número. Mas a palavra oral é proferida e se comunica, e portanto, para a transmissão da verdade dita, requer outra locução, em número distinto. Esta locução está para o original como certa repetição ou ressonância, ou prolongamento através do espaço e de intervalo de tempo. Ela recebeu entre nós o nome genérico de tradição. De maneira que a palavra de Deus proferida primeiro se diz transmitida (verbum traditum), visto que entregue à tradição, e pela tradição prolongada e perpetuada. Sob esta denominação é comum distingui-la da palavra escrita contida nos livros sagrados.
No entanto, a palavra ou tradição que perpetua a revelação feita originalmente pode ser considerada de duplo modo. De um modo, como tradição de um só fato, submetida ao fluxo geral das realidades humanas, às causas e cuidados humanos, deixada ao engenho humano, como se pode verificar nas tradições históricas, nas quais cada um, pelo seu esforço e capacidade, se empenha em conservar para a posteridade aquele patrimônio recebido dos maiores. De outro modo, como tradição não só de fato mas de direito divino, à qual, certamente, foi prometida pelo autor  de nossa religião a instituição de um órgão autêntico e perene de especial assistência. E se alguém considerar antes de tudo esta matéria, dificilmente lhe parecerá  digno de crédito aquele modo da tradição na religião revelada, se não se convencer de que Jesus Cristo nos trouxe a luz da revelação provida de um meio eficaz para a sua pura e incorrupta conservação. Com efeito, ninguém, que faça um juízo equânime  seja sobre a natureza dos dogmas que devem ser conservados seja sobre as condições da nossa frágil humanidade, reconhecerá completamente esse meio eficaz. Entretanto, não convém por ora alongar-nos em tais considerações, mas antes recorrer aos documentos positivos, a partir dos quais se deve demonstrar a proposição fundamental que vem a seguir.

§ 1

O órgão autêntico da tradição foi instituído por Jesus Cristo em sua Igreja hierárquica e apostólica, à qual prometeu jamais abandonaria. Essa tradição é a pregação da revelação recebida do próprio Jesus Cristo e dos seus apóstolos, a qual é, de geração em geração, continuada pelos sucessores dos apóstolos sob a assistência do Espírito Santo.
Inicialmente, recorde-se a história evangélica e tudo o que nela se contém a respeito das origens da doutrina cristã: A mensagem da salvação, diz Hebreus 2, 3, anunciada primeiro pelo Senhor, confirmada ao depois pelos que a ouviram. Digno de nota este anunciada, bem como o pelos que a ouviram. Em forma de compêndio ai se recapitula aquilo que na supradita história está manifesto: a doutrina de salvação de Cristo, não a escrita, mas a palavra da pregação, pelo magistério pessoal, foi proclamada pelo oráculo de viva voz. O próprio Filho de Deus feito homem, enquanto viveu entre os homens, foi mestre e doutor. Demonstrado que em sua pessoa se realizam as profecias, comprovado pelos sinais divinos das obras e dos milagres, declarado pelo Pai Celeste no início do seu solene magistério de tal maneira que fosse ouvido por outros, “assumindo o múnus de preceptor a fim de nos ensinar a bem viver para depois, como Deus, dar-nos a vida eterna”[1]. E tendo cumprido a obra de que o incumbira seu Pai, tendo anunciado o evangelho do reino por três anos por todas regiões da Galiléia e da Judéia, tendo instruído seus discípulos, fundado o novo e eterno testamento em seu sangue, ressuscitado dos mortos preparava a ascensão ao céu. Entretanto, prevendo a perenidade e a propagação da revelação que trouxera ao mundo, àqueles que constituíra como vigários encarregados de perpetuar a sua obra, lhes disse por fim: “Foi-me dado todo poder no céu e na terra. Ide, pois, e ensinai todas as nações a obedecer tudo o que vos ordenei, eis que estarei convosco todos os dias até o fim dos tempos. Estas são as últimas palavras de Cristo – digo- que dispõe com uma ordem eficaz o meio pelo qual sua doutrina revelada para o mundo todo chegasse a todas as gerações. Estas  palavras foram ditas após a ressurreição na solene aparição do monte da Galiléia, à qual convocara, além dos apóstolos mais importantes, todos os outros discípulos,[2] de maneira que toda a Igreja de então fosse testemunha do seu derradeiro mandamento.
Aí, pois, temos para sempre a primeira instituição do autêntico órgão da tradição. Refiro-me, não a qualquer tradição recebida, mas à doutrina da tradição recebida de Cristo. Refiro-me a uma doutrina que não deve ser juntada mas confiada, não enriquecida mas protegida. Esta doutrina não precisa de autores, mas de custódios, não de pesquisadores, mas de fiéis dispensadores. Ensinando, diz, a observar tudo o que vos mandei. Ora, Cristo mandou que se cresse na doutrina integral do evangelho, que ele pessoalmente pregara, enquanto estava entre nós, e tinha prometido aos seus discípulos que pelo seu Espírito Santo revelaria o pleno complemento da sua doutrina, dizendo: “Tenho ainda muita coisa a dizer-vos, mas não podeis compreender agora. Quando, porém, vier o Espírito de verdade que vos enviarei da parte do meu Pai, ele vos ensinará toda a verdade.[3]
Em segundo lugar, deve dizer-se que a instituição do órgão da tradição há de durar até o fim do mundo. Em todo  evangelho, especialmente em São Mateus…..(em grego) significa o fim do mundo presente, o último advento de Cristo e o tempo do juízo universal. E certamente, não  altera o sentido dessa passagem o fato de as palavras serem dirigidas aos presentes, pois estes permaneceriam em seus sucessores. De maneira que o Senhor lhes ordena ensinar a todas nações sem nenhuma restrição de tempo ou lugar, e logo após vemos os apóstolos cumprindo o mandato de Cristo, fazendo-se substituir por outros que seriam guardiões e doutores da doutrina e aos quais se comunica o Espírito Santo, que neles permanece.[4] A eles também se prescreve que ordenem e ensinem a homens fiéis e idôneos  aquilo que receberam.[5] E tudo isso, até o advento de Nosso Senhor Jesus Cristo, que se revelará a todas as eras como o santo, o único poderoso, o rei dos reis, o dominador dos dominadores.[6]
Em terceiro lugar, deve notar-se que a instituição do órgão da tradição está dotada do carisma da indefectibilidade.  Com efeito, Cristo diz: “Estou convosco”. As Escrituras demonstram com freqüência o que isso significa. Essa locução, sem sombra de dúvida, é empregada em muitas passagens para expressar uma proteção divina, certa e invencível. Essa locução não implica um gênero de auxílio eficaz; ela promete uma assistência infalível  para o exercício de determinada função, excluindo qualquer lapso ou defecção. Promete-se aos apóstolos e aos seus sucessores uma assistência perpétua de Cristo, não para qualquer fim que pudesse excogitar a razão humana a respeito do reino de Deus; não para erradicar todos os vícios, não para impedir todos os escândalos. Pelo contrário, todas essas vicissitudes estão discretamente profetizadas. De forma sóbria está dito que no campo do Senhor haverá cizânia juntamente com o trigo e que ambos crescerão até a sega. Todos conhecem a rede atirada ao mar que apanha todo gênero de peixes. Todos conhecem a barca, da qual se diz com admiração que, apesar de sobrecarregada por tão grande multidão, não submerge. São igualmente conhecidas outras parábolas do evangelho com sentido semelhante. Portanto, não  diz “estou convosco” aos fundadores de um reino de perfeita justiça e consumada santidade. Mas diz “estou convosco” aos que vão ensinar as verdades contidas na revelação do meu evangelho. À assistência prometida corresponde, pois, uma indefectibilidade, que garanta a transmissão íntegra da genuína doutrina de Cristo, de tal maneira que esta possa ser conhecida sem sombra de dúvida.
Em quarto lugar deve-se examinar o seguinte acerca do órgão da tradição: a ele Cristo promete uma assistência continua, não apenas por alguns intervalos de tempo. Não diz que estaria no futuro em certos dias, em certas circunstancias, por exemplo, quando foram definidos os artigos de fé, ou quando fosse necessário por um decreto corrigir ou restituir ao sentido puro aquilo que pela injúria do tempo houvesse sido adulterado antes por falsa tradição. Mas, todos os dias, diz. E que significa este “todos os dias”? Significa que estará no ordinário e quotidiano ministério do magistério, não apenas no seu exercício mais solene. Realmente, dizendo todos os dias, exclui a menor interrupção, sequer de um dia, e não deixa lugar para o mínimo desvio. Que significa todos os dias? Em qualquer século, em qualquer idade. Passará a idade da Igreja primitiva,  com um olhar não veja as suas origens próximas, nem conte a série de sucessão pela qual se transmite o tesouro da doutrina celeste, e ainda e sempre vobicum sum. Agora e sempre estará presente aquele Espírito de verdade que desde o início esteve presente. Agora e sempre, até que venha a consumação dos santos haverá aqueles mesmos pastores e doutores colocados por Cristo, a fim de que não sejamos ingênuos enganados por qualquer doutrina, astúcia ou erro. Agora e sempre haverá a mesma hierarquia apostólica, que, em razão da indefectível tradição do evangelho recebido de Cristo, é coluna e firmamento da verdade.[7]
Em quinto lugar, é preciso dizer que o instituto do órgão da tradição não é de qualquer gênero, mas ao modo oral ou sempre da viva pregação. Todas as coisas ditas em breve a respeito da razão, da índole e perenidade do ministério constituído demonstram isto. Donde se pergunta: que lugar tem, no sistema bíblico dos protestantes, aquele órgão permanente, ordinário, perpétuo, ao qual Cristo, por todos os dias, deveria assistir até a consumação dos séculos? Realmente, nenhum. Porque, uma vez depositado aquele tesouro da doutrina celeste pelos que a ouviram no instrumento fixo da escritura, não restava mais nada a ser feito e toda a obra de ensinar integralmente tudo aquilo que vos mandei se encerrava necessariamente com a idade dos apóstolos ou dos homens apostólicos. Igualmente, significam isso as palavras ensinai, pregai, em seu sentido óbvio e em sua compreensão natural, não sendo a escritura senão um meio artificial, acessível a poucos, introduzido como um auxílio ou suplemento da pregação oral. Com efeito, sabemos por testemunho certíssimo da história que os apóstolos (aos quais ninguém acusaria de não ter obedecido à intenção  ou ordem de Cristo) nada escreveram ex professo como algo próprio ou em cumprimento de uma função especial deles, mas apenas ocasionalmente, como que levados por um motivo acidental. Diz Eusébio (1. 3 hist. C. 24) que São Mateus escreveu porque, como pregasse aos hebreus, e se preparasse para ir aos pagãos, julgou útil deixar para aqueles de quem se afastava um memorial da sua pregação. Diz também Eusébio (1.2, c. 15) que São Marcos, não vontade própria nem por ordem de São Pedro de quem era discípulo, mas em atenção às preces dos romanos, escreveu seu evangelho. Quanto a São Lucas, diz Eusébio (1.3, c. 24), que só escreveu porque viu muitos outros temerariamente ter presunção de mandar por cartas informações que não conheciam perfeitamente, com o propósito de nos separar das narrações incertas dos outros. E quanto a São João, diz Eusébio ibidem, que até provecta idade pregou o evangelho sem nada escrever, e acrescenta São Jerônimo (1. de Scipt. Eccl.) que por fim foi ele compelido pelos bispos da Ásia a escrever o evangelho por causa da heresia dos ebionitas que então surgia. De maneira que, se a heresia ebionista não tivesse existido, talvez não tivéssemos  o evangelho de João, do mesmo modo os outros três  se tivesse havido as referidas ocasiões. Com razão observa Eusébio que somente dois entre os doze apóstolos escreveram evangelho, mesmo assim provocados por certa necessidade. “Disto se infere facilmente que os apóstolos tiveram primeiro a intenção não de escrever, mas de pregar.”[8] Acrescenta ainda que, se os apóstolos tivessem a intenção de consignar por escrito sua doutrina, certamente um catecismo ou um livro semelhante, teriam redigido um livro que recolhesse todo o corpo de doutrina, quando, ao contrário, escreveram uma história, como evangelistas, ou epístolas resultantes de alguma circunstância., como Pedro, Paulo, Tiago, Judas, João. Isto é, pois, sinal indeclinável de que foram encarregados pelo próprio Cristo de transmitir a verdade revelada do evangelho, primeiro e principalmente por uma viva e pessoal pregação.
Vê-se, pois, que os apóstolos e todos os seus sucessores constituem com eles perpetuamente uma pessoa moral até o presente. Confirma-se isto, com clareza, a partir das supremas recomendações que os apóstolos deixaram para a Igreja no mesmo lugar do testamento. Que significa, realmente, aquilo que Paulo, já próximo da sua paixão, escreve a Timóteo, em cuja pessoa está compreendido todo o corpo dos bispos? Ó Timoteo, guarda o depósito. E novamente: Toma por modelo os ensinamentos salutares que de mim recebeste…Guarda o bom depósito pelo Espírito Santo que habita em nós. E ainda: Tu pois, meu filho, o que ouviste de mim em presença de muitas testemunhas recomenda a homens fieis e idôneos que ensinem a outros. Por essas passagens não se pode entender a Escritura, mas o tesouro da doutrina, a inteligência dos dogmas divinos, i. e., tanto o sentido das Escrituras como o sentido de outros dogmas. Queria-se, como explicam  Crisóstomo e Teofilácio, a propagação da doutrina por meio da Tradição. A isto alude igualmente Irineu, 1, 4, c, 43, quando diz: “É necessário obedecer aos presbíteros da Igreja, àqueles que têm sucessão apostólica,…àqueles que, com a sucessão do episcopado receberam o carisma da verdade segundo o beneplácito do Pai.
E facilmente se vê isto pelo seguinte. Se se referisse a palavras escitas, não recomendaria com tanta ansiedade o depósito. Com efeito, as Escrituras facilmente se conservam em cofres e bibliotecas; mas o apóstolo quer que sejam conservadas pelo Espírito Santo na mente de Timóteo. E tampouco acrescentaria: “Recomenda estas coisas a homens fiéis que sejam idôneos para ensinar a outros”, mas diria, recomenda a editores que reproduzam muitos exemplares. Não diria: “O que ouvistes de mim na presença de muitas testemunhas” mas o que  te escrevi. Portanto, o apóstolo não recomenda a Timoteo apenas as palavras mas também o sentido, e muito mais o sentido que as palavras, e ordena que transmita pelas mãos aos seus sucessores.[9]
Temos, pois, na religião cristã, por instituição divina, o órgão da tradição, e esta oral e sempre viva. Refiro-me a um órgão autêntico, perene, dotado de um carisma de contínua assistência. Digo mais:  in se indiviso e na sua individualidade sempre visível, e isto sobretudo graças a um centro, uma cabeça, Pedro, que necessariamente, na hierarquia, ocupa a primazia, (Mt. 10, 2), com o nome misterioso que lhe foi imposto por Cristo indicando a inconcussa solidez de seu ministério(Jo. 1-42), para confirmar seus irmãos (Lc. 22, 32); como pedra sobre a qual foi edificada a Igreja (Mt. 16, 18). Todas essas verdades devem ser aqui compreendidas conforme as teses que em seu tratado correspondente se supõe foram provadas e demonstradas. Mas se tal é órgão da tradição, conforme até aqui foi descrito com base em solene documento de instituição da Igreja, então resulta sem dificuldade de compreensão que a tradição de que discorremos nada mais é que a pregação de geração em geração, pelos sucessores dos apóstolos com o carisma da indefectibilidade, daquela revelação que receberam primeiro da boca de Cristo ou de seus apóstolos conforme prescrevia o Espírito Santo.
Esta é a tradição que reconhece a universal antiguidade cristã. Esta é a tradição evocada por Inácio aos Efésios, n. I doutrina de Jesus Cristo na qual estão os bispos até os confins da terra, por Policarpo ao Filipenses, n. 7, desde o início nos foi transmitida a doutrina, por Irineu, 1, 3, c. 2, a tradição que vem dos apóstolos e é guardada nas igrejas por sucessões de presbíteros, por Tertuliano, Praescript. c. 37, regra que a Igreja recebeu dos apóstolos, os apóstolos de Cristo e Cristo de Deus, por Origines, em de Princip. Praef.n 2. , a pregação eclesiástica por ordem de sucessão transmitida pelos apóstolos, a qual permanece na Igreja até hoje. Esta é a tradição para a qual apelam os padres do primeiro e segundo séculos contra os primeiros hereges ou gnósticos. E os gnósticos igualmente, quando argüidos acerca das Escrituras, respondiam: “Porque não se pode encontrar a verdade naqueles que ignoram a tradição. A verdade não foi transmitida por escrito mas por viva voz.[10] Quanto a esse princípio, os padres não tinham contraditores mas concordantes absolutamente unânimes. Mas quando eram reconduzidos à tradição autêntica, então jactavam-se de uma tradição oculta, só a eles revelada por Valentino ou Marcião ou por Cerinto ou Basílide. Opunha-se-lhes a tradição autêntica, que é pública na Igreja e tem como órgão a contínua sucessão dos bispos a partir dos apóstolos e sobretudo a partir do príncipe dos apóstolos na Sé Romana. Nesse ponto é célebre o trecho de Irineu em que fez transcrever integralmente a sucessão episcopal até seus dias, de maneira que houvesse perpétua e insofismável confirmação de tal verdade.
“Todos quantos queiram podem ver que em toda a Igreja, em todo o mundo, há uma manifesta tradição dos apóstolos. Podemos enumerar aqueles que foram instituídos bispos pelos apóstolos nas igrejas e os seus sucessores até nós, os quais não ensinaram nem inventaram nada que deles discrepasse. Mas porque seria muito longo citar aqui as sucessões de todas as igrejas, sobretudo da antiqüíssima, e de todos conhecida, Igreja fundada pelos gloriosíssimos apóstolos Pedro e Paulo em Roma, convencemos a todos aqueles que, salvo má fé ou vanglória, concluam que esta Igreja tem uma tradição que remonta aos apóstolos, uma fé anunciada a todos os homens mediante a sucessão dos bispos que chega até nós. A esta igreja, em virtude de sua excelência, é necessário que se uma toda a Igreja, isto é, os fiéis de todas as partes. Nela sempre se conservou a tradição apostólica. Tendo fundado e instruído essa igreja, os apóstolos transmitiram a Lino o episcopado para que a governasse. Paulo nas epístolas a Timóteo recorda-se de Lino. A este sucedeu Anacleto. Após este, como terceiro sucessor, foi consagrado bispo Clemente, que também viu os apóstolos e com eles conviveu, tendo diante dos olhos a pregação de viva voz dos apóstolos. Com efeito, havia ainda então muitos que tinham sido doutrinados pelos apóstolos. Por essa ordenação e sucessão, a tradição apostólica e a pregação da verdade na Igreja chegou até nós. Esta é uma claríssima demonstração de que é uma e mesma fé vivifante que na Igreja foi conservada e transmitida na integridade pelos apóstolos. Sendo, pois, tantas as provas, não é necessário pedir a outros a verdade, que facilmente se recebe da Igreja, quando os apóstolos, como num rico depositório, lhe confiaram todas as verdades. De maneira que, mesmo se os apóstolos não nos tivessem deixado as Escrituras, não era necessário seguir a ordem da tradição que confiaram às igrejas? A essa ordem assentem muitas nações bárbaras, as quais crêem em Cristo, sem as Escrituras, tendo pelo Espírito a salvação em seus corações e guardando com diligência a antiga tradição, crendo em um Deus criador do céu e da terra, por Jesus Cristo Filho de Deus.[11]
Efetivamente, a Igreja considera Cristo o instituidor dessa tradição. Por ora, antes que avancemos, convém que fique bem clara esta conclusão.

§ 2

Por que a tradição entendida em verdadeiro e católico sentido é a regra de fé. E por que o conceito de tradição sob a razão de simples fato humano, ou da pregação derivada de Cristo e dos apóstolos apenas com autoridade histórica, é um conceito falso, protestante, que traz ostensivamente a nota herética.
Em primeiro lugar, é necessário observar que há distinção entre objeto e regra de fé. Objeto é a verdade a ser crida. Regra, formalmente e enquanto tal, é aquilo que contém a verdade a ser crida, à qual é necessário que nos conformemos ao crer, para que creiamos naquilo que se nos propõe a crer. Portanto, as verdades pregadas pela tradição, a que podemos dizer tradição em sentido objetivo, são propriamente o objeto da fé. Mas a mesma pregação eclesiástica, ou a mesma tradição tomada em sentido formal é a regra de fé.[12] Sublinhe-se que a regra não dirige de qualquer modo, mas infalivelmente. Realmente, quem quer seja que siga a regra, enquanto esta tem força e ato de regra, não erra nem pode errar em nenhuma ordem. A tradição tem razão de regra fé a tal ponto que guarda, conserva e transmite infalivelmente as verdades reveladas para nosso conhecimento. A proposição acima mencionada nos ensina justamente isso: pela razão desse elemento divino que se acha na tradição é que ela deve ser reconhecida como instituição e promessa de Cristo. Digo elemento divino, porque pelos padres foi chamado com vários nomes: verbi gratia, carisma certo da verdade no episcopado em virtude da sucessão, (Ireneu. 1. 4. c.26), operação do Espírito da verdade, que não permite que as igrejas entendam de um modo, creiam de outro, porque ele mesmo prega através dos apóstolos (Tertuliano Praescript., c. 28); influxo do Senhor que habita na Igreja, de maneira que a mais diligente investigação não incorra em erro ( Agostinho, Enarra. in Ps. 9, 12); sopro do Espírito Santo para que não se afaste da verdade (Cirilo de Alexandria, ep. 1 aos monges do Egito.); graça do Espírito pela qual, embora separados pelos montes e mares, todos instruídos dão assentimento à  mesma doutrina (Theodoret. Dial, de Incommutabili); efeito da sentença D. N. I. C., pela qual se assegura que na Sé Apostólica sempre se preserve inviolada a religião católica, (Profess. Fidei sub Hormisda ab orientalibus subscripta). E muitas outras do mesmo sentido é possível encontrar de forma esparsa entre os padre da Igreja. De maneira que não resta nenhuma dúvida que, tomada em seu sentido genuíno e católico, a tradição, conforme nos demonstram os todos monumentos da instituição cristã, é a verdadeira regra da fé.
Ao contrário, muito diferente é o conceito protestante, no qual o elemento divino é totalmente anulado de sorte que a tradição se reduz ao simples fato agregado aos fatos gerais da história: isto é,  fato dos homens, sua sagacidade, sua aplicação, seu engenho, que dão continuidade através dos à escola de Cristo e dos apóstolos. Admitida tal suposição, fica patente que não sobra nada da regra de fé. Com efeito, como se observou acima, a regra de fé propriamente falando não é aquela que apenas possivelmente ou casualmente ou de forma contingente conserva a genuína e pura doutrina da revelação, mas aquela que também de direito, necessariamente e per se. Assim, está à flor da terra a desproporção da humana sagacidade, da aplicação humana a um efeito tão grande, sobretudo em matéria dos divinos dogmas, na qual pesa ainda mais o erro protestante  conforme Belarmino, 1. 4 De verbo Dei, c. 12: diversos fatores podem ser impedimentos:o esquecimento, a imperícia, a negligência, a perversidade, que nunca faltam ao gênero humano. Mas, por favor, prefiro omiti-las. Conceda-se que não houve esses impedimentos. Conceda-se que a doutrina divina foi conservada na pureza da sua verdade através dos séculos em meio a todas as vicissitudes. Conceda-se que essa conservação seja só de fato suficiente regra de fé em si mesma. Conceda-se isto (já que não é aqui o lugar de disputar acerca de matéria mais remota), mesmo assim é necessário admitir que uma tradição à protestante não é uma regra suficiente quoad nos. Para nós nenhum outro valor terá tal tradição humana ou protestante senão aquele que lhe conferir uma demonstração de sua coerência com a original locução de Deus em Cristo ou nos apóstolos, unicamente a partir dos critérios e fontes gerais da história, ou seja, através do confronto, discussão e crítica cientifica dos monumentos do passado desde os tempos mais antigos. E quem – pergunto eu – empreenderá um trabalho tão singular não só acerca de fatos célebres da história mas ainda, e sobretudo, acerca de doutrinas abstrusas? Quem, em tal emaranhado de rios, distinguirá as águas puras que procedem de boa fonte, das águas espúrias e contaminadas? Quem separará o precioso do vil no conjunto das confissões dissidentes que entre si se digladiam? De todos os modos, portanto, fica patente que a tradição, entendida na acepção protestante, não é nem pode ser regra de fé e que, ao menos nesta parte, os velhos reformadores foram coerentes ao afirmar a Sagrada Escritura, excluída a tradição, como única regra de fé.
Com efeito, mostrou-se que tal conceito, que resume em si toda a heresia protestante, está em completa contradição com o evangelho e sua fundamental economia, e se alguém deseja outras informações encontrá-las-á no tratado De Ecclesia, onde se fala da autoridade do magistério. Também é fácil inferir como tal conceito de tradição contradiz abertamente o senso de toda antiguidade cristã, conforme se viu pelos poucos documentos mencionados acima. Todavia, afirmam os protestantes: ‘Demonstra-se claramente que a Igreja mais antiga só historicamente apelava para a tradição como se vê nas igrejas apostólicas às quais os próprios apóstolos pregaram, por uma contínua sucessão até seus tempos do século segundo ou terceiro, e que a fé transmitida pelos apóstolos não fora ainda corrompida, mas ainda era íntegra. Mas em tempo posterior, a Igreja tentou suprir aquilo que faltava à tradição historicamente considerada com base na autoridade que reivindicava para si”[13] Pois eu digo que o afirmam gratuitamente e sem nenhum fundamento.
Para evidenciar isto, deve-se considerar que a prometida assistência para a guarda incorrupta do depósito e o curso infalível da tradição na via reta da revelação original não excluía de nenhum modo a oportuna ordenação de causas segundas para esse fim e a conveniente cooperação das mesmas. Com efeito, assim age a suave providência de Deus para adaptar os instrumentos adequados à causa principal, de maneira que tudo aquilo que o homem pode produzir por sua atividade própria não seja inutilizado mas se aperfeiçoe e se torne ainda mais eficiente. Portanto, não pretendemos negar a conaturalidade com o efeito de que tratamos, o qual é, na verdade, a sucessão e contínua série de bispos na mesma sede transmitindo um ao outro, quase que de mão a mão, o depósito da religião. Não pretendemos tampouco remover o elemento humano da tadição, os auxílios humanos, a dedicação e a solicitude humanas. Se quiséssemos remover tudo isso, estaríamos em contradição com o apostolo que exclama: Ó Timóteo, guarda a fé. Realmente, por que tal exortação, por que tão instante recomendação, se da parte de Timóteo não se exigisse nada? Queremos encontrar em tais palavras, não tanto a suprema e suficiente razão da certeza acerca da conservação da integridade da doutrina revelada, quanto um sinal do carisma da perpétua assistência de Cristo.[14] Ademais, deve-se entender que o elemento humano está subordinado ao divino e se une a ele de tal maneira que no uso do lugar teológico da tradição os padres reconhecem um duplo argumento. Um pela consideração do carisma da sucessão apostólica. Outro pela consideração da mesma sucessão segundo as condições históricas observadas na Igreja desde o início; o que, ainda que não fosse em si só um argumento apodíctico, em termos polêmicos, entretanto, era eficacíssimo contra os fautores das múltiplas seitas, que por si mesmos começavam a inventar novos dogmas: “Essa sabedoria – diz Irineu 1. 3, c.2, (que Paulo diz entre os perfeitos), cada um deles diz achar em si mesmo. Cada um deles, completamente perverso, não se envergonha de pregar corrompendo a regra da verdade.” Portanto, de ambos argumentos se utilizavam os padres, tanto os mais antigos quanto os mais recentes. Com efeito, não só os mais antigos, mas os antiqüíssimos Inácio, Irineu, Tertuliano acima citados, apontavam, como a razão suma da conservação integral da doutrina divina pela ordem de sucessão, o carisma da verdade ligado à sucessão episcopal, à palavra de Cristo, à promessa da vinda do Espírito Santo que ensinaria a plena verdade. E igualmente, não entre os mais antigos mas os mais recentes, como por exemplo Atanásio (de decr. Nicaen. N. 27), Epifánio (1. R. Haeres, 27, n. 6), Optatus (1.. 2 de schism. Don. N.2), Agostinho(epist. 53, n.2 etc), apelam do mesmo modo para a sentença transmitida pelos padres de geração em geração, para a doutrina transmitida desde o inicio, para a contínua sucessão dos sacerdotes sobretudo na Igreja  Romana, porquanto, por essa sucessão, nas palavras de Epifánio, se demonstra a verdade perpetuamente manifesta. De maneira que, do princípio até hoje, não aparece o vestígio da oposição imaginada pelos protestantes sem razão alguma.
Assim, pois, temos na tradição, concebida em sentido autêntico e católico, a regra certíssima da fé. Mas porque a Escritura é considerada outra regra, cumpre examinar em seguida como uma se relaciona com a outra.

§ 3

Porque a tradição é a regra de fé, tanto na ordem do tempo, quanto do conhecimento, quanto da compreensão, tem prioridade sobre a Escritura, e nisto distingue-se principalmente da Escritura, porque não é apenas a regra remota , mas também próxima e imediata , de modo que pode ser considerada sob duplo aspecto.
1. Em primeiro lugar, não se trata de mostrar que a tradição antecede à Escritura na ordem cronológica. Observa-se isto já no Antigo Testamento. Com efeito, não houve Escrituras desde o início do mundo, e, no entanto, houve uma regra a que  conformaram sua fé os homens de Deus. Desde Adão até Moisés houve alguma Igreja de Deus no mundo, e os homens cultuavam a Deus com fé, esperança e caridade, bem como com ritos externos, como está patente no Gênesis, onde são apresentados Adão, Abel, Sete, Enoc, Noé, Abraão, Melquisedeque e outros homens justos. Mas não houve nenhuma escritura divina antes de Moisés, como está patente…., porque no Gênesis não há menção à doutrina da escritura, mas apenas da tradição: “Sei, diz Deus em Gen. XVIII- 19, que Abraão preceituará a seus filhos e a sua descendência que guardem o caminho do Senhor.” Portanto, por dois mil anos conservou-se a religião só pela tradição. Posteriormente, de Moisés a Cristo, no povo de Deus, embora houvesse as Escrituras, mesmo assim utilizavam-se os judeus mais da tradição que da Escritura, como se vê  em Ex. XVIII- 8, Deut. XXXII- 7, Jz VI- 13, Sl. XLIII-1, LXXVII-5, Ecli VIII-2”[15] Nisto consiste a solução de vários problemas, pois nos livros de Moisés há tão poucos ensinamentos acerca da vida futura, dos prêmios e castigos eternos, e, de modo geral, acerca de muitas verdades que são os fundamentos da vida moral e religiosa. Sublinhe-se: é esta uma grande solução, pois a Escritura superveniente supunha uma antecedente regra da tradição, e a mantinha em seu pleno vigor. Mas talvez tenha ocorrido de modo diverso na economia do Novo Testamento? Muito pelo contrário, no Novo Testamento demonstra-se  por fatos mais luminosos a precedência da tradição, pois todos os monumentos das origens cristãs mostram as igrejas fundadas pelos apóstolos sem as escrituras e com plena vitalidade. Não tinha ainda Mateus escrito e já a Igreja por toda a Judéia, Galiléia e Samaria estava edificada caminhando no temor do Senhor (At. IX-31). Tampouco Marcos, e já a Igreja Romana, cuja fé se anunciava em todo mundo, (Rom. 1-8). Tampouco João, e já tinha fundado todas as igrejas da Ásia e governava as igrejas, como escreve Jerônimo em 1 de script. eccles. Às igrejas já existentes eram dirigidas todas as epistolas apostólicas, como está claro por suas inscrições. Em suma, não a um instrumento escrito apelava Paulo, quando dizia aos Gálatas, que tentavam afastar alguns do reto caminho do evangelho:  “Se alguém vos evangelizar algo diferente do que aprendestes seja anátema (Gal. I-9).” E aos coríntios diz: “Da minha parte vos louvo, irmãos, porque vos lembrais de mim em tudo e conservais os meus preceitos como vos transmiti.” E acrescenta: “Com efeito, o que recebi do Senhor também vos transmiti: que o Senhor Jesus, na noite em que ia ser entregue, etc”. Deve-se dizer, portanto, que desde o inicio houve um só   regra da tradição, e que a subsequente chegada da Escritura não pôde subvertê-la como meio fundamental da conservação e propagação da doutrina revelada, meio este constituído de uma vez para sempre na Igreja, mas para que a ela subordinasse e servisse cada vez mais.
2. Mas ainda que a regra da tradição não antecedesse a regra da Escritura na ordem do tempo, antecedê-la-ia sempre na ordem do conhecimento. E com razão, a tradição brilha como regra de fé pelos mesmos argumentos pelos quais brilha a credibilidade da religião cristã ou da Igreja católica. Com efeito, demonstrados esses argumentos, demonstra-se pelo mesmo argumento tanto a revelação da Igreja católica como instituída por Deus quanto o estabelecimento daquele órgão do magistério perene como fundamento da mesma Igreja.[16] Demonstrando-se isso, conclui-se que a pregação desse magistério é conduzida por Deus para que a ela sempre se conforme a fé dos crentes. Fica claro, pois, pelo que foi dito que se considera a tradição como regra de fé obrigatória, visto que a pregação da Igreja e a tradição autêntica, de que nos ocupamos agora, se identificam. Não importa o método ou processo na demonstração da verdadeira religião: se se toma o princípio da argumentação seja das notas divinas inerentes à Igreja, seja dos monumentos históricos da missão, advento e obra de Jesus Cristo, conforme a dupla norma do Concílio Vaticano, Sessão 3, cap. 3.[17] Permanece sempre a regra da Tradição.
O mesmo não ocorre com a Sagrada Escritura. Com efeito, sem uma demonstração prévia dos preâmbulos da fé ou sem uma teologia fundamental, ignora-se absolutamente se as Escrituras são inspiradas por Deus. Pois, ainda que não existissem as Escrituras, subsistiriam os mesmos princípios da demonstração; igualmente a mesma conclusão a que conduzem os princípios. Porque, se casualmente ao longo da demonstração, ao tratar do monumento histórico da revelação que nos trouxe Jesus Cristo, se encontrarem os testemunhos de Cristo pelos quais se confirma a fé dos judeus na Lei e nos Profetas, ao mesmo tempo e como que acidentalmente, pode-se também chegar ao conhecimento das mesmas Escrituras do Antigo Testamento, que se chamam protocanônicas,  mas acerca das Escrituras do Novo Testamento não se encontra absolutamente nada. Mas, ao contrário, se se procurar  um testemunho idôneo acerca dessas Escrituras fora da autêntica tradição, não se encontrará tal testemunho senão nos escritos dos padres apostólicos. Além do fato de que o conhecimento da autoridade dos apóstolos como órgãos de promulgação da revelação já supõe conhecida a regra da tradição que deles decorre: pergunto o que se encontrará, nos escritos apostólicos a respeito das escrituras inspiradas do Novo Testamento, como formalmente inspiradas? Absolutamente nada salvo aquele conhecido inciso da segunda epistola de Pedro, III-16, acerca das epístolas de Paulo. Mas as epístolas de Paulo não são todas e nem de longe as mais importantes escrituras do Novo Testamento. Ademais, ainda que ao tempo em que escrevia Pedro já fossem editadas as epístolas de Paulo, não poderia dizer algo incerto. Em suma, esta segunda epistola de Pedro é repelida como suposta e não genuína precisamente por aqueles que professam um juízo fundado exclusivamente nos documentos escritos. De todos os modos, portanto, o sistema protestante é como um pêndulo no ar, carecendo de fundamento. Não é falso compará-lo com o sistema do mundo da cosmogonia dos hindus, que edificam o universo à maneira do elefante que põe os pés sobre quatro tartarugas sem que digam o que é aquilo em que as próprias tartarugas se apóiam. Mas ao contrario, do órgão da tradição, a que Cristo confiou o múnus de ensinar-nos toda verdade, com direito e razão recebemos a verdade revelada da integral Escritura canônica inspirada, de tal maneira que pela Tradição a Escritura brilhe e seja por isso mesmo na ordem do conhecimento posterior.
3. Ademais, a Tradição antecede à Escritura também na ordem da compreensão, porquanto, efetivamente, não na Escritura, mas na Tradição a doutrina revelada foi integralmente depositada. Digo isto não só porque, como se viu há pouco, nem sequer o cânon da Sagrada Escritura nela mesma está contido, mas também porque ela mesma em vários lugares nos remete à Tradição, como à fonte de certos dogmas que não estão escritos, conforme demonstra São Roberto Belarmino a partir de I Cor. XI-2, 2Tes. II-14, 2Tim I-13, 3 Jo. XIII. Mesmo porque, como vimos, a redação dos livros do Novo Testamento resultou de circunstâncias contingentes, o que comprova cabalmente não ser intenção de Deus que tivéssemos nos livros sagrados o depositário completo da verdade revelada. Mas, ao contrário, vê-se assim na Tradição um precioso depositário. Com efeito, é a Tradição o primitivo, o principal instrumento estabelecido por Cristo. A ela foi em seguida confiada a própria Escritura. Digo que lhe foi confiada a Escritura não só em ordem ao seu conhecimento, de maneira que se conhecesse qual  a Escritura que se deveria receber como realmente inspirada por Deus, mas também quanto ao conhecimento do seu sentido, que na ausência de uma chave de interpretação, ou ficaria obscura ou incerta. Conclui-se, pois, que no depósito da tradição de algum modo se contém igualmente a revelação escrita, e, por conseguinte, a totalidade da revelação.
Assim, pois, a tradição é a regra da fé antecedente em todos os sentidos, no tempo, no conhecimento, na compreensão. Pergunta-se por fim: regra remota ou próxima? Digo que é a remota e a próxima, seja considerada uma ou outra.
4. Efetivamente, não se dissolvendo a tradição, mas mantendo-se pelo decurso dos séculos até nós, a pregação da Igreja é recebida de duplo modo. Primeiro, nos anéis interpostos das idades antecedentes dos quais deriva e mediante os quais sempre continua com a pregação daqueles que foram os primeiros e imediatos pregoeiros da palavra revelada. Depois, considerada  separadamente, em qualquer fase do tempo. Do primeiro modo, portanto, a pregação da Igreja é a tradição, sob a precisa razão da transmissão da doutrina revelada como que de mão a mão desde os apóstolos, ou tradição à maneira reduplicativa, como um canal ininterrupto que vem da fonte através dos séculos, e sob este aspecto é a regra remota da fé católica. Com efeito, considerada assim, só brilha à luz de uma investigação dos monumentos da antiguidade, ou seja pelo estudo das obras que desde a antiguidade conduzem ao conhecimento da sentença, da profissão e da fé que havia outrora acerca do doutrina cristã, seja considerada na sua integridade seja em cada cabeça. Só tem ou pode ter razão de regra próxima mediante a investigação e avanço da ciência teológica se conhece aquilo que contém os dogmas. Pois deve-se examinar a pregação eclesiástica, já não considerada em coerência de continua sucessão desde a primeira origem da revelação, mas absolutamente em seu exercício em determinado tempo. Sob este aspecto, é sempre a tradição, na medida em que sempre transmite aquilo que explicita ou implicitamente recebeu dos maiores, mas já é a tradição sob uma precisa formalidade da autoridade do magistério que discretamente propõe e explica o que é necessário crer segundo a revelação que vem dos apóstolos. E assim também é regra próxima e imediata da fé, que com o infalível e sempre vivo magistério da Igreja católica, como formalmente é magistério, justamente se identifica.
Mas de qualquer modo que se considere a tradição, seja como regra próxima ou remota, observe-se com atenção isto: o seu autêntico órgão não teria sido instituído por Cristo para conservar ou propor fórmulas materiais e inertes, mas o verdadeiro sentido da verdade revelada, e por isso o múnus de transmitir, guardar e propor infalivelmente o depósito da fé é inseparável do múnus igualmente infalível de definir, declarar  e explicar o que nele está contido. Pois bem, se a tradição não é apenas conservativa, mas também explicativa de toda a palavra de Deus, tanto escrita quanto não escrita, certamente algo nela, no decurso dos séculos deve ser reconhecido sem sombra de dúvida: não contradiz de nenhum modo a imutabilidade do dogma, em suma nada detrai do conceito de depósito, no qual não é lícito nada subtrair ou agregar. Se isto ficar claro em conclusão deste capítulo já terá valido a pena esta obra.

§ 4

Do que ficou dito resulta o seguinte: a tradição teve ao longo dos séculos certa evolução mas ao mesmo tempo uma absoluta imutabilidade e consenso sempre no mesmo dogma, mesma sentença, de maneira que, para investigar o sentido tradicional, as suas regras específicas diferem de longe daquelas que regem a ciência histórica e são as que foram estabelecidas com razão pelos Padres.
Convém, pois, formular o conceito verdadeiro e genuíno de tradição, considerando para tanto o que foi dito até agora e examinando não só o que daí resulta mas também o que não resulta. E para que não nos seja atribuída a pecha de divagação comecemos logo pelo que resulta.
Em primeiro lugar, não se deve dizer que todas as verdades pertencentes ao depósito da fé deviam constar de um mesmo modo tanto na primitiva pregação dos apóstolos quanto na posterior tradição, em virtude das diferentes condições dos lugares e dos tempos. Com efeito, uma coisa é o conjunto de verdades de fé e moral de que consta a doutrina cristã transmitida desde o inicio e sempre sob o carisma da infalibilidade; outra coisa, porém, é dizer que todas foram sempre propostas de forma igualmente explícita[18] expressa[19] e concisa[20] Pois isto nada tem em comum com a indefectibilidade da norma da verdade, como se pode ver pelos termos, exceto o fato de a proposição plena de toda a doutrina, desde o início, dificilmente ter sido conaturalmente possível, e, por outro lado, era menos necessária, porque simultaneamente com o depósito dos dogmas o carisma do Espírito Santo para a explicação dos mesmos segundo as necessidades de cada período transmitia-se aos sucessores dos apóstolos em cumprimento da promessa e da instituição de Cristo. Faça-se uma reflexão atenta sobre o que há pouco foi dito acerca do duplo múnus dos guardiães e doutores da fé.
Ademais, se da infalibilidade da tradição muito pouco resulta, todas e cada uma das verdades  pertencentes objetivamente ao depósito da fé deveriam brilhar sempre no candelabro da Igreja em distinta e explicita clareza das suas notas. Mas isto não ocorre: não poderia haver no grêmio da Igreja doutrinas a respeito das quais há diversidade  de opiniões ou sentidos. “No entanto, existem algumas  verdades – demonstra-se a partir de todas aquelas definições dos concílios ou pontífices, que declaravam como verdades de fé – a respeito  das quais antes da definição os doutores católicos, sem detrimento da fé e da comunhão, seguiam sentenças diversas, convergindo por outro lado em afirmar que tais doutrinas ainda não pertenciam manifestamente ao depósito da fé. Conclui-se, outrossim, que ainda hoje são muitas as questões teológicas pouco definidas, que entretanto concernem a alguns sentidos da doutrina revelada, até que, terminada a análise da doutrina revelada, pareça poderem ser definidas pelo infalível magistério. Por essa razão, são familiares aos  padres as distinções entre substância da fé que é a mesma para todos, e entre as questões de mais profunda inteligência, (Iren, 1. I, c. 10, n.23). Entre as doutrinas que muito manifestamente se ensinam nas igrejas, algumas são definidas pelo magistério da Igreja, a respeito delas há uma só sentença da Igreja, e outras devem ainda ser investigadas acerca da Sagrada Escritura e pesquisadas com sagacidade, não estão completamente esclarecidas, não foram explicadas pelo magistério, não têm o brilho de uma exposição do magistério (Origen., de princip. In praefatione). Distingue-se na doutrina cristã entre a regra da fé que para nós não tolera questionamentos, e aquilo que, salva a regra da fé pode ser questionado (Tertull., Praescript. C. 13). Uma coisa é o que pertence aos próprios fundamentos da fé, e outras são  aquelas nas quais, amiúde, até os doutíssimos e excelentes defensores da fé não estão de acordo, e um diz, sobre o mesmo assunto, algo melhor e mais verdadeiro que outro (August., lib. I Contra Iulian., c. 6). Distingue-se o erro tolerável nas questões não devidamente solucionadas, ainda não esclarecidas pela suprema autoridade da Igreja, e erro não tolerável, que ameaça o fundamento da mesma Igreja (August., Serm. 294, n.4). Distingue-se finalmente uma pequena porção da nossa fé menos elucidada, e outra que o Senhor não quer que ninguém em sua Igreja ignore (Leo M. epist. 30 ad Pulcheriam, c. 2)”.
Em suma, em qualquer tempo houve ulteriores conclusões da doutrina revelada que, contidas menos obscuramente no depósito transmitido pelos apóstolos e ainda não ilustradas pela plena luz de uma diligente investigação, não passaram para próxima regra da fé ou suficiente proposição do magistério eclesiástico. De modo que, a respeito de tais conclusões, pode às vezes não haver sentença harmoniosa no grêmio da unidade, antes de encerrada a controvérsia pela autoridade da Igreja.[21] E isto não milita contra a reivindicada infalibilidade da tradição.
São realmente distintas as doutrinas que derivam de modo necessário da absoluta assistência de Deus. Em primeiro lugar, deve-se dizer que é impossível que uma opinião defendida por qualquer homem ou doutor privado obtenha uma aprovação geral como se fosse doutrina de fé e prevaleça na Igreja sob o eminente nome de divina tradição. Sirva de exemplo a opinião dos milenaristas que, introduzida inicialmente por Papias por causa de sua nímia simplicidade, e por causa de reverência devida ao homem que tinha convivido com os apóstolos, foi recebida e divulgada por alguns dos mais ilustres padres do terceiro século, e posteriormente foi condenada por unanimidade e a partir do século quarto em diante proscrita entre as fabulas.
Em segundo lugar, deve-se dizer que, efetivamente, se algum ponto de doutrina, considerado inicialmente mais obscuro na profissão de certo principio mais universal, ou conservado mais pelo uso que pela expressa e formal pregação, começar depois a entrar em controvérsia  quanto à sua origem de divina tradição, havendo diversas opiniões divergentes a respeito, até que tal  questão seja clarificada, tal ponto de doutrina será conduzido ao brilho do pleno consenso: resulta – digo eu – que é absolutamente necessário que uma doutrina de tal natureza pertença ao genuíno e autêntico depósito do qual é guardiã a Igreja. Como se vê, é admirável a providência de Deus que não permite que a tradição se afaste do reto caminho, graças ao carisma certo da verdade  de que fala Irineu 1. 4, c. 26; graças ao paráclito doutor da verdade que não deixa as igrejas entender nem crer de modo diferente daquele que receberam dos apóstolos, como diz Tertuliano em Praescript. c. 28; graças ao Espírito Santo que habita a Igreja, a fim de que a investigação acuradíssima não siga nenhum erro, como diz Santo Agostinho in Ps. 9, n. 12, e em outras passagens amiúde.
Em terceiro lugar resulta que nem tudo aquilo que pelo órgão da tradição é ensinado como dogma é exatamente uma verdade revelada de modo infalível por Deus, mas uma proposição de fé que atravessa os séculos com idêntico sentido desde o início da pregação. Com efeito, a pregação consiste no sentido, não nas palavras; é próprio dos heréticos arrastar para debaixo das palavras e fórmulas da tradição católica sentidos diversos daqueles que eles encontraram estabelecidos pela Igreja. Assim, Sabélio conservava a Trindade, mas apenas nominalmente. Igualmente Ario confessava o Padre, o Filho e o Espírito Santo, mas como três hipóstases de diversa substância, mas não como de uma só, indivisa e criadora essência. De modo semelhante, Nestório afirmava uma só pessoa de Deus e de homem em Cristo, mas de tal maneira que não se dissesse que o Verbo está de forma subsistente unido à carne. E Pelágio afirmava a divina graça, mas entendendo por graça o livre arbítrio, que realmente, em sua ordem, é também um dom gratuito de Deus. Berengário concedia uma presença sacramental, mas mística, não real, segundo uma simbólica representação, não segundo a verdade da substância. De modo semelhante ocorre com os outros, aos quais sempre foi comum distinguir-se por um novo sentido contra o sentido católico, pelo que incorrem em erro, pois aquele sentido de que se afastaram é o sentido imutavelmente verdadeiro. De modo que é falsa doutrina dizer que no estilo da Escritura se encontra outra doutrina: ‘Roguei-te, diz, que ficasses em Éfeso…a fim de impedir que outros ensinassem diferentemente.[22] E reitera: “Admiro-me de que tão rapidamente passeis para outro Evangelho, que não é outro, senão porque alguns vos conturbam e tentam  afastar-vos do Evangelho de Cristo.”[23] Efetivamente, em qualquer tempo, acerca do dogma da fé dizer algo diferente daquilo que do mesmo dogma se dizia antes será tido por heterodoxia por oposição à ortodoxia, e toda sentença herética facilmente e sem discussão será conhecida só pela inovação, na medida em que induz a um sentido diverso daquele aprovado pela tradição e pregação daqueles a quem disse Cristo: Eis que estou convosco todos os dias. De resto, inutilmente recorrerão às Escrituras. Com toda razão diz Tertuliano que as Escrituras não formaram as igrejas, mas às igrejas já formadas são elas endereçadas, de maneira que primeiro se deve investigar, de quem são as Escrituras e quem retém a chave de sua interpretação. Debalde igualmente apelarão para uma mais sublime gnose, superior inteligência. Pois os antiqüíssimos padres excluíam esse pretexto dos gnósticos, mostrando contra os hereges o caminho régio, a antiga Igreja que antecede todas as seitas e as vê separar-se. Estas são as escolas onde se disputa, aquela a única Igreja de verdadeiro nome em que se crê em Deus. Por conseguinte, quem, sob qualquer pretexto contra a tradição da Igreja se insurgir, inventando novos sentidos, deixa de ser fiel, afasta-se do tranqüilo porto da divina verdade e se lança no tempestuoso mar das opiniões humanas. Por fim, inutilmente recorrerão ao tempo remoto das origens, pois talvez valesse a exceção se a imutabilidade da tradição com o mesmo sentido e a mesma sentença tivesse outro fundamento que a assistência de Cristo e a promessa de Cristo. Entretanto, sempre vale o mesmo argumento que os mais antigos padres opunham aos inovadores. “Por isso, dizeis: O evangelho foi pregado em todas as nações, o mundo creu, fez-se a Igreja, cresceu, frutificou, mas a imperícia dos maus interpretadores depois errou e pereceu; só entre nós e aqueles que nos seguem na terra permaneceu a Santa Igreja. A verdade evangélica, bem como a autoridade inviolável dos profetas e santos padres, refuta tal vaidade sacrílega. Porquanto à sua Santa Igreja, no seu evangelho, o Senhor promete dizendo: “Eis que estou convosco todos os dias até a consumação do século. É, pois, falso o que crês e afirmas a respeito do corpo de Cristo.[24]
Em quarto lugar, quando se trata daqueles dogmas em que consiste a suma de toda a religião cristã, cumpre dizer que aquelas coisas que desde o início foram propostas imediatamente pela Igreja como dogmas explicita e formalmente por essa mesma razão não podem ser assunto de grande dificuldade, mas basta uma demonstração teológica com base na tradição. Santo Agostinho oferece-nos quatro regras que simplificam toda a matéria. A primeira regra diz que não é necessário despender todos os testemunhos dos padres, quando a tradição consta de atos públicos, autênticos, universais, como, por exemplo, no concernente ao pecado original, ao batismo das crianças para a remissão dos pecados e ao exorcismo que a Igreja faz sobre as crianças.[25] A segunda regra diz que, se for necessário decidir a matéria a partir de testemunhos particulares, com razão se pode contentar só com o testemunho da Igreja Ocidental. E a razão que se aduz é não só porque tem o especial privilégio de ter em seu seio a Sé Apostólica, com a qual está mais intimamente unida, mas também, e sobretudo, porque na fé dos latinos brilha suficientemente a fé dos orientais, já que eles mesmos são principalmente cristãos e em ambas as partes da terra existe uma só fé e tradição.[26] A terceira regra, aliás muito semelhante à precedente, diz: “Se se quer produzir testemunhos seja dos latinos seja dos gregos, não é necessário citar muitos autores, mas basta um  ou outro doutor respeitado por sua autoridade, de maneira que por ele se conheça o pensamento dos outros. E isto por causa da unanimidade da Igreja conduzida por um só espírito e uma só tradição. Foi justamente isso que sublinhou São Vicente de Lerins no segundo Communitorium nº 30, onde, após enumerar aqueles dez padres cujos testemunhos são citados no Concílio de Éfeso, acrescenta: “Todos esses são, pois, mestres, conselheiros, testemunhas e juízes perante o Concílio de Éfeso. Abraçando a sagrada doutrina deles, seguindo a doutrina desses padres, crendo-lhes no testemunho, obedecendo-lhes ao juízo sem nenhuma reserva, preconceito ou favor, o Concílio pronunciou-se a respeito das regras da fé. Embora pudesse mencionar um número muito maior, não foi necessário, pois não convinha perder tempo com uma multidão de testemunhas, e ninguém duvidou que aqueles dez pensassem diferentemente que todos os outros seus colegas.[27] Por derradeiro acresce uma quarta regra que diz que o sentir unânime da Igreja presente é prova idônea do sentir antigo, na medida em que, tendo o conhecimento daquilo que hoje na Igreja se conserva, não se pode pensar que fosse diferente a fé nos séculos pretéritos.[28]
Ademais, esta regra de Santo Agostinho, que concerne especialmente à nossa matéria, porquanto esclarece o sentir da Igreja contemporânea acerca dos dogmas da nossa religião, é um sinal evidente de que o sentir de hoje não é de forma alguma diverso do da antiguidade. Nisto, como que em última conseqüência das premissas consiste a infalibilidade da tradição. E se prescindirmos daquelas ulteriores determinações da fé que só com o decorrer do tempo, como se viu acima, lançaram luz aos dogmas, (porque esta consideração nos afastaria do nosso propósito), mas nos limitamos a falar apenas daquelas coisas que constituem uma súmula da religião cristã, que lhe pertencem como fundamentos da doutrina revelada, que Nosso Senhor quis que ninguém em sua Igreja ignorasse, do mesmo modo como se exprimiam os supracitados padres, logo ficará patente a verdade da conclusão. Aquelas verdades fundamentais, com efeito, desde as origens foram propostas  explicitamente como dogmas na tradição e no magistério da Igreja; além disso, tudo aquilo que uma vez se propõe na tradição como dogma, assim permanece para sempre no mesmo sentido tal como foi transmitido e crido. É, pois, necessário que seja ainda retido esse sentido que firmemente desde o princípio mantido, e por isso, em suma, não se pode conceber que aquelas verdades que chegaram a nós sob a égide dos santos padres e sempre gozaram de autoridade na Igreja venham a ter outro sentido, diferente daquele que se ensina e crê e se transmite à posteridade à maneira de um depósito inviolável.
Não obstante, hoje há os neo-críticos dizendo que nada prevalece contra o fato positivo. Há muitos antigos padres que de fato pensaram de modo diferente de nós acerca dos dogmas da religião, inclusive em assuntos essenciais, como, por exemplo, a propósito da trindade, da encarnação, do pecado original, da graça etc. Porque – dizem – os padres anteriores à Nicéia expressaram a processão do Filho e do Espírito Santo em termos que encerram idéias falsíssimas e completamente diversas das nossas, como, por exemplo, as idéias do triteísmo, da desigualdade das pessoas, até mesmo a idéia da corporeidade de Deus. Realmente, os antigos até Cirilo de Alexandria inclusive, não pensam mais retamente da encarnação do que pensou depois Eutiques e não foi senão a custa de longas disputas posteriores que vemos delineado o dogma antes informe da união hipostática. Muitos, antes de Santo Agostinho são verdadeiros pelagianos ou certamente semipelagianos. Crisóstomo e os outros gregos não sabem nada sobre o pecado original etc. Assim agora opinam os nossos críticos, que entretanto não acrescentam nada de novo, mas trilham as vias dos socianistas e calvinistas, colhendo com fácil erudição os lugares da patrística de que se utilizam junto às obras de controvérsia de Petavio ou Bossuet contra Jurieu e Ricardo Simão[29]. De resto, em que pese a fonte de  sua erudição, o fato indubitável é que o método de interpretação por eles adotado é protestante, o qual, certamente, padecendo do mesmo defeito que eles, conduz às mesmas errôneas conclusões. Além disso, antes desse defeito ou de qualquer outro, importa considerar o que deu azo à divulgação de opiniões segundo as quais os antigos padres da Igreja são tidos por heterodoxos, de maneira que, restabelecido o estado da questão, esta possa ter uma solução de um juízo equânime. Disto se ocupará o próximo capitulo.

Capítulo II

Sobre a causa das aparentes oposições aos testemunhos da tradição 

“Inclinamo-nos mais às coisas opináveis que à verdade. Realmente, esta é austera e grave.”
(Clemente de Alexandria, 1,7, Strom. C. 16)
Porque a doutrina da tradição, embora seja sempre a mesma, nem por isso é sempre examinada do mesmo modo, escoimada e polida, mas recebe com o passar do tempo, sobretudo na ocasião do surgimento das heresias, maior evidência, luz, precisão. Em termos gerais,  distinguem-se três estados referentes a cada dogma: estado de simples fé, estado de explicação perfeita e estado intermediário, quando começava a passar do estado de simples fé ao estado de especulação teológica, e, por causa da multíplice dificuldade das origens, ainda havia exposições menos exatas e modos de falar por vezes ambíguos. Tais exposições do dogma, ainda que não completamente compatíveis com o sentido ortodoxo, dele, entretanto, se aproximam se se levam em conta os princípios da exegese patrística.

§ 1

Diz Santo Tomás no prólogo do opúsculo Contra errores Graecorum: “Os erros acerca da fé deram ocasião de surgirem os santos doutores da Igreja, para que transmitissem aquelas coisas que são de fé com maior circunspecção eliminando os erros, como está patente que os santos doutores anteriores ao erro de Àrio não falaram tão claramente a respeito da unidade da essência divina como os doutores posteriores; e o mesmo se dá com relação aos outros erros, o que não aparece em vários doutores aparece expressamente só no mais egrégio dos doutores Santo Agostinho. Pois em seus livros publicados após o surgimento da heresia pelagiana falou com mais discrição sobre o poder do livre arbítrio do que nos livros que havia publicado antes do surgimento dessa heresia, nos quais, defendendo a liberdade do arbítrio contra os maniqueus, formulou algumas idéias que os pelagianos depois tomariam em própria defesa contradizendo a divina graça. De maneira que não é de admirar se os modernos doutores da fé, após os vários erros surgidos, falam mais cautamente e com maior rigor sobre a doutrina da fé para evitar toda heresia. Por conseguinte, se nos escritos dos antigos doutores se encontra alguma coisa que não se diz com cautela hoje, não se deve desprezar ou rejeitar tal coisa, mas, ao contrário, convém desenvolvê-la e expô-la com reverência.” No referido lugar o doutor angélico, que havia tomado tal doutrina, como de costume, de Santo Agostinho, diz: “Aprendemos, a respeito do dom da perseverança, n. 53, que todas as heresias suscitaram para a Igreja suas próprias questões contra as quais mais diligentemente se defenderia pela Sagrada Escritura do que se não a compelisse nenhuma necessidade. E em outra passagem o mesmo Santo Agostinho observa que não importa buscar nos padres que escreveram antes do surgimento das heresias um modo tão acurado de falar como naqueles que escreveram mais tarde: seja porque, não movidos por nenhuma questão e julgando compreender tudo na Igreja conforme o bom senso, falavam com mais segurança; seja porque, tocando brevemente e de passagem as matérias ainda não discutidas, detinham-se mais naquelas matérias em que combatiam os inimigos da Igreja de então, e também nas exortações sobre as virtudes com que se serve a Deus para alcançar a verdadeira felicidade.[30] E tal resposta genérica, não ao modo dos teólogos, é também de Atanásio, Jerônimo, Lerins e de outros. Esta é a regra na teologia, e a solução das dificuldades no concernente à tradição, cuja doutrina é realmente sempre a mesma, mas não sempre do mesmo modo clara e expressa. Com efeito, como diz São Vicente de Lerins, cresce, com o tempo, em evidência, luz, distinção ou precisão, sobretudo nas ocasiões de ressurgimento das  heresias. Pois são as mesmas heresias que criam especial necessidade de escrutar os dogmas, examinar os conceitos em que se formulam, propor distintamente as notas que neles se discernem, reunir-lhes os modos de compreensão e significação pelas mesmas realidades compreendidas e significadas, encontrar ainda os vocábulos idôneos pelos quais coisas tão profundas possam expressar-se, em suma, aperfeiçoar todas aquelas coisas atinentes à explicação teológica, e tudo isso só pode obter por uma laboriosíssima e acurada investigação.[31]
Está patente, pois, que uma é a simples noção dos dogmas que se conserva pela simples fé, outra é a noção esclarecida, polida, exata que o teólogo busca para a inteligência da fé. Patenteia-se, outrossim, que na especulação teológica sempre há algo oferecendo dificuldade e algo propondo uma solução da dificuldade. Por essa razão ocorreu que, antes do laborioso estudo de todas aquelas matérias que as heresias produziram e obrigaram a dever de estudo, os tratadistas católicos laboraram em certas ambigüidades, que não se encontram em teólogos posteriores.[32] Assim, por exemplo, o Filho de Deus é Deus, não é consigo também Pai, e há testemunhos eloqüentes desta fé perpétua em todo tempo. Mas quando chega a ocasião de tratar que é Deus de Deus, Deus procedente do Pai, Deus gerado por Deus gerante, a palavra muitas vezes se confunde. Antes de ser depurado o conceito das origens divinas pela dúplice via da remoção e da excelência e clarificado em vista da distinta noção das relações subsistentes, toda a explanação do mistério será deficiente e imperfeita. A respeito de não gerado e  “inascível em” parecerão falar como se a “inascibilidade” contivesse algo de mais perfeito; de geração divina como se tivesse mesclada eficiência, que, realmente, para nós, implica toda ação de gerar; de Deus gerado, como se esse gerado dependesse do seu princípio, como nas criaturas o originado depende do seu originante. E esta imperfeição no modo de expor e dizer não se supera completamente senão quando a necessidade de responder às molestissimas questões dos hereges conduz as mentes às locuções mais precisas.[33]
O mesmo ocorre quando se fala do dogma da encarnação. Um e o mesmo é o filho de Deus e o filho do homem, filho de Deus desde toda eternidade, filho do homem no tempo, que permanecendo o que era começa a ser o que não era. Esta é a nua e simples fé. Mas quando se trata de considerar de que modo se juntou a humanidade pela união física e substancial àquele que em forma de Deus preexistia e subsistia, não é fácil explicar porque tudo depende de conceitos precisos e claros da união na natureza, da união na pessoa e das diferenças formais de ambos. Pelo que nos primórdios da ciência teológica que antecedeu as heresias categóricas sobre a união hipostática, devido à dificuldade de exprimir aquelas coisas acerca das quais não havia ainda uma terminologia fixa e rigorosa, não se pode deixar de encontrar certos conceitos, que mais tarde, graças às contribuições eruditas dos doutores, parecerão ambíguos e até inconciliáveis com a fé na inconfusa união da divindade e humanidade em um só sujeito do Verbo.[34]
Com relação ao dogma do pecado original, verifica-se a mesma coisa. Trata-se de verdadeiro pecado, mas pecado sui generis, que não se diz de forma unívoca com o pecado de todos conhecido. Pecado, digo, da natureza, não da pessoa; pecado voluntário não da vontade própria, mas só da vontade da cabeça da espécie humana, pecado que do primeiro pai passou para a descendência, mas quanto à macula, não quanto ao ato, em suma, pecado que de certo modo se diz alheio e de certo modo também nosso: alheio pela propriedade da ação, nosso pelo contágio de propagação. Por isso, a criança recém-nascida em algum sentido é inocente, e em outro sentido pecadora; porquanto o grande pecado de Adão até certo ponto passou para a posteridade e até certo ponto não. Por isso, finalmente, se antes do surgimento da heresia pelagiana, há lugares da patrística em que brilha a verdade do pecado original, outros lugares há igualmente em que a doutrina parece confusa e de algum modo obscurecida.[35]
Não de outro modo se deve dizer a propósito do dogma da graça, porque se a graça simplesmente precede ao mérito da boa vontade, mas também a boa vontade do homem precede muitos dons de Deus, e sobretudo o dom pelo qual nos tornamos e somos justos: enquanto, realmente, o próprio homem assentindo e cooperando livremente com a graça excitante, deve dispor-se para a sua própria justificação. E por isso nas Sagradas Escrituras não está dito apenas: “Convertei-nos, Senhor, a vós, e converter-nos-emos, mas também: “Convertei-vos a mim, e eu converter-me-ei a vós.” Por isso, assim como se encontram nos escritos dos antigos padres testemunhos em que se diz que as crianças estão sem pecado, assim também se encontram outros em que se diz que Deus dá a graça àqueles que julga dignos ou preparados para recebê-la. O que certamente, de algum modo, é verdade, ainda que seja verdade que por obra da mesma graça se tornem dignos aqueles que são julgados dignos. Este último aspecto não está completamente silenciado na doutrina de alguns antigos, embora não esteja  explanado com aquela clareza e precisão, com que após o diligente exame da questão dizia Santo Agostinho ser tudo atribuível a Deus: “Quem prepara a boa vontade do homem para ser ajudada, ajuda-a também preparada. Com efeito, a boa vontade do homem precede muitos dons de Deus, mas não todos; o que ela mesma não precede é o próprio dom de Deus. Pois ambas realidades estão expressas nas sagradas letras: “Sua misericórdia me precederá e Sua misericórdia me acompanhará. A quem não quer precede a fim de que queira; a quem quer acompanha para que não queira em vão.  De fato, por que somos instruídos a rezar pelos nossos inimigos senão afim de que aqueles que não querem viver piamente, Deus neles opere e queira? Igualmente, porque somos instruídos a pedir para receber senão para que  aquilo que queremos seja feito por aquele que nos fez querer? Oramos, pois, pelos nossos inimigos para que a misericórdia de Deus os preceda como nos precede a nós; mas oramos por nós para que a sua misericórdia  nos acompanhe.”[36] E assim sucessivamente.
Por conseguinte, não é licito concluir da imperfeição das explicações ou da ambigüidade de alguns apologistas que os padres mais antigos tiveram uma sentença distinta da dos padres posteriores a respeito dos dogmas da nossa religião. Impõe-se, claramente, uma solução diversa: Ou porque não tinham ainda então alcançado uma intima inteligência da verdade revelada, como aqueles que escreveram sobre várias matérias após o surgimento das heresias; ou porque ocupados em refutar um erro, não se ocuparam de outro erro oposto (realmente em se tratando de qualquer dogma entre escolhos opostos cai e facilmente parece ofender a um dogma quem a outro com cuidado estuda); ou, finalmente, porque às vezes tomavam locuções em si mesmas ambíguas e menos depuradas e sem uma explicação em adendo, não admitindo absolutamente que seus leitores não as recebessem e entendessem em sentido católico. Agora deve demonstrar-se mais diligentemente que tal solução não é apenas verossímil e provável, mas realmente a única verdadeira a ser firmemente mantida.

§ 2

Mas para que procedamos com certa ordem, convém considerar primeiro aqueles três estados da doutrina referidos na tese, segundo os quais os testemunhos e lucubrações dos padres podem ser facilmente classificados em categorias semelhantes
1. Em primeiro lugar, podemos falar do estado de simples fé. A tal estado referem-se principalmente as epistolas ou confissões dos antiqüíssimos  bispos e mártires, naquela idade de ouro em que  tendo ainda as primícias do Espírito, e como odres cheios daquele vinho derramado em pentecostes, não tinham ainda aquela laboriosissima ocupação que Deus confiou aos filhos dos homens para que se ocupassem da disputa, i. e, da dialética; mas do tesouro do seu coração tiravam  uma ingênua doutrina que haviam recebido dos apóstolos. De modo razoável, Inácio testemunhava excelentemente uma simples fé na trindade caminhando para o martírio, quando escrevia a Magnesios c. 13: “Esforçai-vos, pois, em permanecer firmes nas doutrinas do Senhor e dos apóstolos, para que tudo quanto fizerdes vos suceda com prosperidade, com fé e caridade no Filho, no Pai e no Espírito Santo…Submetei-vos ao bispo e a vós mutuamente, como Jesus Cristo ao Pai segundo a carne, e os apóstolos a Cristo e ao Pai e ao Espírito”[37]. Expressou igualmente uma simples na encarnação o santíssimo mártir na epistola aos efésios c.7: “Há um só medico, carnal e espiritual, feito e não feito, no homem existindo Deus, na morte verdadeira vida, de Maria e de Deus, primeiro passível e depois impassível, Jesus Cristo Nosso Senhor”[38]. E também a Policarpo, c. 3: “Aquele que antes do tempo esperou o intemporal; invisível tornou-se para nós visível; impassível, fez-se para nós passível, que de todo modo por nós sofreu”[39]. Uma simples fé em ambos mistérios manifestava a última oração de Policarpo em sublime rogo: Senhor Deus onipotente, Pai de vosso amado e bendito Filho Jesus Cristo, por meio do qual vos conhecemos…bendigo-vos, porque neste dia e nesta hora vos dignastes receber-me no número dos vossos mártires, no cálice de vosso Cristo…Por tudo isso vos louvo, vos bendigo, vos glorifico com o vosso amado Filho, sempiterno e celeste Jesus Cristo, com o qual seja dada glória a vós e ao Espírito Santo agora e por todos os séculos. Amen”[40]. E aquela confissão de santo Epipodio que, dilacerado em sua carne pelos dentes das feras, dizia: “Confesso a Cristo com o Pai e o Espírito Santo, e é digno que lhe restitua minha alma a ele que é meu criador e redentor. Pouco importa a fraqueza do corpo que se esvai até  o fim, contanto que minha alma seja levada aos céus, para junto do seu criador.”[41]
À idêntica conclusão induzem os lugares dos mais antigos, onde simplesmente e sem mais se encontra enunciado que tal é a pregação da Igreja, a qual se deve conservar como regra de fe. Por exemplo, aquela passagem de Santo Irineu, 1. I. c. 10: “A Igreja espalhada por todo orbe terrestre até os extremos da terra recebeu dos apóstolos e dos seus discípulos a fé em um só Deus, Padre onipotente que fez o céu e a terra e o mar e todas as coisas  neles existentes; e em um só Jesus Cristo Filho de Deus, encarnado para nossa salvação; e no Espírito Santo que pelos profetas anunciou os desígnios de Deus, o seu advento e geração da Virgem Maria e sua paixão, e a ressurreição de toda carne do gênero  humano para que ao nome de Jesus Cristo Nosso Senhor, Deus, Salvador e Rei, segundo o beneplácito do Pai invisível todo joelho se curvasse nos céus, na terra e no inferno.” Igualmente, São Gregório atesta que leu aquela passagem de São Gregório Taumaturgo, na Exposição da Fé, que, ao morrer, deixou para sua igreja, e por ele mesmo autografada: “Um só Deus Pai do Verbo vivo, da sabedoria subsistente, perfeito genitor do perfeito, Pai do Filho unigênito. Um só Senhor, único do único, Verbo consumador, sabedoria que compreende todas as coisas, virtude pela qual se pôde gerar todas as criaturas: Filho verdadeiro do verdadeiro, e invisível do invisível, incorruptível do incorruptível, imortal do imortal, sempiterno do sempiterno. Um só Espírito Santo que tem a substância de Deus, causa perfeita dos viventes, santidade dispensadora da santidade…Trindade perfeita, não se divide nem se priva da majestade, da eternidade e do reino. De maneira que na trindade não há superioridade nem inferioridade…Nem o Filho falta ao Pai, nem o Espírito Santo ao Filho, mas inalterável e sempre imutável a mesma Trindade.[42]
Na mesma categoria classificam-se aqueles testemunhos em que os padres antes do surgimento das heresias, livres de toda preocupação com as disputas e controvérsias, não em tom especulativo mas apenas glosando, não argumentando, nem sequer assumindo o patrocínio de uma causa especial, mas apenas falando da abundancia do coração fiel,  (o dogma ainda não havia sido impugnado por nenhuma negação) expressaram-se tão ingenuamente que de fato não parece que foram eles a escrever mas sim o genuíno espírito da fé e da tradição a falar neles. Desse modo, Santo Agostinho anuncia os testemunhos a respeito do dogma do pecado original em sua obra Contra Juliano, l. I. nº 5-20. Esses escritos foram depois revistos por ele em um compêndio em que diz: “Santo Irineu diz que, antes de a chaga da serpente ser curada pela cruz e pela fé de Cristo estivemos todos como que ligados por vínculos ao pecado do primeiro homem feito do barro. São Cipriano diz que a criança perece se não for batizada, ainda que não tenha pecados próprios a ser absolvidos, mas alheios. São Retício diz que os pecados do velho homem de que nos despojamos não são velhos pecados mas pecados ingênitos. Santo Olimpio diz qu, disseminado o vício na origem  a partir do primeiro homem feito do barro nasce o pecado com o homem. Santo Hilário diz que do pecado se origina toda carne salvo a daquele que vem na semelhança da carne do pecado sem pecado. Diz que sob a origem do pecado e sob a lei do pecado está aquele cuja voz diz: “Fui concebido na iniqüidade.” Santo Ambrosio diz que as crianças que forem batizadas nos seus primeiros dias de vida são purificadas da malicia. Diz que em Adão todos morremos, porque por um só homem entrou o pecado no mundo, e a culpa dele é a morte de todos. Diz que na chaga dele todo o gênero humano morreria se aquele samaritano que descia não lhe pensasse as dolorosas chagas. Diz que existindo Adão, nele todos existíamos; perecendo Adão, nele também todos perecemos. Diz que estamos maculados pelo contágio antes de nascer e a concepção humana não está isenta da iniqüidade, pois somos concebidos – diz ele –  no pecado dos nossos pais, e em seus delitos nascemos…Diz Santo Inocêncio que pelo lavacro da regeneração todo vício pretérito é purgado, porque por meio do lavacro acontece que aquele que caiu pelo livre arbítrio foi mergulhado nas profundezas. São Gregório Nazianzeno diz que teria sido melhor não cair da árvore da vida pelo gosto amaríssimo  do pecado, mas devemos emendar-nos depois da queda…Diz que se purificam pela regeneração da água e do espírito as máculas da primeira natividade pelas quais somos concebidos em iniqüidade. Diz São Basílio que contraímos a doença do pecado, porque Eva não quis abster-se do fruto proibido…Posteriormente o santo bispo João Crisóstomo também disse que Adão cometeu tão grande pecado que condenou toda a humanidade. Diz que Cristo pranteou justamente por isso a morte de Lázaro porque a mortalidade despojando-se da eternidade amou os infernos. Diz que Cristo nos resgatou da  obrigação do nosso pai Adão a que também estava ligada sua descendência como débito próprio. Diz que Adão por isso mesmo é a cabeça de toda a posteridade, porque, assim como ele se fez causa da morte (que estava ligada ao fruto) de toda a sua progênie, ainda que não tenha comido do fruto, assim também Cristo é, pela cruz, o penhor de justiça de todos os que lhe pertencem, ainda que não tenham praticado nada de justiça. Diz que não parece bastante racional que um seja condenado no lugar de outro, e entretanto isso aconteceu por meio de Adão; pelo que convence mais a crer que parece mais  conveniente e mais racional que um seja salvo em lugar de outro, o que se cumpre em Cristo etc. Assim falaram do pecado original os mais antigos padres, só os traços primitivos e com simplicidade original de uma narrativa da tradição.
Mas tomem-se também os brilhantes exemplos desse mesmo gênero de testemunhos entre aqueles que o próprio Santo Agostinho deixou acerca da divina graça em seus escritos produzidos em suas primeiras obras anteriores a toda investigação teológica. Como, por exemplo, aquela passagem das Confissões, 1. 10, c. 29, 31, 87: “Ó amor, tu que sempre ardes e nunca te extingues, caridade, Deus meu, acendei-me. Daí o que ordenais, e ordenais o que quiserdes…Ouço a voz do meu Deus que ordena: Não se corrompam vossos corações  na crápula e na bebedeira. Mas lembrai-vos, Senhor, de que somos pó e de pó fizestes o homem, o qual havia perecido e foi restaurado. Fortalecei-me para que possa. Dái o que ordenais, e ordenai o que quereis…Somos tentados a toda hora pela vanglória humana, Senhor; sem cessar somos tentados. A língua humana é sempre um vulcão. Ordenais-nos também tal continência. Daí o que ordenais e ordenai o que quereis.” Igualmente, aquela passagem De Ordine, 1, 2, nº 52, em que dirigindo-se a sua mãe Mônica, diz: “Roguemos, pois, não as riquezas, mas aquelas coisas que nos fazem bons e santos. Para que se cumpram piissimamente esses desejos, nós os unimos, minha mãe, às vossas orações, pelas quais, estou convencido e confirmo, Deus me concedeu este espírito  para que descoberta a verdade, nada absolutamente lhe antepusesse, nada lhe preferisse, nada diferente pensasse ou amasse.” Mas para que não se julgasse que essa oração pela qual se obtêm outros dons de Deus vem de nós mesmos e não da graça divina, diz: “Deus criador do universo, concedei-me primeiro a graça de bem vos rogar, depois a de ser digno de por vós ser ouvido para que por fim despacheis meu pedido.” Certamente, não foi movido pelo calor da controvérsia nem preocupado por qualquer outro fim preconcebido, nem tampouco instruído por profunda investigação teológica, que Santo Agostinho dizia essas coisas, mas levado apenas pela doutrina que como neófito aprendera na Igreja, e repleto do espírito de graça que havia recebido do batismo em que cria absolutamente, falava também com toda simplicidade conforme aquilo do salmo: “Cri e por isso falei.” Já sabia que tudo aquilo pelo que somos bons é dom de Deus, até mesmo a fé com as obras, nada distinguindo entre a primeira e as segundas, entre o início e o fim, mas compreendendo o próprio início da piedade cujo fundamento é a fé, e o mesmo primeiro desejo e pensamento de conversão e finalmente a mesma oração pela qual se obtêm outras graças. Todavia, que há diferença entre aquilo que se encontra naquelas confissões de simples fé e os livros em que depois, de forma abundante, acurada, erudita, expôs também o dogma da graça e combateu a incipiente heresia dos pelagianos, ninguém negará. Ai também há um novo exemplo daqueles testemunhos que apresentam uma simples fé da primitiva tradição, prescindindo de qualquer explicação ou consideração das dificuldades.[43]
2. Mas agora cumpre considerar o segundo estado da doutrina, em que à simples fé se agregam explicações ainda imperfeitas. Isto se verifica sobretudo em alguns padres do segundo e terceiro séculos com relação ao dogma da Trindade quando tentam explicar e expor de algum modo aos judeus e pagãos o altíssimo mistério, ou quando refutavam os sabelianos que diziam serem o Pai, o Filho e o Espírito Santo, não só quanto à natureza, mas também quanto à pessoa, um só Deus; e isto ( o que se deve notar com atenção), antes de se originarem as heresias de Ário e Macedonio, negando ao Filho e ao Espírito Santo a natureza divina, atribuindo-lhes uma natureza criada.
Atenágoras em sua Legatione pro christianis quer que os mesmos cristãos paguem pelo crime de ateísmo de que eram acusados pelos pagãos, mostrando que não eram ateus, “eles que professam Deus Pai e Deus Filho, e o Espírito Santo, e demonstram na união deles a potência, e na ordem a distinção[44]. Eis aí uma simples e pura confissão da fé cristã. Mas para que ninguém considerasse ridículo para Deus ser seu Filho ou que os cristãos a respeito de Deus Pai e do Filho pensassem como fabulam os poetas que nada melhores que os homens consideram os deuses, acrescenta uma explicação: “O Filho é o Verbo de Deus Pai em idéia e ação; por ele, com efeito, e por meio dele, foram feitas todas as coisas, pois o Pai e o Filho são um só. Mas como o Pai esteja no Filho, e o Filho no Pai, na unidade e na virtude do espírito, o Filho de Deus é a inteligência e a palavra do Pai. Por que se vós tiverdes paciência para investigar com vossa suma inteligência o que significa o Filho, direi brevemente ser a primeira geração do Pai, não porque seja feito (desde a eternidade, com efeito, Deus tinha em si o Verbo, visto que racional desde a eternidade), mas porque aparecerá como a idéia e o ato de todas as coisas materiais que jaziam à maneira de natureza informe e de terra inerte.[45] Nesta explicação há algo obscuro, primeiro porque o Filho se diz inteligência do Pai, em seguida porque se diz que aparece como idéia e ato daquela terra inane e vácua de que fala Moisés no início do Gênesis. Justino, em disputa com o judeu Trifão, (nº36), dizia com gravíssimas palavras que Cristo é verdadeiro Deus e chamado no Antigo Testamento o Senhor dos exércitos. Mas depois que o discurso se dirigiu a outro ponto, resumiu (nº48) Trifão a questão: “Retomando, pois, diz, o discurso que tinhas abandonado, diz tudo de uma vez. Pois, realmente, parece-me admirável, e não se pode provar sem dificuldade. Porque, com efeito, dizes que esse Cristo Deus preexistiu antes dos séculos, e depois sofreu nascer feito homem, isto me parece não só inconciliável com a crença, mas também estulto.” Então, Justino responde que essa doutrina, na verdade,  parece inconciliável com a fé àqueles que não são de Deus e não querem fazer nada para compreender, e diz que são duas questões distintas: se Jesus é o verdadeiro Messias predito na Lei e se é  verdadeiro Deus; efetivamente, há aqueles que, como os ebionitas, professam que ele é o Cristo, embora digam que é homem gerado de homem: a esses tais, diz, não dou assentimento, nem assentiria ainda que a maior parte (dos cristãos), que me aprova, o dissesse. De fato, não é por causa de doutrinas humanas que somos obrigados a crer em Cristo, mas por aquela doutrina pregada pelos santos profetas e por ele mesmo transmitida. Eis ai mais uma firmíssima e claríssima profissão de fé católica. Entretanto, para expor com credibilidade ao homem judeu essa verdade de fé, Justino esforça-se por mostrar outra coisa além do Pai criador do universo, que na antiga Escritura se diz Deus e preludiava a futura encarnação através das teofanias  do Antigo Testamento. Reconheceu isto em um dos três anjos que apareceram a Abraão sob o carvalho de Mambré; nesse anjo misterioso do qual depois se lê – diz – : “O Senhor fez chover  do Senhor do céu sobre Sodoma e Gomorra enxofre e fogo”. Vê-o também naquele que apareceu a Jacó e depois a Moisés entre as chamas da sarça ardente e de si mesmo diz: “Eu sou aquele que sou. Assim dirás aos filhos de Israel: Aquele que é envia-me a vós.” Então conclui seu pensamento, nos nº 60-61: “Demonstrei-vos  que Aquele que disse a Moisés ser o Deus de Abraão, de Isaac e Jacó, não é apenas o criador do universo, mas também o mesmo que apareceu a Abraão e Jacó; e cumprir a vontade do criador do universo e executar o juízo contra os sodomitas segundo sua sentença, de tal maneira que, ainda que, como dizeis, um foi o anjo e outro Deus, ninguém, entretanto, a não ser um completo mentecapto, ousará dizer que o criador do universo e pai, despojando-se dos seus atributos excelsos foi visto como pequena partícula da terra…Demonstrar-vos-ei também por outro testemunho das Escrituras que Deus gerou de si mesmo antes de todas as criaturas certa virtude espiritual, que também é chamada pelo Espírito Santo glória do Senhor, e ora Filho, ora Sabedoria, ora Anjo, ora Deus, ora Senhor e Palavra…Com efeito, tem todos esses nomes, justamente por que executa a vontade do Pai e pela vontade do Pai foi gerado…Qual é o que vemos nascer do fogo como outro fogo, não diminuído por ter sido aceso, etc[46]. Onde parece obscuro e difícil o que diz São Justino, é um absurdo se alguém pensar que o mesmo ingênito Pai apareceu como pequena partícula da terra e por isso as mesmas aparições de Deus devem referir-se a outra pessoa; igualmente, o Filho cumpre a vontade do Pai por vontade do Pai foi gerado.[47]
Santo Hipólito mártir, escrevendo contra a heresia de Noécio, que é idêntica à de Sabélio, diz no capítulo 8: É, pois, necessário, que, ainda que não se queira, confesse-se  Deus Pai  onipotente e Jesus Cristo Filho de Deus, Deus feito homem, a quem Deus submete todas as coisas exceto a si mesmo, e o Espírito Santo, e esses são realmente três. Pois se se quer saber como  se demonstra um só Deus, saiba-se que uma é a virtude ou potência dele.” Pode-se, por acaso, pergunto, mais expressamente dizer o que cremos? Mas descendo às explicações, diz Hipólito entre outras coisas no capítulo 10: “Só Deus, porque nada eterno tem junto a si, quis fazer o mundo. E pensando e querendo  e dizendo o mundo criou…Mas gerava o Verbo condutor conselheiro e artífice das coisas criadas.  Como tivesse em si o Verbo e fosse ele invisível ao mundo criado, fê-lo visível, emitindo primeiro a voz e gerando a luz da luz, fez com que as criaturas por si mesmas compreendessem que têm um Senhor; e aquele que antes apenas a si mesmo era visível, mas ao mundo invisível, fê-lo visível, para que o mundo pudesse ser salvo  quando visse que ele apareceu. E mais adiante, no capítulo 14diz: “Se o Verbo de Deus estava com Deus, e era Deus, que significa isto? Porventura dirá alguém que João diz dois Deuses? Realmente, não direi dois Deuses, mas um só, mas duas pessoas. A economia do consenso se reduz a um só Deus. Com efeito, há um só Deus que manda, Pai. Que obedece, o Filho. Que ensina a ciência, o Espírito Santo. O Pai que está acima de todas as coisas; o Filho através de todas as coisas, o Espírito Santo em todas as coisas. De outro modo não podemos entender um só Deus, se não acreditarmos no verdadeiro Pai e no Filho e no Espírito Santo”[48]. Onde ainda é obscuro o que se diz a respeito da geração do Verbo que se fez visível na criação do mundo: talvez mais difíceis ainda possam parecer aquelas coisas que escreveu Dionísio Alexandrino contra os mesmos sabelianos; das quais se acha um elenco nos fragmentos que resistiram ao tempo, as apologias enviadas pelo mesmo Dionísio ao papa Dionísio. Entretanto, como nelas, com maior brilho, o santo bispo se retrata dos erros censurados, com tanto mais razão nessa parte nova acresce a dificuldade, acode maior socorro, onde outros se desfazem. E com razão observam os editores beneditinos que essa apologia de Dionísio tem maior peso  por isso que nos serve de exemplo do que  teriam feito os outros padres anteriores ao Concílio de Nicéia (que aparentam algumas familiaridades com a impiedade ariana),  se os compelisse semelhante necessidade a explicar sua intenção.
Portanto, tal é o exemplo que nos dão alguns autores daquele período em que ainda eram imperfeitas as explanações dos dogmas, isto é, não havia ainda um modo preciso de falar e explicar, porque não tinham surgido ainda as mais célebres heresias contra as quais mais tarde, com maior clareza de conceitos e propriedade de terminologia foi defendida a fé católica. Com efeito, verificou-se isso com respeito ao dogma da Trindade, e guardadas as devidas proporções, também com relação aos outros dogmas dos quais houve fácil compreensão. Assim também acerca do dogma da encarnação, do qual, antes de Nestório e Eutiques, nos escritos dos padres encontram-se locuções, que, se examinadas com estrito rigor dialético, implicariam uma distinção dos sujeitos de Deus e do homem, ou ao contrário, e com maior freqüência, poderiam dar azo à malévola interpretação daqueles que defendem a mistura de duas naturezas em uma terceira.[49] Igualmente quanto ao pecado original, cujos impugnadores pelagianos pareciam triunfar, louvando-se em algumas passagens de Crisóstomo, que foram aclaradas por Santo Agostinho em seu primeiro livro contra Juliano.[50] Outrossim acerca do dogma da graça Santo Agostinho confessa que caiu ingenuamente em alguns erros quando começou a aprofundar a investigação teológica dessa matéria ainda sem uma linguagem precisa, mas apenas inquirindo, opinando, sem um exame acurado[51] Os exemplos poderiam multiplicar-se indefinadamente, mas não convém alongar-nos.
3. Resta, pois, falar agora do terceiro estado da doutrina, a que correspondem três classes de testemunhos: na verdade o estado de explicação exata, no qual, para usar as palavras de São Vicente de Lerins, compreende-se com mais clareza aquilo que antes se cria mais obscuramente, e a posteridade se congratula com a forma precisa daquilo que os antigos não apreciavam com a inteligência. Este estado com respeito aos dogmas em geral começou com a paz que Constantino garantiu à Igreja. Com efeito, a partir daí e doravante foi grande o progresso da ciência na penetração das verdades reveladas e sobretudo no quarto e quinto séculos foi conspícuo à medida que surgiam os erros. Então nas obras de Atanásio, Hilário, Basílio, Nazianzeno trata-se plenamente das processões divinas; isto alcançará uma perfeição nos quinze livros de De trinitate de Santo Agostinho, com aquele princípio já claramente enunciado que dá chave de compreensão, quanto pode a condição mortal, do mistério da Santíssima Trindade: nas pessoas divinas tudo se identifica onde não obsta a oposição de relação. Então nas suas controvérsias com os donatistas, com os pelagianos e com maniqueus  esclarece a doutrina dos sacramentos, da graça, do pecado original, da nova economia do evangelho em face do antigo testamento. Então aparecem as definições efesinas a respeito da união hipostática e aquela esplêndida epistola de Leão Magno a Flaviano, em que se expõe todo o dogma da encarnação tão claramente, em tão precisos termos e formas.
Mas não há dúvida de que devem ser absolutamente preferidas essas autoridades da idade posterior. Pois, após as soluções dos padres que combateram as heresias, recorrer sempre aos mais velhos nada mais é que estender um laço para os simples, a fim de que certamente prefiram o que é mais obscuro, mais confuso àquilo que é mais claro, mais distinto, diga-se de passagem, àquilo que é examinado com mais rigor. Vê-se também que essa armadilha é  mais perigosa, por isso que se propõe sob a imagem da antiguidade. Com efeito, que há de mais verossímil e mais verdadeiro que dizer com São Vicente de Lerins que a antiguidade deve ser seguida, e quem acreditaria haver um engano em tal princípio? E no entanto há. Deve ser seguida a antiguidade, realmente, é a regra de São Vicente de Lerins. Mas deve-se acrescentar que, conforme a sua regra, a posteridade muitas vezes fala com mais clareza. E é isto que os críticos costumam dissimular, de tal maneira que, afastando-se da regra do intelecto católico, não temem dizer que, após o surgimento das controvérsias, os padres não são facilmente audíveis, porque o ardor da disputa os levou a dizer mais do que queriam. Mas não convém opor o modo de dizer dos padres antes e depois das disputas com os hereges. Ambos modos são verazes e úteis à Igreja, pois, enquanto no primeiro ela vê a natural simplicidade e admirável perpetuidade de sua fé, no segundo se instrui para uma mais profunda compreensão e noção mais exata dos artigos da mesma fé. Efetivamente, as heresias tornam mais agudos os doutores. Embora da outra parte seja também certíssimo que os padres que escreveram antes do surgimento das heresias têm algo mais forte, porque aparecem mais evidentes a partir de todo estudo das partes do livro.[52] Portanto, esses dois modos se complementam mutuamente, e sob um e outro aspecto auxiliam-se reciprocamente.
Assim, pois, já que agora está patente a verdade da distribuição dos testemunhos da tradição nas três classes supracitadas, e como a respeito da primeira e da terceira não há nenhuma dificuldade, mas apenas acerca daquela intermediária que assinala uma passagem da simples fé para explicações seja de mais profunda inteligência seja de mais diligente cautela contra as novidades dos heréticos: deve-se ver já de que maneira se dá uma legítima interpretação daquelas coisas que nesse estado de transição parecem trazer no bojo uma aparência de heterodoxia.

§ 3

Toda a investigação se reduz a duas observações. A primeira constituirá os preâmbulos, porque aqueles lugares dos padres que agora se consideram, em sentido ortodoxo podem ser compreendidos. A outra e principal, porque não só podem, mas devem ser recebidos nesse sentido, prescindindo também das discretas declarações dos autores, se apenas se considera a razão dos critérios próprios da tradição católica.
1. Quanto ao primeiro ponto não é licito descer à discussão de  singularidades, mas basta tomar como exemplo daquelas coisas que são mais difíceis e poderiam oferecer melhor azo à objeção: mais acima referi-me àqueles testemunhos dos antigos sobre o mistério da Trindade, com base nos quais pretendem os críticos afirmar que esses antigos ignoravam a consubstancialidade das pessoas, e, ao contrário  do sumo e supremo Deus, conheciam dois outros deuses inferiores, segundo o dogma dos pagãos. Com efeito, as causas de engano em tal exegese dos críticos talvez se devam à negligência dos princípios da teologia escolástica.
Certamente, a consubstancialidade não só não repugna à ordem de origem das pessoas entre si, mas, ao contrário,  com ela se coaduna bem,  uma vez que, se se cogitassem nas pessoas divinas várias improcessibilidades, por isso mesmo viria a ser evidentemente um  absurdo o dogma de um só Deus em três pessoas. A respeito dessa matéria veja-se o tratado De Trinitate, tese 9 e 21, com o prolegômeno à questão 28. Por essa razão o evangelho inculca com tanta instância e tanto zelo essa ordem de origem, oferecendo igualmente fórmulas que podem parecer à inteligência carnal em detrimento da igualdade, como, por exemplo, quando do Filho se diz que não pode fazer nada por si mesmo, e do Espírito Santo que não dirá nada de si mesmo, por que dirá o que tiver ouvido e assim por diante. Portanto, o dogma da Trindade estabelece uma improcessibilidade de origem do Filho,da qual, juntamente com o Filho, como se de um só princípio do Espírito Santo. Assim, com efeito, e não de outro modo as divinas pessoas se distinguem entre si só pelas relações de origem, mas dizendo muito pouco, isto é a essência ou substância que com virtude operativa e pela mesma operação é a mesma tanto ad intra quanto ad extra, é a única e mesma.  Assim  também é a mesma a atividade do Pai e do Filho e do Espírito Santo, mas no Pai realiza-se com relação de quem comunica, no Filho realiza-se com relação de quem recebe do Pai e no Espírito Santo com relação de quem recebe de ambos. Mas agora deve-se examinar se aí se verificam as incriminadas locuções “do Pai a quem servem todas as coisas o Filho e o Espírito Santo, (Iren. I, 4, c. 7. Iustin. In Tryph., n. 61); do Pai que manda, do Filho que obedece, (Hippol., ubi supra); do Pai que opera, do Filho por quem opera, ou do Pai que é toda substância, do Filho que é derivação do todo e porção, (Terull. in apolog. c. 21, e c. Praxeam c. 9). E porque até agora não se pôde verificar a propriedade de palavras de tal natureza, não há realmente nenhum problema a nosso ver. Mas também nós dizemos de Deus às vezes coisas que não apresentam maior conveniência de terminologia. Com efeito, dizemos que Deus se arrepende, que Deus se ira; nem receamos atribuir a Deus mãos, braços, olhos. Por acaso, com isso, fazemos um Deus corpóreo? Por ventura fazemo-lo mutável em seus decretos, submetido às paixões humanas? Absolutamente não, pois, se em razão de tais locuções se tira algo de humano, nada mais se quer significar por mãos e braços que a força e o poder; por ira nada mais se quer dizer que a vontade eficaz de punir os pecados; por arrependimento nada mais que a mudança, não de decreto, mas das realidades submetidas a seu decreto. O mesmo argumento vale para o tema que nos ocupa. Efetivamente, com relação ao ministrante e aquele a quem ministra e a respeito do mandante e do obediente, finalmente, no instrumento com respeito àquele de quem é instrumento, considerem-se duas coisas: primeiro, daquele a quem ministra, a quem obedece, de quem é instrumento, deriva a virtude operativa ou vontade de operar; segundo, porque a tem diversa daquela que está no principal operante, tem-na realmente participada, dependente e sujeita. Retire-se desse modo aos vocábulos aplicados a Deus tudo aquilo que soa imperfeição de dependência, e nada mais signficarão senão apenas a ordem de origem, segundo a qual, como dito há pouco, a atividade no Filho, ainda que seja numericamente a mesma atividade do Pai, realiza-se nele, entretanto, com a relação de quem recebe do Pai, como se  realiza no Espírito Santo com a relação de quem recebe de ambos. Há quem diga que os modos de falar de Irineu, Justino, Hipólito (muito ao contrário do modo de falar de Tertuliano, cujo estilo é sempre hiperbólico, incidindo em exagerado realismo), há quem diga que estes modos de falar são incompatíveis com o sentido ortodoxo, sobretudo quando ainda deles não abusavam os arianos e entre os cristãos os princípios comuns a respeito da divindade excluíam por si suficientemente a grosseria da inteligência carnal?[53]
Ademais, a consubstancialidade excelentemente se consolida com a apropriação, pela qual algum atributo essencial, embora em si mesmo seja  comum a três pessoas, é considerado entretanto como conveniente a apenas uma com exceção das outras. Realmente, essa apropriação, usual tanto nas escrituras quanto em todos os símbolos da fé, quanto em todos os padres, doutores e teólogos, pertence sem dúvida à doutrina católica da Trindade, de maneira que causa espanto possa ela ser  ignorada ou rejeitada pelos críticos. “Deve-se dizer, diz Santo Tomás, que para a manifestação da fé foi conveniente ser apropriados às pessoas os atributos essenciais. Com efeito, embora não se possa provar a Trindade por uma demonstração das pessoas, convém, não obstante, que por meio de alguma coisa se torne mais manifesta. Ora, conhecemos  os atributos essenciais segundo a razão melhor do que  pelas propriedades das pessoas, pois a partir das criaturas das quais temos conhecimento, podemos com certeza chegar ao conhecimento dos atributos essenciais, mas não ao conhecimento das propriedades das pessoas. Como, pois, nos utilizamos da semelhança do vestígio  e da imagem encontrada nas criaturas para a manifestação das pessoas divinas, assim também nos utilizamos dos atributos essenciais. E tal manifestação das pessoas pelos atributos essenciais se denomina apropriação.” E não se pode dizer que tal coisa seja arbitrária, porquanto tem excelente fundamento em certa conveniência peculiar entre o atributo essencial e a propriedade da pessoa, além de fornecer um ótimo esclarecimento às muitas dificuldades que ora se apresentam.
Mas com razão é muito empregada a apropriação da onipotência, da sabedoria, da bondade, e é tão conhecida que dispensa maiores explicações. Pois a onipotência tem razão de princípio, e é apropriada ao Pai que é o princípio nas pessoas divinas. A sabedoria,a exemplaridade, a idéia, a arte brilham na concepção do intelecto e por isso se apropriam ao Filho que procede como verbo. A bondade, por sua vez,  é a razão e o objeto do amor, e apropria-se ao Espírito Santo que procede como amor. Assim como os antigos atribuíam ao Pai a obra da primeira criação, da qual se diz no Gênesis: “No princípio criou Deus o céu e a terra; a terra, porém, estava informe e vazia, e o espírito de Deus pairava sobre as águas, porque nessa obra resplandece a onipotência tirando do nada absoluto o mundo, assim também ao Filho como Verbo do Pai atribuíam a obra da segunda criação, isto é da formação, da distinção e do ornato das coisas, porque esta obra é obra de sabedoria. Além disso, eles consideravam a processão do Verbo do Pai em ordem ao mundo a ser ornado como certa emissão do Verbo concebido desde toda eternidade para a luz, ou parto para o exterior. Nesse sentido Atenágoras disse que o Verbo procedeu como idéia – que havia de chegar a ato –  de todas as coisas materiais que existiam à maneira de matéria informe da terra. E Hipólito disse que o Pai criando o mundo gerava o Verbo, fazendo-o palpável e visível, quando antes era impalpável e invisível. Como, por exemplo, o arquiteto tendo em sua mente a idéia do edifício que ninguém antes tinha visto, torna-a visível quando de matérias informes começa a formar o edifício.: assim o Pai proferia ad extra o seu Verbo gerado desde a eternidade, quando dizia: faça-se a luz, faça-se o firmamento, etc, como diz o Gênesis. E como a arte do artesão de certo modo se expande para fora de maneira que o artesão nela esteja impresso e figurado e se torne seu ato e forma: assim na obra do ornado do mundo manifestava-se aquela arte incriada apropriada ao Verbo, da qual diz o livro dos Provérbios 8, 27: “Quando preparava os céus, eu ali estava, quando traçou o horizonte na superfície do abismo, quando firmou as nuvens no alto, quando dominou as fontes do abismo, quando impôs regras ao mar, para que suas águas não transpusessem os limites, quando assentou os fundamentos da terra, junto a ele estava como artífice.” Portanto, os antigos padres, desde o primeiro até o último, não vêem  esta segunda e temporal geração do Verbo, da qual levantam tanto questionamento os críticos, senão como uma manifestação de Deus na criação das coisas, enquanto aquela idéia ou razão concebida do universo, que se apropria ao Verbo especialmente ao modo de processão. Com efeito, tal manifestação não acrescenta nada de novo ao Verbo, mas estabelece uma mutação apenas da parte da criatura, a única que poderá ter dúvida, sendo-lhe ainda desconhecidos os primeiros [54]princípios da teologia natural; ao contrário, ficará evidente que a idéia interior do arquiteto não se altera quando vem à luz pela execução da obra. De que modo, pois, os conceitos dos antigos acerca do Verbo procedente do Pai para fora como artífice do mundo podem parecer a alguém como incompatíveis com um sentido ortodoxo?
Mas que diremos agora a respeito de todos os lugares de Justino nos quais as teofanias do Antigo Testamento são atribuídas ao Filho, pelo que “ninguém a não ser um perfeito mentecapto ousará dizer que o autor do universo, abandonada a glória celeste, foi visto em pequena partícula terrestre?” Expõe mais claramente esse argumento abaixo, no mesmo diálogo com Trifão (n. 127), quando diz: “Não penseis que o mesmo ingênito Deus desceu para algum lugar ou subiu de algum lugar. Com efeito, aquele indizível Pai e Senhor do Universo não vem a nenhum lugar, nem anda, nem dorme, mas em sua região, qualquer que seja, permanece, vendo e ouvindo atento, certamente não com os olhos e ouvidos, mas com força inenarrável , vê e conhece  todas as coisas , e nada que nos diz respeito lhe está latente, ele não se move nem pode ser limitado a nenhum lugar, mas está em todo o mundo aquele que era antes que se fizesse o mundo. De que modo, portanto, falará a alguém ou aparecerá a alguém ou será visto em alguma parte estreita da terra?” Ao menos aqui – dirá alguém – será necessário dar mãos à palmatória, para que não sejamos forçados a confessar que Justino reconheceu no Pai e no Filho uma natureza certamente dessemelhante. Absolutamente não, digo: para que se concluísse uma dessemelhança, como se pretende, a natureza do Filho, para Justino, teria de ser corpórea e animal, que pudesse subir, descer, andar, dormir, etc, coisas que se negam a respeito do Pai. E pergunto: que coisa mais inadmissível? Como Justino diria que o Filho é Deus gerado antes dos séculos e encarnado da Virgem no tempo em um lugar? Como interpretaria aquelas magníficas palavras da Escritura: “Eu sou aquele que sou, Senhor dos exércitos, Senhor forte e poderoso”, e outras semelhantes que com tanta freqüência na primeira Apologia e no mesmo Diálogo afirma referirem-se a Cristo?
Mas para que não se esqueça, digo, que Justino disputa com  um judeu, e na medida em que quer convencer o judeu de que as teofanias do Antigo Testamento não se referem apenas àquela pessoa divina que os judeus reconheciam, empenha-se sobretudo em destruir aquela absurda e carnal opinião  a respeito das mesmas teofanias sustentada pelos judeus com os quais disputava.  Do mesmo modo – diz no nº 114 – agrada aos  vossos mestres que imaginam o criador do universo e  ingênito  Deus à maneira de um animal composto de mãos, pés, dedos e alma ensinar ser assim o mesmo Pai que apareceu a Abraão e Jacó. Mas contra essa judaica e grosseira imaginação militam os argumentos acima apresentados. Explica que não devem ser assim entendidas as teofanias, como se Deus em sua própria substancia tivesse sido visto, mas segundo uma ação divina que produzia espécies visíveis e vozes audíveis. Mas Justino atribui tal operação assim como as espécies representativas a uma pessoa distinta do Pai: certamente aquela pessoa que haveria em uma ocasião encarnar já então assumia a missão de anunciar aos homens as vontades do Pai; àquela pessoa à qual, em razão de sua processão, podiam convir os nomes de anjo ou mensageiro, que nas teofanias da Antiga Escritura são recorrentes; àquela pessoa da qual, desde o início da disputa (nº 56), tinha dito: “Esforçar-me-ei para persuadir-vos, quando realmente compreendeis as Escrituras, daquilo que digo: certamente ser outro aquele que se diz sob o nome de Criador do Universo, o Deus e Senhor, que também é chamado anjo, porque anuncia aos homens tudo quer anunciar-lhes, Criador do Universo, sobre o qual não há Deus.”[55] Finalmente, àquela pessoa da qual diz (nº 127): “Nem Abraão, portanto, nem Isaac, nem Jacó, nenhum outro dos homens viu aquele inefável e Senhor de todos, mas aquele que segundo a sua vontade é também Deus e seu Filho e anjo porquanto cumpre sua vontade, que quis também nascer homem da Virgem e apareceu como fogo em colóquio com Moisés na sarça ardente.” Não causa estranheza que Justino submeta o Filho ao Pai. Com efeito, não o submete como servo ao criador, mas como filho ao Pai, de maneira que, segundo nossa concepção, (balbuciando como podemos, fazemos ressoar a glória de Deus), se exprima a ordem de origem.[56] Tampouco se assaque a Justino a heresia de ter dito o Filho segundo a vontade do Pai ou da vontade do Pai ser gerado do Pai. Pois, além de ser entendido naquele sentido que na primeira parte (q. 41, a. 2), expõe Santo Tomás[57], para que realmente nessa geração do Filho a partir da substância do Pai ninguém imagine uma necessidade dominando o Pai e a ele imposta com força, como a partir de seu segundo princípio e fantasia imaginavam Deus os marcionitas: o próprio Justino se explica no mesmo diálogo com Trifão, nº 128, dizendo: “Mas aquela virtude, a qual a palavra profética também chama Deus e anjo não só pelo nome, como luz do sol, mas também, conforme expliquei brevemente acima, ser numero, e sendo número é algo diverso (isto é, algo subsistente, distinto), embora diga ser aquela virtude gerada do Pai, por virtude e vontade sua, contudo isto não quer dizer uma separação, como se a substância do Pai se dividisse, do mesmo modo que todas as outras coisas que se dividem e se separam não são as mesmas coisas que antes da separação; a razão deste exemplo tomei-a dos ígneos que vemos acesos a partir de outro fogo, não daquele bruxuleante do qual muitos podem ser acesos, mas daquele permanente.” Por onde se vê que opõe a geração do Filho por vontade do Pai à geração que, para nós, é por diminuição da substância, isto é, opõe a espiritual à material. A esta conclusão induz a comparação do fogo, pela qual, de algum modo, Justino se adianta à definição do Concílio de Nicéia: Deus de Deus, luz de luz.”
Temos portanto em todas essas explicações imperfeitas concepções confusas, expressões realmente impróprias e ambíguas, que, se não precedessem ao surgimento da heresia ariana, poderiam parecer suspeitas. Mas certamente não consideramos que não possam receber uma interpretação ortodoxa. Ademais, tudo o que se diz acerca dos padres anteriores ao concílio de Nicéia, no que concerne ao dogma da Trindade, tem uma egrégia confirmação do célebre fato que narra Sócrates, História Eclesiástica, 1. 5, c. 10. Pois, como o imperador Teodósio Magno estivesse solícito da paz da Igreja perturbada por toda parte pelos arianos e buscasse um remédio: “Tendo convocado o bispo Nectarius de Constantinopla, tratou com solicitude da paz com ele, de que modo libertar a religião cristã das dissensões e como seria possível reconduzi-la à unidade. E dizia que se debatesse a controvérsia, a fim de que se superassem as causas das discórdias e fosse restituída a concórdia às igrejas. Ouvindo essas palavras, Nectarius hesitava entre ansioso e solícito e, mandando chamar o bispo Agelius, porque com ele naturalmente comungava na fé, manifestou-lhe a decisão do imperador. Ele, embora fosse um homem pio e religioso, não tinha a menor aptidão para uma disputa teológica, incumbiu então o seu leitor Sisinius da missão da disputa doutrinária. Mas Sisinius, homem sobretudo discreto e dotado de grande circunspecção, como notasse com razão que esse método de disputa não sanaria as causas da discórdia, mas antes pelo contrário acirraria ainda mais os ânimos dos hereges, deu a Nectarius o seguinte conselho: “Convença o imperador a desistir das disputas teológicas, mas a promover a apresentação dos antigos autores, de maneira que o imperador interrogue os chefes de cada uma das seitas: se porventura tiverem fundamento nos antigos doutores da Igreja anteriores à controvérsia, declarem suas razões, mas se, ao contrário, não provarem isso, sejam excomungados…”Apenas ouviu essa sugestão, Nectarius dirigiu-se a palácio e apresentou-a ao imperador. Este acolheu feliz a idéia e executou-a com prudência. Ocultando então o que tinha em mente, interrogou um do hereges se havia doutores da Igreja antes da dissensão, se apresentariam algum dos seus argumentos e se os acatariam como idôneas e dignas testemunhas da doutrina cristã. Quando ouviram isso, os bispos das seitas e seus polemistas, hesitaram sobre o que haveriam de fazer. Com efeito, dividiam-se em várias opiniões…Embora unidos na malícia, manifestou-se a divisão entre a doutrina deles e a  daqueles velhos gigantes. Depois que o imperador verificou a grande dispersão deles, que eles só se apoiavam na sofistica mas não no testemunho dos antigos, tomou outra decisão.[58] Como se pode ver, os próprios arianos, ainda que se jactassem de afirmar para a plebe ignara que conservavam uma fé transmitida pelos padres e até conseguissem encobrir sua heresia com algum matiz do dogma da Trindade tirado daquilo acima referido, entretanto, interrogados com espanto se queriam permanecer fiéis à antiga tradição, recusaram a autoridade e o testemunho dos antigos padres. Realmente, com tal argumento eles não poderiam absolutamente duvidar sem que encontrassem a própria condenação na antiga e  perene tradição.
A mesma coisa se deve dizer a respeito dos mistérios dos outros dogmas. Por exemplo,a epístola de Cirilo de Alexandria a João Anchenus na qual refere as calúnias de seus adversários que o acusavam de defender uma confusão ou mistura do Verbo feita de carne, passível e divina etc.[59] Igualmente, Santo Agostinho fala excelentemente da tradição do dogma da graça até Pelágio.
2. Pois bem. Sendo assim a coisa, convém agora investigar se aqueles testemunhos mais dificultosos dos padres não só podem mas também devem ser entendidos naquele sentido católico a que nos referimos. Não é necessário buscar alhures a resposta, pois basta a conclusão das premissas do capítulo primeiro. Com efeito, naquelas coisas que constituem a suma da fé, há um argumento fortíssimo de que a fé da Igreja de hoje é a mesma da Igreja primitiva, como se demonstrou acima. Ademais, do mesmo sentido não puderam afastar-se todos aqueles padres, cuja autoridade sempre foi acatada e ainda o é. Cumpre, pois, se  naqueles escritos se encontra algo que com cautela não se diria hoje, observando-se os critérios próprios de hermenêutica da sagrada tradição e de seus monumentos, receber esses textos no sentido indubitavelmente ortodoxo, no qual podem ser interpretados, ainda que com probabilidade pareçam em sentido contrario á luz de uma crítica cientifica rigorosa.
Este é o método solidíssimo de argumentar de Santo Agostinho a respeito de São João Crisóstomo, cuja autoridade contra o dogma do pecado original era empregada por Juliano. De fato, observava Santo Agostinho que era impossível que São João Crisóstomo cresse de modo diferente, assim como outros autores cujo consenso já evidenciara, principalmente no que concerne à matéria que não admite diversidade de sentenças, mas se trata dos fundamentos da religião. Pois, realmente, se se julgasse do outro modo acerca de causa tão importante, daquilo que constitui a suma da religião cristã, não teria ele na Igreja tanta autoridade. E justamente por conservar-se íntegra na Igreja a sua autoridade, é sinal de que o seu sentido era católico. “Porventura, pergunta Santo Agostinho (L. I. c. Iul. n. 22),  ouves estas palavras de São João Crisóstomo em sentido completamente contrário às sentenças dos seus colegas e o separas da amizade harmoniosa com eles e o proclamas como adversário deles? Absolutamente, não se  pode imputar tamanha maldade a tal homem.  São João Crisóstomo, de modo nenhum,  a respeito do batismo das crianças e da satisfação do pecado original por Cristo, divergiu de tantos outros bispos como Inocêncio Romano (sobretudo deste), Cipriano de Cartago, Basílio de Capadócia, Gregório Nazianzeno, Hilário de Poitiers e Ambrósio de Milão. Há outras passagens em que às vezes também os doutissimos e excelentes defensores da ortodoxia da doutrina católica, ressalvados os artigos de fé, não são convergentes, e um fala melhor e com mais propridade sobre um assunto do que outro. Mas aqui nos referimos aos fundamentos da fé….Comparando então as crianças com os adultos, João Crisóstomo diz que estes têm os próprios pecados perdoados no batismo e que aquelas não têm pecad; não como tu consideraste suas palavras, não maculados pelo pecado, como tu queres interpretar, não maculados pelo pecado do primeiro homem…Reproduzirei as palavras gregas ditas por João Crisóstomo…….Essas palavras em latim significam:Por isso, batizamos também as crianças, ainda que não tenham pecados certamente, verás que ele não disse as crianças não estão maculadas pelo pecado, mas não têm pecados: interpreta corretamente e não haverá contenda. Mas dirás por que não acrescentou ele próprias? Por que, pensamos, não falava ele de forma mais segura senão por que, disputando na Igreja Católica, não julgava que seria interpretado de outra forma, uma vez que não era provocado por ninguém a tal respeito, não tendo vós ainda levantado a controvérsia?
Portanto, Santo Agostinho não segue as regras da crítica textual, como dizem os nossos modernos, mas princípios mais altos que devem reger toda legítima exegese patrística. Refiro-me a tais princípios cuja rejeição ou negligência constitui o principal vício da crítica de que se falará no próximo capitulo.

Capítulo III

Do defeito do método histórico na análise dos monumentos da tradição

A investigação das coisas divinas sem as devidas cautelas nas premissas é causa de todos os males.
Acerca do método histórico, que constitui sem dúvida a grande questão entre os modernistas, mas não tratado igualmente por todos, não há um juízo uniforme. Dizem ser necessário fazer distinções, pois uma coisa se refere aos preâmbulos da teologia, em que se demonstram os fundamentos da fé (se se deve admitir ou não revelação cristã); outra coisa refere-se à própria teologia, em que, após o conhecimento da existência da revelação e de suas fontes, investiga-se a íntima dos dogmas revelados, (que sentido tem, qual sua interpretação, qual o verdadeiro sentido da palavra, o que do céu descendo de Deus está contido no instrumento da escritura inspirada ou da divina tradição). E realmente uma distinção óbvia, elementar, mais evidente, que não necessita de explicação. Mas considere-se agora onde, de acordo com o juízo dos novos teólogos, se aplica ou não o método histórico. Não se aplica quanto aos preâmbulos, não se aplica quando se está no vestíbulo, quer dizer, ao julgar o fato da revelação, se esta doutrina que se chama cristã tem origem no céu ou no homem. A razão disto é que a inteligência absolutamente não capta os argumentos externos da revelação, isto é, os milagres, as profecias, que por tal método histórico são deixadas na metade do caminho; de modo que se deve aí substituir pelo método da imanência para demonstrar a verdade religiosa, ou credibilidade da fé cristã, só a partir das aspirações, exigências e energias próprias da alma humana. Pensar-se-ia que se trata de história e de aplicar os critérios próprios da história à disciplina sagrada na qual se abre um grande campo para a história. Mas não se trata disto. Pois este mesmo método  histórico, que se pretende deixar fora do vestíbulo, encontrará seu lugar (coisa admirável) no âmago do santuário; e aquilo que, em matéria de apologia se exprobrava como obsoleto, agora em matéria teológica, aclama-se como o método por excelência. A razão disto é que tudo quanto está fora da história é a priori, está na nuvem, e não merece crédito do homem moderno. Incumbe, portanto, à escola  histórico-teológica submeter a uma crítica os pontos frágeis da religião e construir o edifício da teologia, solapado pelo tempo, com um novo material em lugar dos antigos fundamentos.
Mas, pergunto eu, que coisa revelam tais devaneios senão uma completa confusão de idéias, um absoluto caos e a que nos conduzem esses novos sistemas? Negam justamente o método histórico onde ele tem valor. Aplicam-no onde não tem legitimidade. Isto ficará bem claro nos próximos parágrafos.

§ 1

Por que o método histórico, por oposição ao método da imanência, é o único método legítimo no que se refere aos preâmbulos da fé, quando se tem de provar o fato da revelação, isto é: se a doutrina cristã revelada por Deus é crível e como tal deve ser crida.
O método histórico em geral consiste em duas coisas. Primeiro, naquilo que se refere ao texto ou monumentos, ou fatos externos. Segundo, naquilo que se refere aos únicos critérios experimentais de que se possa valer a faculdade natural da razão humana. Mas em ambos modos, imediatamente ou à primeira vista aparecerá conveniente à demonstração dos preâmbulos da fé. Com efeito, nesse sentido o princípio do seu processo inicia-se em fatos externos. Pois, “para que o obséquio da nossa fé fosse concorde com a razão, diz o Concílio Vaticano, Sess. 3, cap. 3, quis Deus  aos auxílios internos do Espírito Santo juntar argumentos externos da sua revelação, fatos realmente divinos, principalmente os milagres e as profecias.” É igualmente conveniente da parte dos critérios obtidos da experiência natural. Ainda não se supõe o conhecimento da revelação. Ao contrário, a própria existência da revelação é objeto de toda investigação, e por isso, para que não cometamos o pecado de um círculo vicioso, convém considerar a parte quaisquer regras ou normas derivadas da revelação, de modo que a apreciação e crítica dos fatos que se recebem como argumentos se subordinem ao ditame apenas da reta razão. Em tal método histórico observam-se todas as condições aqui exigidas. E não só isso. Mas o mais importante é que só com tal método um discurso racional chega à conclusão firme da demonstração proposta. Com efeito, a revelação é um fato; é um fato liberalíssimo da parte de Deus; é um fato sobrenatural, isto é, não exigido absolutamente da natureza; é, finalmente, um fato que não pode ser conhecido em si, diretamente, por nós. Onde, pois, está tal argumento que demonstra um fato dessa natureza? Realmente, teria sido dito por Deus o que foi dito por Jesus Cristo, o qual não se distinguia externamente dos outros homens? Mas dito por Deus aquilo que foi pregado pelos apóstolos, o que foi recebido de boca a boca por eles, foi transmitido até a nós pela Igreja? Deve-se pensar muito sobre isso. Se não se quer erigir um absurdo apriorismo como princípio, deve-se demonstrar o fato divino em si não cognoscível por outros fatos divinos em si cognoscíveis: certamente, poderão ter para nós valor de sinais, visto que propostos à nossa experiência e juízo, tanto em sua transcendência sobre as forças da natureza, quanto em sua coerência com a revelação cristã, se  realmente como divina for assinalada e autenticada. E esses fatos poderão ser, e realmente o são, de múltiplo gênero. O fato das profecias compridas pelo ocorrido; aqueles fatos físicos que simplesmente sem mais são ditos milagres; igualmente, os diversos outros fatos eminentes por seu modo admirável sobre todas as leis da história, como aqueles referidos pelo Concílio Vaticano na passagem citada: a propagação admirável da Igreja, a eximia santidade e inesgotável fecundidade em boas obras, a unidade católica, sua invicta estabilidade e outras coisas semelhantes. Pois estas coisas se contêm igualmente na ordem dos fatos: ainda à luz de critérios históricos brilham como divinos, e, portanto, são idôneos para uma demonstração: embora o seu principal fundamento tenha de ser tomado dos milagres e profecias, pelo que  aqueles sinais são mais evidentes para nós e acessíveis à inteligência comum de todos os homens. Tal procedimento foi, portanto, sempre proposto, a começar pelo próprio Cristo Senhor e por seus apóstolos, como o atesta toda a narrativa evangélica desde o início até o fim: “autenticando-a Deus, diz Heb. II, 4, com sinais, milagres e prodígios e pelos dons do Espírito Santo distribuídos “[60]
Mas agora esse método, não sei por que considerado vicioso, é substituído por um novo método, que toma o princípio de demonstração não dos fatos externos, mas só do subjetivo estado da alma: quer dizer, os dogmas cristãos são postulados por um tal estado de alma e a ele se ajustam, a fim de que a alma possa descobri-los em si mesma, ou ao menos penetrá-los a vontade e com sua própria energia assimilá-los imediatamente e se propõem contanto que se ocupe em sua purificação e retidão moral. Pois o progresso da nossa vontade obriga-nos a confessar nossa insuficiência, leva-nos a sentir a necessidade de certo auxílio e permite-nos olhar, conhecer e finalmente acolher a ordem sobrenatural. Portanto, só este método é legítimo, porque todo dogma provado extrinsecamente põe um limite indevido aos direitos da razão e anula sua necessária autonomia, que quer que só adquiramos como verdade aquilo que é imanente a nós. De resto,  não há por que nos ocuparmos mais disto. Basta que se saiba que o princípio da imanência  é a aquisição definitiva da filosofia moderna. Com efeito: “Quem se  recusa a admitir este princípio, já não é contado entre os filósofos. Quem não chega a compreendê-lo demonstra ipso facto não ter senso filosófico. Há alguma dúvida? Mas se a alguém não lhe bastam estas declamações retóricas nas quais consiste toda a demonstração do problema, talvez admire a base imaginária do sistema, a construção fantástica, a sua absoluta inanidade. E se realmente se  proferir tal juízo sobre a nova teoria no campo estritamente  teológico, consequentemente aparecerá como condenável porquanto corruptora da noção fundamental de entre sobrenatural, e até mesmo destruidora de toda fé cujo motivo seja a autoridade de Deus revelador, como aliás se deve agora como é débil quanto ao fundamento pressuposto, quão inepta quanto ao fato concebido, quão ridícula sua presunção de eliminar e superar a solidez da apologia tradicional com fulcro nos milagres e em outros argumentos exteriores da revelação.
Digo que é vá quanto ao fundamento que previamente se fixa. Com efeito, desprezando os argumentos externos pelos quais Deus uno e verdadeiro, criador e Senhor nosso, é conhecido como que pelos efeitos; fechando os olhos para todas as gestas divinas no mundo, para a vida, pregação e obras de Jesus Cristo, para a preparação e seu conseqüente advento, para quaisquer outros fatos objetivos pelos quais desde o início até hoje os testemunhos divinos se tornaram dignos de toda credibilidade: todo o conjunto da verdade religiosa, também a revelada, compreendida também a existência de Deus, tenta demolir tudo isso em nome apenas de uma consideração da insuficiência, indigência, inquietação e das aspirações da alma humana. Realmente, crer-se-ia ouvir filósofos sonâmbulos. Com efeito, pergunto, qual o gênero de argumento, qual é este  discurso raciona: sou indigente, logo sou indigente da parte da coisa é aquilo de que sou indigente ou a mim mesmo pareço indigente? Alguém diria, conduzido apenas pelo ditame do senso comum: Estará no desejo, estará na aspiração, estará também, e com mais freqüência, naquela fantástica objetividade cuja causa e princípio é a própria alma, criando tão facilmente e chamando à existência os seus desejos. São as chamadas ilusões da alma: “Mas quantas são as ilusões da alma, diz Santo Agostinho, se quiser dizer tempo quando basta? Realmente, que alma não sofrerá isso? Breve é o que advirto, de que modo nossa alma está repleta de ilusões.” Todavia, daquela imaginada objetividade à objetividade objetiva há tanta distância quanto há entre a realidade e o sonho. Finalmente, o desejo, a aspiração, e qualquer outra coisa semelhante, por si não mostra nada senão indigência; a indigência nada revela senão vacuidade; mas a vacuidade, que eu saiba, nunca poderá demonstrar existir realmente aquilo pelo que se enche. Estas coisas são manifestas nos diz aquele senso filosófico do qual por suma desgraça estamos privados.
Se alguém replicar dizendo que todos aqueles que antes de nós escreveram com sabedoria e eloqüência sobre a alma, a felicidade e o fim do homem chegaram a muitas conclusões solidíssimas a partir do desejo da natureza que não pode ser ilusório ou permanecer inane: a este direi que advirta com atenção que suas condições de argumento estão muito distantes do fundamento do método da imanência. Com efeito, consideram a natureza como obra de Deus sapientíssimo criador e providente; de Deus, direi, princípio e fim de todas as coisas, a quem por outra parte conhecem por suas aspirações: isto é, do fato da existência dos efeitos das coisas do mundo que não têm em si sua razão suficiente de ser, de sua ordem e de sua evolução. Portanto, o desejo da natureza não é tomado como nu e simples desejo, mas como desejo radicado na natureza por Deus autor, a cuja sabedoria claramente repugna imprimir à sua criatura proporção, exigência e tendência que não possam ser satisfeitas. Aqui  a aspiração natural é considerada formalmente como inclinação da coisa para o seu fim natural, conforme disposição do seu criador.[61] Aqui também, a partir do apetite da alma pode-se formar um argumento eficaz, ainda que não de qualquer apetite, mas só do apetite, como dizem, inato, ou também elícito não excedente os limites do inato.[62] Entretanto, quando me encerram em aspirações, que se diz serem imanentes; quando do fundo das aspirações se quer fazer emergir todo o edifício da verdade religiosa, por onde se pretende afirmar a existência de Deus, existir a revelação, existir uma ordem superior, quando todas essas verdades respondem, nem mais nem menos que às meras aspirações do coração, em meu íntimo rio e digo que é vão, ilusório, fantástico, oco semelhante a um devaneio tal fundamento.
Mas, por favor, deixemos tudo isto de lado. Admitamos por ora esse fundamento e demos maior premissa de todo o processo: haver necessária conexão entre as aspirações da alma exatamente como tais e a concreta existência das coisas que por elas se postulam. Chegaremos assim ao fato que o novo método apologético coloca no lugar da menor, realmente: as aspirações do coração na verdade requerem, exigem, postulam a revelação. Ai também só há sonho, jogo da imaginação. Com efeito, um fato dessa natureza está longe de toda experiência  positiva. Negam-no em primeiro lugar todos os racionalistas. Negam também todos os teólogos católicos. Nega-o finalmente o Concilio Vaticano, estabelecendo expressamente e definindo que a revelação foi absolutamente necessária apenas na medida em que foi do beneplácito de Deus por sua infinita bondade conceder ao homem um beneficio indevido, ordenando-o a participar dos bens divinos que superam completamente a capacidade da inteligência humana, pois o olho não viu nem o ouvido ouviu nem o coração do homem sentiu o que Deus preparou para aqueles que o amam. Mas ainda há outra coisa: aqueles que em primeiro lugar deveriam recusar esse erro são imanentistas, embora não tenham nenhuma verdade legítima a não ser aquela tirada do fundo da própria alma. Realmente, não se pensa nada mais estranho que a revelação no fundo da alma humana, e imediatamente busca-se qual gênero de quimera seja a alma se não pode receber nenhuma verdade senão a autóctone e ao mesmo tempo não necessita nada mais do que da instrução e da doutrina recebida do exterior, isto é, de Deus revelador que vem fora e acima de todas as leis da natureza.
Que dizer, se descermos à concreta aplicação de tal teoria! Pois a revelação que dizem ser exigida pelas aspirações do coração não é a revelação em geral, mas aquela revelação existente no individuo, a qual se chama  fé católica. “Mas a fé católica é esta, um Deus na Trindade, e a Trindade na unidade veneramos, sem confundir as pessoas, sem separar a substância. Uma a pessoa do Pai, outra a do Filho, outra a do Espírito Santo, mas uma mesma é a divindade do Pai, do Filho e do Espírito Santo, igual a glória, coeterna majestade…Deus Pai, Deus Filho, Deus Espírito Santo, mas não são três deuses, mas um só Deus…Pai que não foi feito por ninguém, não criado, não gerado. Filho do Pai só, não feito, não criado, mas gerado, Espírito Santo do Pai e do Filho não feito nem criado, mas procedente…Esta é também a fé reta, para que creiamos e confessemos que Nosso Senhor Jesus Cristo é Filho de Deus, Deus e homem…O qual, ainda que Deus e homem, não são dois, mas um só Cristo, um, não pela confusão da substância, mas pela unidade da pessoa…Que padeceu por nossa salvação, desceu aos infernos, ressuscitou dos mortos ao terceiro dia, subiu aos céus, está sentado à direita do Pai…Esta é a fé católica, a qual se alguém não guardar fielmente não poderá ser salvo.” Pois bem, veja o leitor, indague agora o que há de comum entre esta fé católica e as aspirações, exigências e postulados que latem no fundo da alma humana. Se o leitor vir, nuito bem; eu não vejo nada.
Mas alguém dirá: não é sob este aspecto que se deve considerar a fé cristã quando se deve emitir um juízo sobre a sua conveniência com as aspirações do coração: não da parte teórica, mas sim da parte moral, que afeta o senso prático. Seja como for. Mas também deste modo digo que é tão eficaz e tão rigoroso há de ser o argumento pelo qual algum turco demonstraria a credibilidade da revelação trazida por seu profeta Maomé. Pois também Moisés trouxe uma revelação ao mundo e teve colóquio com |o Arcanjo Gabriel segundo relata o Corão: como também encontramos no Evangelho, Jesus Cristo desceu do céu para nos comunicar as palavras daquele que o enviou. Além disso, se o juízo depende das exigências e tendências do coração, parecerá muito mais verídica a revelação de Maomé que a de Cristo a quem ouve suas aspirações! De nada vale dizer que as aspirações a que corresponde o paraíso de Maomé não são boas, enquanto não se demonstrar a verdade de seus postulados. Porque, deixando agora de lado as outras premissas, quem ensinará esta distinção entre aspirações boas e não boas? E eu também, enquanto não abandono o homem real, enquanto apreendo minha natureza como constituída sob  a ordem da primeira causa, do primeiro princípio e do fim último de todas as coisas, enquanto respeitar esse supremo fim posso julgar e julgo a bondade ou maldade de minhas aspirações. Mas ainda insisto: se estou encerrado em minhas aspirações como no primeiro princípio do qual se deve retirar e comparar toda verdade, já não sei quais sejam as boas ou más aspirações. Não conheço nada a não ser aspirações verdadeiras e reais. Mas descubro em mim aspirações que desejam um paraíso maometano, outras que desejam o paraíso de Cristo, e concluo serem igualmente verdadeiras as revelações do Corão e do Evangelho, ambas aceitáveis. Veja-se como é inepto, inconsistente e contraditório este sistema.
Há algo pior, pois, na medida em que alguém confia na solidez do novo sistema, persuadido de que a apologia tradicional perdeu o seu vigor no esplendor de sua luz com os milagres e outros argumentos externos da revelação (dos quais afirma não duvidar), por já não corresponder à mentalidade moderna e tais milagres não terem mais força demonstrativa para os homens contemporâneos. Nisto, com efeito, o cúmulo se acrescenta aos fantásticos juízos de que consiste todo o sistema. Crer-se-ia que os estudiosos da imanência até agora não sabem nada nem ouviram falar absolutamente nada acerca dos novos e esplendidos com que aprouve a Deus até hoje, no teatro de suma publicidade à luz do sol, confirmar a credibilidade da fé católica. Para a história desses fatos, portanto, na qual há uma perfeita refutação da ridícula teoria, remetemos os inovadores[63] efetivamente, é verdade que o moderno espírito de incredulidade resiste aos milagres e imagina o impossível para não admitir a realidade dos milagres e voluntariamente fecha os olhos para não confundido pelo irrecusável testemunho dos milagres[64]. Mas fora isso, ah deuses imortais! não há nenhuma novidade, a não ser talvez se se queira dar certo ar moderno próprio do tempo dos escribas e fariseus, a conclusão seria completamente diferente daquela que querem tirar. Realmente, os inimigos da revelação tentam solapar suas sólidas demonstrações; mas contra a tênue e nebulosa apologia da imanência quais armas e forças aplicar? Dela zombam e zombarão sempre, e o diabo com eles.
Assim, pois, aparece quão absurdamente se afasta da chamada teologia fundamental o método histórico. Mas surge a questão se indevidamente expulso do vestíbulo, com legitimidade é admitido no santuário da ciência sagrada. Disto trataremos no próximo parágrafo.

§ 2

Por que o método histórico, por oposição ao método teológico, é não apenas insuficiente e desproporcionado, mas também indutor de erros positivos de todo gênero, quando após os preâmbulos da fé não indaga se a revelação cristã existe mas investiga o seu sentido, e qual  a interpretação daquilo que está contido em suas fontes. E por que o mesmo método, se chega ao ponto de, sob a enganosa imagem de abstração de regras superiores, utilizar-se da mesma independência em suas habituais hipóteses e conjunturas que pretende concretizar, e se aquelas regras superiores não existirem, tem em sua base uma heresia mais perniciosa porque artificiosamente dissimulada e mais grave porque abre caminho mais livre para toda negação dos dogmas revelados.
A razão geral desta tese é evidente, de modo que não há necessidade de uma longa explicação. Com efeito,  em qualquer ordem de exegese, o primeiro e indispensável critério de interpretação deve ser sempre tomado a partir daquelas coisas que são próprias do autor e da escola cuja doutrina se investiga. O comum bom senso o dita; a razão óbvia o demonstra. Pois o que se diria, pergunto, de quem se atrevesse a comentar os livros de Aristóteles ou expor autores da escola peripatética descurando a terminologia própria de Aristoteles, suas regras e seu método, os princípios que regem sua escola? Quando se busca a interpretação, seja dos livros que tem a Deus por autor revelador, seja das obras, que, ainda que não inspiradas por Deus, mas pertencem a uma escola, se se pode dizer, fundada por Deus e instituída para a guarda e propagação da doutrina revelada, antes de tudo é necessário atentar para toda as normas derivadas da mesma revelação e as regras especiais que a revelação ou sua natureza inspira ou de fato estabelece. Estes são critérios teológicos. Ao contrário, o método histórico ignora justamente estes critérios e utiliza-se dos critérios profanos que se empregam nas coisas humanas. De que modo, então, poderão ser eles legítimos? Certamente, conduzirão a erros gravíssimos na interpretação de muitos textos. Ilustraremos isto com alguns exemplos.
Leia-se, por exemplo, no Evangelho segundo São Mateus, que antes que José Maria se casassem, concebeu Maria por obra do Espírito Santo; leia-se que José não a conhecia até que deu à luz seu filho primogênito; também há a menção a vários irmãos e irmãs de Jesus. Ora, encerrado no método histórico, facilmente conclui-se daí que há irmãos e irmãs uterinos; diz-se primogênito, não só um antes que nenhum, mas também depois de vários; portanto o sentido do evangelista é que antes que Maria fosse conhecida por José teve filhos e filhas e que, por conseguinte, perdeu a virgindade. Comete-se um erro, ou melhor, incorre-se em heresia formal. Se se respeitassem os critérios superiores da fé, esse sentido certamente estaria excluído. Compreender-se-ia que o evangelista excluiu essa possibilidade que poderia ocorrer ao pensamento; compreender-se-ia que ele estabeleceu como indubitável e como que fora de qualquer possível suspeita que, após tal concepção do Espírito Santo, o sacrário da divindade permaneceu inviolável; compreender-se-ia finalmente ser dito no mesmo sentido: não a conhecia até que, etc, aquilo que diria no sentido: este não fez penitência até a morte, porque, quando se trata de penitência, só se pode falar do tempo presente, e quem afirma que alguém não se arrependeu enquanto aqui viveu, diz que não se arrependeu jamais, até na eternidade.
Lê-se em São Lucas que Jesus crescia em sabedoria e idade e graça perante Deus e os homens, e porque não se diz de Jesus de modo diferente o que se diz de qualquer menino dotado de boa índole, conclui-se que o evangelista quis dizer que Jesus crescia intrinsecamente na virtude, porque pouca a pouco, sem perceber, tomava consciência de si, pois, como qualquer outro, de ignorante fazia-se sábio. Labora-se em erro. Certamente aqui São Lucas, à maneira de um historiador, atesta o fato externo, sensível, experimental, visível àqueles junto aos quais crescia Jesus; isto é, o fato de qualquer progresso observado pelas ações exteriores, à proporção que por essas ações, fossem acerca dos deveres para com Deus, fossem dos deveres para com os homens, cada vez, com o passar do tempo, manifestavam-se a sabedoria e a graça. E se realmente se houvesse de emitir um juízo sobre o sentido do evangelista e do fato por ele atestado segundo as regras gerais, de fato seria legítima a passagem, legitima a ilação de um progresso interior, porquanto aquele, no curso normal das coisas, está ligado ao fenômeno exterior como a causa com o efeito. Mas algo impede que se faça tal juízo conforme essa norma ordinária e geral. Quanto ao fato, veda-o o princípio revelado pelo qual somos ensinados que as ações de Cristo não resultaram de uma crescente sabedoria e virtude, mas apenas como crescentes manifestações da sabedoria e da virtude de que estava pleno desde o início. Quanto ao sentido do evangelista, porém, veda-o a certíssima fé na inspiração do evangelho, da qual na verdade se pode às vezes abstrair, mas contra a qual ninguém pode jamais sentir.
Lê-se em São Marcos que Jesus, vindo a Nazaré, não podia aí fazer nenhum milagre mas apenas curou poucos enfermos impondo-lhes as mãos, e daí conclui-se que o escritor estava persuadido de que era limitado o poder dos milagres em Cristo e que o defeito do poder foi realmente a causa de não ter beneficiado com milagre inúmeros enfermos. Aqui também se labora em erro. Com efeito, supostas as regras da fé sem as quais os livros de Deus não têm reta interpretação: “Deve-se dizer que aquilo que se diz: “não podia aí fazer nenhum milagre” não se refere à potência absoluta, mas àquilo que se pode fazer congruentemente”[65] Não porque, diz São Jerônimo, àqueles incrédulos não pudesse fazer muitos milagres, mas porque não condenasse aqueles cidadãos incrédulos fazendo muitos milagres. Conforme aquilo que está no livro dos Gênesis 18,17: Acaso não poderei ocultar a Abraão o que hei de fazer? E  em 19,22: “nada poderei fazer antes que lá tenhas chegado.” Igualmente, em São Mateus, lê-se que Cristo admirou-se ouvindo falar o centurião, e, como para nós a admiração resulta de algo inesperado, transferir a causa da admiração para Cristo é afirmar, portanto, que Cristo participa de um defeito comum nosso ou da nossa ignorância. Assim, pois, se procede humanamente; mas critérios mais altos subministram outra explicação: “Deve-se dizer que a admiração é propriamente de algo novo e insólito. Em Cristo, porém, não podia ser algo novo e insólito quanto à ciência pela qual conhecia as realidades no Verbo, e tampouco quanto à ciência pela qual conhecia as realidades por espécies aplicadas. Pôde, entretanto, haver algo novo e insólito segundo a ciência experimental, segundo a qual diariamente lhe ocorriam coisas novas. E portanto se falarmos dele quanto à ciência beatífica ou também quanto à infusa, não houve em Cristo admiração. Mas se falarmos dele quanto à ciência experimental, então pôde nele haver admiração, e assumiu esse efeito para nossa instrução, a fim de realmente nos ensinar que é admirável porque ele  mesmo se admirava.”[66]
Encontra-se uma dificuldade em conciliar entre si os evangelistas quanto à ordem e circunstâncias das aparições de Cristo às mulheres após a ressurreição, e apoiando-se em no método modernista, que sempre recorre às hipóteses mais verossímeis e mais fáceis, opina-se que nesse ponto há lapsos dos evangelistas, ou de todos ou de alguns deles. Com efeito, isso seria provável se se tratasse de livros humanos; não é provável, mas deve ser certamente excluído se se trata de livros divinos. – Compara-se o evangelho de São João com os sinóticos e feito o confronto, julga-se que se  Cristo falou conforme São João, não pôde falar como os sinóticos, ou vice versa, se falou como os sinóticos, não pôde falar como São João. Tal conjectura é muito débil, ainda que tivesse toda probabilidade, para quem admite a doutrina certíssima da fé que apresenta os quatro livros de um mesmo evangelho de Jesus Cristo.  E assim sucessivamente em muitos outros casos que poderiam ser enumerados se não nos faltasse tempo.[67]
Porque, se agora se opõe à defesa do método modernista o fato de os evangelhos serem também documentos realmente históricos, que como tais, nem mais nem menos, devem ter sido recebidos nos preâmbulos da fé por ordem ao juízo de credibilidade, quando as regras e os critérios que derivam da fé ainda não são usados nem podem ser, a fim de que – o que não se admite – não se incorra em manifesto círculo vicioso, responderei que isso é muito verdadeiro, mas acrescentarei logo que , em uma inadequada concepção do evangelho, não é absolutamente possível um juízo adequado e completo sobre a coisas do evangelho. Tomar-se-ão, pois, os fatos externos, visíveis, de ordem experimental, que no evangelho são atestados; mas quanto à razão íntima das coisas, evocar-se-á à memória o que à luz só dos critérios comuns chegará apenas a conclusões hipoteticamente verdadeiras; hipoteticamente, digo, isto é só segundo a ordem das coisas geralmente contingentes, ordem que aí não existe, conforme ensinará a luz superior da fé. Tomar-se-á também a substância da narração histórica, que é evidentemente a mesma e se apresenta principalmente em todos os nossos livros, e tal qual a todo homem sincero oferece solidíssimo fundamento de convicção a respeito dos milagres e outros sinais. Mas quanto ao modo de narração e aos acidentes, convém recordar que o habitual método crítico-histórico poderá conduzir a muitas conjecturas mais ou menos verossímeis, que não passarão de conjecturas, até que a fé na inspiração, transcendendo o procedimento modernista, mostrará que elas talvez sejam falsas.[68] Haverá com freqüência passagens em que se suspende o juízo e se dirá que só à luz da ciência histórica não consta tudo quanto acerca dos fatos da história sagrada ou da sua absoluta infalibilidade a sagrada doutrina conserva e transmite. Mas de qualquer modo, o método de tratar e interpretar o evangelho com aquela liberdade e independência que se admite nos documentos profanos da história é falso, vicioso e induz em erro.
Ademais, guardada a proporção o mesmo erro se verifica quanto à interpretação da tradição, quando concebem a tradição como se estivesse colocada no fato histórico comum, isto é, no fato da transmissão de qualquer doutrina segundo apenas as forças e recursos dos engenhos humanos; e relegam completamente a segundo plano os critérios superiores que no caso são necessários para a formulação de um juízo legítimo acerca do sentido dos antigos padres em muitas passagens que nos parecem obscuras, e absolutamente falando, podem oferecer azo a diversas interpretações; entre as quais os críticos, por seu prurido de opinar livre e independentemente, escolhem aquelas que inclinam para o lado heterodoxo, para que cheguem à conclusão desejada: o sentido da igreja primitiva teria sido diferente daquele que prevaleceu mais tarde. Com efeito, se a tradição fosse conduzida só pelo espírito humano, então, efetivamente, nada obstaria  a que se admitisse a possibilidade da mutação do sentido e compreensão dos dogmas. Então não seria necessário tomar emprestada das claras explicações dos padres posteriores a segura e certa norma de interpretação das mais obscuras exposições dos mais antigos. Então seria licito confrontar os sucessores com os antecessores. Então talvez se pudesse dizer que aqueles grandes doutores dos séculos quarto e quinto ou enganaram ou se enganaram, quando professaram, tão veementemente e tão instantemente, estar ligados completamente ao sentido e às sentenças dos seus maiores. Santo Agostinho não teria compreendido os autores dos quais escrevia no exórdio dos livros sobre a Trindade: “Todos os que pude ler, que antes de mim escreveram sobre a Trindade que é Deus, os tratadistas católicos dos livros sagrados, assim o entendem segundo ensinam as Escrituras que o Pai, o Filho e o Espírito Santo de uma mesma e única substância constituem uma unidade divina de uma igualdade inseparável e portanto não são três deuses mas um só Deus.[69] Em suma, os escritores primitivos teriam conhecido, sob o sumo e suprem Deus, no Filho e no Espírito Santo deuses inferiores ou demiurgos e, assim, teriam introduzido um novo paganismo diverso do antigo só sob uma forma acidental. Direi que talvez se possa dizer essas coisas, que, ainda que pareçam bastante grosseiras, mesmo assim são conclusões admissíveis por aquela disciplina que tem por habito repousar sobre muitas hipóteses e conjecturas.[70] Aqui também, não de outro modo que na Escritura, se deve reconhecer um elemento mais humano; e como se tratava do método histórico e se devia dizer deletério e abertamente  insuficiente para a interpretação do evangelho, do mesmo modo será para a interpretação dos monumentos da sagrada tradição.
Mas note-se bem: não devaneamos porque se certas coisas bem demonstradas segundo os critérios legítimos da disciplina histórica, poderão, entretanto, às vezes, mostrar-se falsas segundo os princípios superiores da fé e os critérios próprios da teologia. Absolutamente não. Não é este o sentido das premissas. Mas dizemos apenas que no trabalho crítico desenvolvido as regras frequentemente levam a juízos meramente prováveis, a conjecturas mais ou menos verossímeis, para não completamente imaginárias. Pois bem, aquilo que à luz da crítica histórica poderia ser conjectural ou até mesmo provável já não é provável se se opuser à verdade que por outra via com absoluta certeza se manifesta. De fato, é herético ou errôneo, e não é licito opinar se contradiz aquelas coisas que a fé ensina ou os critérios teológicos demonstram. Ademais, se com a aparência de precisão derivada de critérios superiores se intenta tratar os documentos da Sagrada Escritura ou da Tradição com a mesma liberdade e independência que se concede aos estudos profanos, não só não se evitará a corrupção herética, mas acrescentar-se-á também o delito de artificiosíssima falácia. Escrevia o autor do opúsculo O Evangelho e a Igreja, na introdução de sua obra: “Neste opúsculo temos a intenção de considerar todas as coisas apenas segundo o critério histórico; não desenvolvemos uma apologia do catolicismo e do dogma tradicional. Se tal fosse nossa intenção, o presente opúsculo seria muito incompleto e defeituoso, sobretudo no que concerne à divindade de Cristo e à autoridade da Igreja…Não pretendemos aqui demonstrar nem a verdade do Evangelho nem a verdade do cristianismo católico, mas apenas definir o modo de ser pelo qual o Evangelho e a Igreja católica na história estão unidos. O leitor de boa fé não se enganará quanto a isso.[71] Não se pode dizer isto se a tantos incautos ilude esta dolosa declaração. Acaso, diziam, uma coisa é distinguir, outra negar? Acaso não é axioma aceito por todos eles: distrair não é mentir? Por acaso não é uma a visão do historiador e outra a do teólogo? Realmente. E chegando ao fim do livro vêem-se todos os dogmas da fé cristã, um após o outro, destruídos. São considerados, em suma, dignos de abjuração, senão mesmo o contrário do dogma admitido e aprovado pelo historiador para que possa ser recebido como certíssimo pelo fiel. Por isso, digo: o método histórico, levado ao extremo sob a dolosa aparência de abstração de regras superiores, emprega a mesma independência nas suas costumeiras hipóteses e conjecturas a serem construídas ainda que não existissem tais regras superiores, tem em seu fundamento uma heresia tanto mais perniciosa quanto mais abre caminho mais livre para a destruição de todos os dogmas revelados.

Capítulo IV

Do erro da verdade relativa nos dogmas da tradição[72]

“Disse-lhe Pilatos: Que é a verdade?”
(Jo. 27, 38)
Uma vez admitido que o entendimento da Igreja antiga a respeito dos dogmas primários da nossa religião fosse realmente  diverso do entendimento que prevaleceu posteriormente na Igreja, não se pode mais afirmar a imutabilidade da tradição, estável e sempre constante, mas, ao contrário,  dever-se-á reconhecer que ela sempre esteve sujeita a uma indefinida variação. Em decorrência disso, como querem os novos mestres, as noções que a Igreja propõe como dogmas revelados não são verdades descidas do céu e conservadas no mesmo teor em que se propunham desde sua origem, nada impede que sempre se modifiquem e sempre se despojem daquele modo que condições especiais de cultura nos séculos futuros trouxeram, de maneira que cada vez mais se revistam de uma forma cientifica mais aprimorada. Com muito mais razão se deve dizer que nada o impede, há muita coisa que exige tal mudança. A filosofia reformou-se completamente; hoje o conhecimento da história e do universo é muito mais amplo, hoje….hoje….etc.
Mas dirá alguém: Se assim se deve julgar acerca da  sagrada tradição, se aquilo que até ontem era ensinado como verdade hoje deve ser corrigido, se se admite uma indefinida evolução, e toda evolução traz consigo algum descrédito da doutrina antes ensinada, logo errou a tradição antiga como erra também a tradição presente; toda infalibilidade é completamente arrancada ao magistério apostólico, e a promessa feita por Cristo à Igreja do carisma de verdade simplesmente não existe. Sem dúvida, uma grave dificuldade, que tem, entretanto, uma excelente solução na distinção que se deve fazer entre verdade absoluta e verdade que se poderia dizer relativa. Realmente, é esta  a distinção que sugere a filosofia kantiana contra o falacioso dogmatismo da Escola. Com efeito, não errava ele, que considerava incognoscíveis os númenos (as coisas em si) ou as naturezas íntimas das coisas, sobretudo daquelas que estão acima de nós. De fato, quem poderá confiar realmente em seus conceitos como se fossem conformes com a realidade objetiva? Que coisa mais incrível que o axioma da antiga filosofia que considerava a verdade em nossa mente como adequação do intelecto com a realidade? Que coisa mais absurda ainda,  se se referir especialmente às coisas divinas que se elevam infinitamente sobre tudo aquilo que nossas idéias possam exprimir? Portanto, para nós, a verdade é uma contínua investigação, antes que a impossível consecução e posse daquilo que se investiga; é a concepção que se possa aproximar mais da realidade; é o melhor modo de falar que possa haver nas nossas presentes condições e circunstâncias, mas a esse modo de falar não convém jamais estar vinculado definitivamente. E porque os próprios dogmas da fé foram formados mediante certa redução dos mistérios divinos às comuns noções humanas, como a própria estrutura deles o demonstra muito bem, claro está que  neste ponto também, sobretudo neste ponto, considerada a absoluta transcendentalidade do objeto, a verdade nada mais será que aquilo que melhor e mais aptamente se disser segundo as correntes idéias e o estado da cultura próprio de cada época. Nisto consiste a razão da verdade relativa, que, embora favoreça a doutrina da tradição e das definições eclesiásticas, concilia excelentemente entre si duas realidades que antes pareciam incompatíveis, isto é, a evolução doutrinal e a infalibilidade entendida em justo modo.[73]
Assim a nova escola que agora ganha força, e parece não levar em conta o anátema proferido pelos padres do Concilio Vaticano, Sessão 3, cânon 3 sobre a fé e a razão, contra aqueles que dizem “poder suceder que aos dogmas propostos pela Igreja, alguma vez conforme o progresso da ciência seja atribuído um sentido diverso daquele como o compreendeu e compreende a Igreja. Além disso, o escopo do presente capitulo é explicar como se deve julgar aquela ficção da verdade relativa até agora celebrada, em primeiro lugar quanto a si mesma e depois a sua aplicação ao dogma da nossa fé.

§ 1

Porque o conceito de verdade relativa é em si absurdo e porque fora da definição consagrada pela antiga filosofia (adequação da inteligência e da coisa), nenhuma outra noção de verdade é admissível.
Como o bem designa aquilo a que tende a vontade, assim a verdade designa aquilo a que tende o intelecto. Mas há essa diferença entre a vontade e o intelecto ou qualquer conhecimento, porque o conhecimento é segundo o que foi conhecido no cognoscente, ao passo que a vontade é segundo o que a vontade se inclina à mesma coisa apetecida, e assim o termo do conhecimento que é o verdadeiro está no mesmo intelecto…Mas como toda coisa é verdadeira conforme tenha a própria forma da sua natureza, é necessário que o intelecto enquanto é cognoscente seja verdadeiro enquanto tem a semelhança da coisa conhecida, que é a sua forma enquanto cognoscente. E por isso, pela conformidade do intelecto e da coisa define-se a verdade.[74] E ainda mais: na coisa verdadeira, se o conhecimento deriva da sua própria natureza, representação do objeto existente no intelecto, segue-se imediatamente que a verdade, na medida em que é a própria perfeição do conhecimento, não pode consistir em outra coisa senão na sua conformidade com o mesmo objeto. Digo, porém, conformidade que não deve ser buscada na entidade do ato cognoscitivo por comparação à entidade da coisa fora do intelecto, mas precisamente naquilo que a coisa em si mesma se constitui objeto como o intelecto apreende e diz ser objeto constituído.
Mas para que o intelecto diga alguma coisa sobre a real constituição do objeto, é necessário que ele se refira a outro com um ato seu, e não faz isso na simples apreensão, mas só no juízo que se exprime por uma proposição. Com efeito, todo juízo compreende duas noções, das quais uma se toma como sujeito que supõe em lugar da coisa à qual a mente se refere, e outra como forma que se atribui ao sujeito e dele se predica. E supondo  o sujeito em lugar da coisa fora do intelecto, sempre enuncia algo designado e distinto, embora ainda imperfeitamente apreendido como algo quase potencial que é determinado pelo predicado. E não se repugnam entre si. Pois certamente o matemático começa a falar do triangulo antes de saber suas propriedades, e o físico a falar do magnetismo como de causa de certos efeitos sem que ainda conheça sua intima constituição; tu nomeias uma planta antes de determinar sua espécie; nomeias anjo, conquanto tenhas dele uma noção muito vaga e imperfeita; nomeias Deus embora saibas que estás infinitamente longe da concepção de sua essência, pois basta que digas primeiro ente, causa da qual dependem todas as coisas, ou algo semelhante, como se dissesses que o distingues de tudo o que ele não é. Como, pois, cada ser corpóreo se apresenta a mim distintamente, ainda que ignore muita coisa a seu respeito, e esteja oculta para mim a sua própria constituição numérica ou a razão da sua individuação: assim o sujeito do juízo se me apresenta como algo singularmente designado, embora potencial, que deve ser determinado pelo predicado. Agora, pois, se a forma significada pelo predicado convém à coisa indicada pelo sujeito, como o juízo afirma convir, ou se não convém, como o juízo nega convir, tem-se a verdade; mas se ao contrário, a falsidade; mas em ambos casos, não relativamente, mas absolutamente, simpliciter, sem mais nada a acrescentar. Com efeito, a conveniência da parte da coisa ou é ou não é, e esta é conveniência objetiva à qual deve adequar-se a conveniência afirmada pelo intelecto, para que isso seja exatamente verdade, e nada mais: adequação do intelecto e da coisa.
Mas observem-se bem os termos da adequação. Os termos da adequação não são o intelecto e a coisa, como se a partir dai realmente se colocasse o objeto em toda sua realidade, mas a partir daí o intelecto exaurindo toda a inteligibilidade dessa realidade, e por meio disso, como se não devesse haver nada no objeto que não houve igualmente no intelecto. Assim quiseram os novos mestres interpretar a adequação do intelecto e da realidade, a fim de ridicularizarem a definição de verdade recebida da antiga filosofia e assim com razão e facilmente repudiá-la. Mas quem, pergunto eu, pôde imaginar algum dia que é a mesma coisa a notícia verdadeira e o conhecimento compreensivo, pelo qual a realidade é conhecida tanto quanto é cognoscível? Portanto, não é desse modo que se entendem os termos da adequação, mas sim que de uma parte seja aquilo que da realidade o intelecto afirma e de outra parte aquilo que na coisa corresponde a uma afirmação semelhante. Por conseguinte, quando julgo que Deus é  sábio,  não digo que haja adequação entre meu conhecimento e Deus ou sabedoria de Deus, absolutamente não; mas apenas entre o que é, haver sabedoria em Deus ou convir a Deus, e o que acerca dessa conveniência fica claro em meu juízo.
Igualmente, os termos da adequação não são a medida do intelecto no conhecimento e julgamento, e a medida da coisa em si mesma, porque aqui também uma coisa é a medida do conhecimento e totalmente outra aquela que se afirma do objeto por essa medida do conhecimento. Por isso, Santo Tomás na primeira parte, q. 13, a. 2, perguntando se se podem formar proposições verdadeiras a respeito de Deus e levantando a objeção que todo intelecto conhecendo a realidade diferente do que seja, é falso, e que por outra parte a medida de Deus é completamente diversa da medida de nosso conhecimento, assim responde: “Em terceiro lugar, deve-se dizer que essa proposição: o intelecto conhecendo a realidade diversamente do que seja, é falso, é dupla, pois esse advérbio diversamente pode determinar esse verbo conhecendo, da parte do intelecto ou da parte de quem conhece. Se da parte do intelecto, essa proposição é verdadeira, e o sentido é: Qualquer intelecto conhece ser a realidade diversa do que é, é falso. Mas isso não ocorre na proposição, pois o nosso intelecto formando uma proposição de Deus não diz que ele é composto, mas simples. Se, porém, da parte de quem conhece, então a proposição é falsa. Com efeito, uma é a medida do intelecto no conhecer e outra da realidade no ser.  Realmente, é manifesto que “o nosso intelecto conhece imaterialmente as coisas materiais existentes abaixo de si, não porque as conheça imateriais, mas porque tem o modo imaterial de conhecer. E de modo semelhante, quando conhece as coisas simples que estão acima de si, conhece-as a seu modo, quer dizer, de forma composta (o que significa compor o predicado com o sujeito), mas não de maneira que as conheça como compostas. E assim o nosso intelecto não é falso formando composição acerca de Deus.” E igualmente por razão semelhante, quando o nosso intelecto afirma perfeições simples a respeito de Deus, não lhas atribui segundo um modo determinado e participado tal como elas existem em nós. Porque nos nomes que atribuímos a Deus, cumpre considerar duas coisas, isto é, as mesmas perfeições significadas, como a bondade, a vida, a sabedoria, etc, e o modo de significar. Quanto, pois, á perfeição que significam esses nomes, propriamente competem a Deus, muito mais propriamente que às criaturas, de maneira que lhas atribuímos, não ao modo imperfeito como existem em de perfeição participada.[75] Por conseguinte, ainda que não conheçamos positivamente o modo  próprio da perfeição divina, e mesmo que não possa ser conhecida positivamente antes de sermos dotados da visão, entretanto, naquelas coisas que a nosso espírito cogita retamente acerca de Deus, a adequação é do intelecto e da coisa, porque sempre é verdade em Deus aquilo que o intelecto afirma competir a Deus, e tal como afirma competir-lhe.
Veja-se, portanto, quão sofisticas são aquelas coisas que excogitam para construir a sua noção de verdade relativa. Dizem, com efeito: De que modo seria absolutamente verdadeiro aquele juízo no qual o sujeito é apreendido confusamente e o predicado tem um modo completamente diverso daquela que a coisa tem em si mesma? Como não estará mesclado de falsidade, e portanto, não será ao sumo relativamente verdadeiro um conhecimento tão distante da realidade de toda parte elevada acima de nós? Em suma, se nem Deus, nem seus atributos, nem a própria razão deles nos são conhecidos, haverá mesmo assim  um modo qualquer de falar dessas coisas diferente daquele a que estamos habituados ao refletir e discorrer sobre Deus e as coisas divinas? Assim é, embora absurdo, porque todas essas coisas mostram que o nosso conhecimento pode receber maior perfeição, seja graças às melhores espécies que aquelas que agora temos, seja por direta intuição dele que agora não se manifesta senão por meio dos seus efeitos, seja por uma nova luz pela qual a potencia intelectiva se robustece; mas não provam que algum dia os juízos retos do nosso intelecto inclusive acerca das coisas altíssimas hão de ser reformados. Nada importa que o sujeito do juízo não seja por si manifesto; basta, com efeito, se ele for designado de tal forma que saibamos do falamos. Realmente, nada importa que o predicado seja inferior à forma significada; basta, de fato, que o conceito seja posto sob tal abstração, sob a qual possa estender-se também a uma realidade que sob algum aspecto exceda nosso conhecimento, como, por exemplo, a respeito das substâncias separadas, nas razões formais que não incluem em seu significado uma limitação própria às realidades corpóreas; mas a respeito de Deus, uma limitação da criatura. E se por exemplo o conceito de vida, de conhecimento, de amor, etc, incluíssem aquele modo de viver, de conhecer, de amar, que nos é peculiar, com mais razão, certamente, não se atribuiria a Deus sem falsidade, como falsamente diríamos que Deus é corpo ou animal, etc. Mas, como estas noções se abstraem de nossas determinações, e em si mesmas implicam pura atualidade mão mesclada de algo restritivo, assim podem e devem ser atribuídas ao ente infinito. Todavia, nada importa que o modo de ser de Deus seja estendido à imensidão tal como a concebemos; efetivamente, como dissemos acima, não julgamos que haja em Deus aquele modo de perfeição que conhecemos, ou concretude ou composição tais como nos nossos enunciados. Convém, pois, dizer que Deus é sábio, imenso, onipotente, onisciente, etc, e o juízo assim proferido terá sempre a mesma verdade imutável em qualquer estágio de cultura, e na proporção de qualquer intelecto,  seja qual o objeto que por um modo mais alto atingem as mentes superiores, mais plenamente  penetrando sua inteligibilidade e aproximando-se mais do seu perfeito conhecimento.
E com razão qualquer doutrina que pretenda mudar suas afirmações ou o sentido delas, de maneira que não se conheça mais com exatidão o que antes se admitia, deve evidentemente reconhecer que simplesmente errou, e não simplesmente ignorou o que agora conhece, ou se situou apenas em certo grau inferior de verdade relativa. Se a física alguma vez admitiu que a luz se propaga pela emissão das esferas, e depois reconheceu que consiste nas vibrações ou nas periódicas alterações de algum fluido, sem dúvida que antes errou. Se algum dia se demonstrasse que a alma humana esta unida ao corpo só ao modo de causa eficiente ou motriz, e não pela íntima comunicação de sua realidade substancial, quem quer que seja que antes pensou que a alma e verdadeira forma do corpo incorreu em erro. Se os modernos com razão afirmassem que a personalidade se constitui pela consciência, e não pela razão formal do subsistente distinto,  certamente essa a razão por sua natureza antecede toda operação e até mesmo toda consciência de si, quem quer que tenha dito que em Cristo há duas naturezas e uma pessoa, quando há na verdade duas consciências correspondendo ao conhecimento divino e humano, certamente emitiu um juízo falso a respeito de Cristo. E do primeiro ao último, que mais claro peço, que mais evidente que é impossível que a doutrina mude seja como for sem que tal mudança se mostre como indo do erro à verdade ou da verdade ao erro? E se se disser que se caminha da verdade relativa para uma verdade relativa melhor, só se acrescentam palavras sem sentido, ocas, não se sabe o que se diz.
Mas talvez contra-argumentem: Não ocorre mudança entre os mesmos termos, mas a significação dos termos, com o progresso da ciência torna-se outra, de maneira que a mudança se dá, não tanto nos juízos nos quais reside formalmente a verdade, quanto nos conceitos e nas simples apreensões dos quais depende o sentido das afirmações e a razão de toda a doutrina. Certamente, respondemos,  depende muito. Justamente por isso, antes de se pronunciar alguma proposição, cumpre definir exatamente o sentido de cada palavra, como era costume na antiga escolástica, e na moderna se negligencia. Mas vejamos. Por acaso está realmente mudado o sentido das palavras? São outros os conceitos? Qual o corolário da mudança dos juízos? De duas uma. Ou mudou-se de tal maneira o sentido que já se trata de uma coisa completamente diferente daquela antes significada, e então um novo juízo, por que não é referente à mesma coisa, não deverá absolutamente ser comparado com o anterior, ou será considerado como seu modificador e reformador; de modo que, se tal mudança algum dia ocorrer, será necessário confrontar as palavras e observar que só se trata de nova terminologia, ou novo vocabulário. Ou mudou-se de tal maneira o sentido que a mesma palavra sempre se referirá à mesma realidade, e todavia será determinada com alguma nota contrária àquela que se entendia antes, e então é evidente que se alterou, não já entre os mesmos termos sob as mesmas palavras, como se sempre se dissesse que a alma é a forma do corpo, mas sim compreendendo por forma a causa meramente extrínseca, mas não a causa intrínseca e constitutiva. Então é também evidente que o que antes se dizia era falso e agora se diz a verdade, ou antes a verdade e agora o falso; mas de qualquer modo, seja antes seja agora, não há lugar para verdade relativa.
Por derradeiro, advirta-se quanto dista entre aquela que dizem ser a verdade relativa e aquela que todos admitimos, a perfeição relativa do conhecimento da verdade. Mas com razão, como há infinitos intelectos possíveis, uns mais perfeitos que os outros, até ao sumo intelecto  que é Deus, assim também há infinitos graus de perfeição no conhecimento da verdade. Há conhecimento compreensivo , e não compreensivo; há conhecimento intuitivo e abstrativo; há conhecimento próprio e quididativo; há conhecimento impróprio e analógico. Há espécies inteligíveis que em diversos modos representam as realidades; há luz intelectual mais ou menos potente na penetração o conteúdo das realidades e julgar segundo elas mesmas. Há claridade dos princípios mais ou menos intensa; há consideração mais ou menos atenta das notas do objeto, dos fatos que se oferecem à experiência, dos efeitos em ordem às causas. Há juízos certos, prováveis; há argumentos apodícticos; há simples conjecturas etc. pode-se, pois, dizer que perfeito é em relação ao homem aquele conhecimento da verdade, que seria, em relação ao anjo, imperfeitíssimo, exatamente no mesmo sentido em que com razão se diria grande em relação a um menino a ciência de que se envergonharia um douto filósofo. Mas, digo, daí não se deduza que toda verdade que disser o menino não seja também verdade para o filósofo. Não se conclua que a mesma verdade a ser dita seja relativa a vários intelectos, ou várias as condições dos mesmos. Na realidade, a adequação em que consiste a razão da verdade não admite graus, visto que constituída por aquilo que como forma expressa pelo predicado convém realmente ao sujeito real como afirma o intelecto. E tal adequação existe ou não existe. Donde o juízo ou é absolutamente verdadeiro ou é absolutamente falso. Se é composto, decomponha-se em partes, e cada parte será em si ou verdadeira ou falsa absolutamente. E na parte verdadeira deverá convir todo intelecto, até o mais sublime, ainda que ele pareça mais sublime, do mesmo modo  a mente inferior ainda que se afaste maximamente da perfeita e adequada penetração do objeto segundo toda sua inteligibilidade. Conclua-se, por conseguinte, que a verdade relativa ou não tem nenhum sentido, ou reduz a noção de verdade ao conceito de Protágoras, segundo o qual verdade é aquilo que aparece, de maneira que podem ser ao mesmo tempo verdadeiras as coisas contraditórias, quando a respeito delas julgam de diversos modos pessoas diversas.
Pois bem, se o filósofo não pode admitir tal concepção de verdade, ou melhor tal ignorância universal ou tal demência, muito menos o teólogo ou o fiel, porque já não será destruída a razão natural, mas também a religião, a fé, a revelação de Deus, conforme será explicado na proposição seguinte.

§ 2

Porque os dogmas da nossa religião são real e propriamente do céu e, portanto, repugnariam com especial razão ao conceito de verdade relativa, ainda que não houvesse por outra parte aquelas questões notoriamente contraditórias. E também porque a mesma pretensão absurda de aplicar à sagrada tradição a teoria da evolução destrói  não apenas o motivo formal da fé, mas também seu objeto material e o método de suma certeza que a fé deve ter no crente.
Com dificuldade compreende-se como, tomados por tal alucinação, os nossos neocríticos se transfiguram a sério em reformadores da teologia e promotores da mais alta inteligência do dogma católico, quando, entre eles, cresce tanto a confusão de idéias, que não se sabe mais dizer se a doutrina da fé vem de Deus ou dos homens. Eis que, realmente, para convencer que na nossa fé não há mais que verdade relativa, já não duvidam afirmar que os conceitos que a Igreja propõe como dogmas revelados não são verdades reveladas do céu, porque aqueles dogmas, ainda que se queira divinos quanto à origem e substancia, entretanto são humanos quanto à estrutura e composição.[76] Além disso, o que por origem e substância em oposição à estrutura e composição se deva entender, não explicam. Mas não é necessário que expliquem, sobretudo porque onde falam claramente do elemento divino que somente quanto ao nome conservam em nossos dogmas, nitidamente aparece ser também esse elemento humano, como enfim todas as coisas na ordem humana, a origem, a substância, a estrutura e a composição. Isto posto, não há interesse em saber as diferenças de cada vocábulo. Por enquanto, omitamos essa questão. Tomemos a distinção entre o elemento divino e o humano dos dogmas no melhor sentido que absolutamente ele possa ter, e vejamos se de uma distinção desse modo (cuja legitimidade por certa razão ninguém negará) resultará efetivamente que os conceitos que a Igreja propõe como dogmas revelados não sejam imutáveis e verdades provenientes do céu, mas apenas conceitos mutáveis, reformáveis, relativos e sempre depuráveis por uma progressiva expurgação do resíduo e da borra que antes continham.
Certamente, os dogmas conforme nos são propostos encerram primeiro palavras; são em segundo lugar conceitos recebidos do alto, resultando de coisas simples conceitos simples ou incomplexos, ou complexos;  encerram também um nexo pelo qual se compõem os conceitos em juízo. Que querem nossos evolucionistas quando dizem que as verdades dogmáticas não são descidas do céu?
Por que não há palavras descidas do céu? Certamente, concedemos isto, pois nunca imaginamos que nos chegasse do alto uma nova língua com uma revelação de Deus. Por que não há conceitos descidos do céu? Isto também concedemos sem dúvida, se o discurso se referir aos primeiros conceitos e elementos, porque as noções dessa natureza, se não as tivéssemos, deveriam chegar a nós, justamente para que se nos tornasse inteligível o discurso da revelação, ou por infusão milagrosa ou por meio daquilo que apresentasse aos nossos sentidos e à nossa intuição os novos objetos. Mas para nada disso serve a revelação. Não nos acrescenta novas imagens inteligíveis, não nos oferece visões, não nos eleva àquele novo modo de compreensão pelo qual só no estado final seremos agraciados. Pressupunha, pois, os nossos conceitos, ao menos os primeiros e elementares. Pois a mesma razão não compreende inteiramente os conceitos complexos, porque nada impede que a revelação traga certos novos conceitos, que a nossa razão não teria outros, como, por exemplo, consubstancial, Mãe de Deus, transubstanciação, etc, nos os elementos de complexidade já nos eram em geral familiares, mas a mesma complexidade não. Mas isto não vem ao caso. Basta, com efeito, observar por ora que os conceitos recebidos do alto se referem a doutrinas, como as letras do alfabeto aos vocábulos, ou os vocábulos aos discursos; e porque os mesmos conceitos entram em diversas  doutrinas de origem diversa, do mesmo modo que as letras entram em diversos vocábulos de significação diversa. “As mesmas letras, diz Santo Agostinho, em tantos milhões de palavras e discursos se repetem, não se aumentam; há infinitas palavras, mão as letras são finitas; ninguém pode numerar as palavras, qualquer pode contar as letras, portanto há multidão de palavras. Quando uma letra é colocada em vários lugares, em cada lugar não tem o mesmo valor. Que coisas tão diferentes como Deus e o diabo? Entretanto, no começo está a letra D, quando dizemos Deus e quando dizemos diabo. Portanto, a letra vale conforme o lugar. No entanto, erra, e é máximo absurdo, e revela um coração pueril quem, por exemplo, quando ler a letra D no nome de Deus temer colocá-la no nome do diabo, para não fazer injúria a Deus”[77] Mas por acaso, tome-se o cuidado,  transfere-se também a comparação do coração pueril para a nossa questão para que se veja até a evidência que pode haver palavras tiradas da terra, bem como conceitos elementares da terra, estrutura e modo de enunciações derivados da terra, embora sejam verdades do céu e dogmas que a partir desses conceitos se formam, que estão significados por essas palavras, que estão expressas por essa estrutura do discurso.
Realmente alguém me dirá: do fato de haver apenas vinte e quatro letras do alfabeto que estão ao alcance de todos, por que com essas letras posso escrever o que quiser, o senhor por acaso deduzirá que alguma verdade que só eu conhecia e agora lhe manifesto por escrito, na medida em que lhe é manifestada clara e formalmente, não procede ela de mim? Ou do fato de que a língua que o senhor emprega, não a inventou mas aprendeu-a completamente de outros, do fato de seu vocabulário, idiotismos, estrutura, regras, nada teve origem no senhor: deste fato, digo, da língua que o senhor emprega, deverei por acaso concluir que os sentidos pelo sr. expressos na língua não são seus; que as sentenças enunciadas, não são suas sentenças; que as afirmações e os juízos proferidos não são afirmações e juízos procedentes do sr. e de sua autoria ou revestidos de sua autoridade? Reflita-se sobre a matéria. Pois dos conceitos humanos Deus não era autor, precisamente enquanto revelador. Entretanto, os mesmos conceitos comparavam-se a Ele como o alfabeto ao escritor, como o vocabulário ao orador, como a língua já fixa e formada previamente ao autor que dela quer utilizar-se para de algum modo, seja perorando, seja escrevendo, seja ditando, manifestar aos outros os pensamentos ocultos da sua mente. Que importa, então, que as letras do alfabeto e as palavras do vocabulário tomadas por Deus revelador não desceram do céu? Com efeito, as sentenças e os dogmas jamais residem nos elementos alfabéticos ou fonéticos ou até mesmo nos elementos ideais, mas apenas na composição pela quais esses elementos se associam para originar sentenças e ser formulados em enunciados. Mas no nosso caso uma composição desse modo, sem dúvida emana do céu, porque é Deus quem revela e dita.[78]
Portanto, do fato de nossos dogmas observarem uma estrutura e um modo dos conceitos humanos, não é licito deduzir o que pretendem os novos mestres. Mas a única conclusão que se pode tirar é que os mistérios divinos têm outro modo na palavra da revelação e outro modo em si mesmos, como observou Santo Tomás na II-II, q. 1, a. 2: as coisas são conhecidas pelo cognoscente, diz, segundo o modo do cognoscente. Mas há um modo próprio do intelecto humano para conhecer a verdade compondo e dividindo. E por isso, aquelas coisas que são em si simples, o intelecto humano as conhece segundo certa complexidade, como ao contrario o intelecto divino conhece sem complexidade aquelas coisas que são em si complexas. Assim, pois, o objeto da fé pode ser considerado de duplo modo. De um modo, da parte da própria realidade em que se crê, e sob esse aspecto o objeto da fé é algo incomplexo, isto é a mesma coisa acerca da qual se tem fé. De outro modo, da parte do crente, e sob esse aspecto, o objeto da fé é algo complexo pelo modo de enunciação”. A isto também se refere Santo Agostinho explanando o prólogo do Evangelho de São João, quando, a respeito do Verbo que no princípio estava em Deus, diz: “ Quem poderá dizer que é isto? Ouso dizer, meus irmãos, talvez nem sequer o próprio São João disse o que é, mas ele também só disse o que pôde, pois o homem quando fala de Deus, ainda que inspirado por Deus, é homem. Porque inspirado, disse algo; se não estivesse inspirado, não diria nada; mas como homem inspirado, não disse toda realidade; mas como homem inspirado não disse toda a realidade, mas o que pôde como homem.”[79] E a razão última é que na revelação sobrenatural ou na expressão, o alfabeto da redação está constituído por conceitos naturais  próprios do homem, e tal alfabeto não compreende o modo próprio de Deus. Não porque diga que Deus tem outro modo diverso daquele que tem em si realmente; porque seria falso, como se disse acima. Mas porque ninguém diz nem pode dizer positivamente qual seja aquele modo que transcende toda limitação e toda mescla de imperfeição, que, por assim dizer, por múltiplas composições de suas letras exprime e enuncia a verdade de Deus. E nisto não há nenhuma diferença entre os dogmas da teodicéia natural e os dogmas da revelação, porque  ambas na mesma língua inteligente estão expressos e se exprimem. Mas enquanto nos primeiros a união dos elementos do juízo depende da razão que se move pela evidência, nos segundos depende de Deus que nos ensina a conveniência do predicado com o sujeito, mesmo onde aquela conveniência foge a toda consideração racional, supera toda sua reflexão. Mas, ao contrário, se nos juízos formados retamente pela nossa mesma razão, está sempre a absoluta verdade, quanto mais naqueles que são formados diretamente por Deus, a não ser que se queira fazer de Deus autor da falsidade, ou negar-lhe o poder de exprimir a verdade dos seus mistérios em nossa  língua ainda que imperfeita e defeituosa.
Ademais, é muito penoso demonstrar como naquele plano da verdade relativa aos dogmas propostos pela Igreja o que pertence à fé cristã, o que pertence á teologia, à qual se subtraem tanto o motivo formal quanto o objeto material bem como o modo próprio da solidez e certeza.
Primeiro, subtrai-se o motivo formal, que é a autoridade de Deus revelador. Com efeito, que lugar haverá para a autoridade de Deus naquelas concepções que absolutamente não são verdadeiras, mas apenas se aproximam, tanto quanto possível, da sua realidade, que consistem em modos de falar, que flutuam, variam e mudam ao sabor das doutrinas humanas? Teremos, pois, opiniões humanas; mas de modo nenhum teremos a fé que se fundamenta na primeira verdade ou no testemunho de Deus.
Subtrai-se igualmente o objeto material. Em que então poderemos crer? Que seja ao menos algum mistério confusamente análogo ao que prega e ensina a Igreja? Mas não poderemos crer nessas  doutrinas, como, por exemplo, o Pai e o Filho e o Espírito Santo são um só Deus e entre si consubstanciais, que Jesus Cristo é uma pessoa que tem uma natureza humana e divina, que o pão e o vinho se convertem em seu corpo e sangue, que sob as espécies do sacramento se contêm realmente e substancialmente seu corpo e sangue. Efetivamente, falamos assim agora, porque não podemos falar melhor agora. Mas virá um tempo em que segundo uma melhor evolução dos estudos, falar-se-á de modo diferente e mais veridicamente. Portanto, por causa da disciplina, fixamo-nos nas fórmulas propostas autenticamente: nas fórmulas, digo, não naquelas coisas que são significadas pelas fórmulas.
Subtraí-se com mais razão o próprio modo de crer que na fé divina é necessário, na verdade, o modo de adesão fora da dúvida e firme acima de todas as coisas. Pois realmente deveria dar minha vida antes de pôr em dúvida a consubstancialidade da Trindade, a dualidade das naturezas em uma pessoa de Cristo, a transubstanciação na Eucaristia etc. Mas, ó sangue inutilmente derramado, ó vida não estimada para o seu verdadeiro valor, se só se trata de humanas fórmulas que hoje estão em voga e amanhã caducarão! Mas se me é lícito pensar que a consubstancialidade é um vocábulo próprio de uma escola, ao qual outro vocábulo e outro senso poderá alguma vez substituir-se! Se posso pensar que talvez Jesus Cristo não seja Deus senão por uma transformação de sua alma, e não sei qual consciência adquirida por não sei que união com o Pai! Ou que sua presença na eucaristia não será talvez mal explicada em virtude da perene presença do seu espírito no meio daqueles que continuam e promovem sua obra no mundo! Pois bem, com qual mente, com que espírito ou credulidade pronunciaremos no futuro a nossa profissão de fé dizendo: “Eu com firme fé creio e professo todas e cada uma das verdades contidas no símbolo da fé adotado pela Santa Igreja Romana, sem dúvida, etc? E mais ainda: “Esta verdadeira fé católica, fora da qual ninguém pode ser salvo, a qual livremente no presente professo e realmente afirmo, prometo e juro livremente guardá-la e confessá-la, com o auxílio de Deus, constantemente,  íntegra e imaculada até o fim da minha vida. Assim ajude-me Deus, etc.?
Está evidente, pois, a total oposição que a teoria moderna da verdade relativa tem com os primeiros e fundamentais princípios da religião católica. Isto basta. Agora devem ser examinadas mais acuradamente as razões extraídas das fontes históricas, pelas quais essa teoria moderna quer convencer.

§ 3

Porque para defender em vão seu erro apelam para noções ou doutrinas que dizem importadas das escolas profanas e aplicadas à doutrina sagrada, ou apelam para adaptações da teologia – assim imaginam – à filosofia, sobretudo à aristotélica.
1. Tendo em vista o que foi dito no parágrafo precedente, fica patente como as noções que são realmente  comuns à  doutrina da fé e às escolas filosóficas de forma alguma se coadunam com aquilo que agrada aos modernistas, quer dizer, nossos dogmas não procedem do céu; e por isso também, não são de outra condição, o que concerne à absoluta verdade e o que concerne a quaisquer outras doutrinas da origem humana e da autoridade. Ficou claro como o dogma sobrenatural se utiliza dos mesmos elementos que a ciência natural para a formação dos seus próprios conceitos e seus próprios juízos. A verdade é nova na nova composição das idéias, ainda que as idéias componentes sejam antigas; nova também é a idéia complexa de muitas notas, ainda que as mesmas notas sejam vulgares. Com efeito, nada mais nos seria inteligível em matéria de religião, se nela não se pudessem utilizar os conceitos mais fundamentais de ente, substancia, corpo, alma, vida, espírito, causa e efeito, meio e fim, potência e ato e outros da mesma natureza. Pergunto: que adiantaria nomear Deus, se dele não formássemos um conceito, ainda que à força de abstração e  analogia, não intuitivo e próprio, tal como convém só a Deus, representando-o por notas tiradas de objetos comuns, como o ente primeiro, perfeito sem limite, causa do ser de todas criaturas mas não de si próprio? Que saberíamos da Trindade se não tivéssemos noção de pessoa como individuo subsistente na natureza intelectual? Que saberíamos da encarnação se não compreendêssemos o sentido das palavras: pessoa divina, natureza humana, a recepção de um por outro, etc? Revelou-se, pois, a composição dos conceitos, não se deram, nem se deveriam dar de novo, os primeiros conceitos.
Erram, pois, erram completamente, em questão de direito, deduzindo do referido fato da generalidade dos conceitos conseqüências ilegítimas. Mas erram igualmente em questão de fato na medida em que estendem o fato para além dos limites, na medida em que acrescentam à filosofia certas noções que na verdade pertencem exclusivamente à teologia, considerando, por exemplo, como conhecidos pelos antigos pagãos e presentes nas escolas profanas os conceitos de consubstancialidade e transubstanciação.
Certamente o conceito de substância não era ignorado pelos antigos, bem como o conceito de identidade. Falaram os antigos sobre a identidade substancial, tanto da numérica quanto da específica. Na verdade, quanto à numérica, observavam que o indivíduo idêntico a si mesmo não consigo próprio relação real, mas apenas de razão, na qual só podem ser constituídos os termos da comparação. Ao contrario quanto à específica, consideravam-na como conveniência na mesma razão substancial, todos os indivíduos cuja essência corresponde à mesma definição, e a distinção provém da divisão da matéria. Mas, por outro lado, o conceito complexo expresso pela palavra consubstancial nunca ocorrera à mente humana, ou ao menos nunca fora claramente formulado, antes que a fé na Trindade conduzisse os homens a tratar das pessoas entre si distintas pelas relações de origem e não por alguma realidade absoluta. Talvez pudessem os platônicos cogitar algo semelhante quanto àquelas formas universais que segundo eles  assinalavam uniformemente todos os indivíduos da mesma espécie, mas o absurdo conceito deles jamais pôde tornar-se preciso, e permaneceu confuso sem nenhuma fórmula determinada. Talvez igualmente os averroístas pudessem dizer que os homens são consubstanciais naquele intelecto que eles consideravam único e comum, de maneira que pela continuação dos vários fantasmas com ele cada indivíduo fosse inteligente. Mas aqui também permanece sempre absurda a opinião como uma sombra vaga sem termos delineados e expressão precisa; além do que, pela mencionada unidade do intelecto, resulta que seriam comuns as operações intelectuais em distintos sujeitos, não havendo neles identidade numérica de substância. Donde o verdadeiro conceito de consubstancialidade não foi jamais excogitado nas escolas dos filósofos e tampouco nelas aparece algo correspondente ao vocábulo homousion. Mas a palavra que já tinha começado a oferecer-se entre alguns padres do terceiro século para designar as pessoas divinas foi definitivamente consagrada no concilio de Nicéia para refutação de todas as fraudes dos arianos. Pois quando se dizia o Filho ser uma mesma realidade com o Padre, inferiam os arianos que portanto não era distinto do Padre. Se se dizia que era outro distinto do Padre, concluíam: logo, não tem com ele a mesma essência. Se não tem princípio, logo não é filho. Se tem princípio, não é Deus. Se segundo, não é igual. Se igual, logo não procede. Se não produzido, de que modo gerado? Se produzido, como não será criatura? Em suma, por todo lado procuravam artifícios, e só aquela palavra expressiva da identidade absoluta em alguma distinção real, (pois não se pode dizer consubstancial aquilo que não é verdadeiramente outro, e não tem ao mesmo tempo a mesma substância em número), foi a palavra vitoriosa, à qual não puderam opor outra senão uma raivosa negociação[80].
De modo semelhante, nunca lhes tinha ocorrido que a real conversão de uma substância pudesse realizar completamente em outra substância singularmente designada e preexistente, a qual por força da conversão nada se agrega, como ensina a fé no mistério da Eucaristia. Com efeito, estão distantes todas as transformações naturais de que trata a filosofia, nas quais sempre resta algo do termo a quo da conversão, e sempre o termo ad quem resulta novo, ou certamente aumenta em si mesmo, mas não se pressupõe a partir da integra conversão. E entretanto, aqui também se extraem as primeira e elementares notas da experiência comum, como, por exemplo, a noção de substância, a noção de substância do todo ou de substância segundo todos seus elementos constitutivos; por fim, a noção de conversão concernente à razão generalíssima da positiva mutação pela qual uma coisa termina em outra ainda se conserva. Graças a isso, podemos compreender o sentido daquelas palavras: toda a substância do pão se converte no corpo, e toda a substância do vinho se converte em sangue de Jesus Cristo, permanecendo apenas as espécies. Mas nenhum dos mortais tinha juntado ao mesmo tempo noções desse modo, e não só não tinha juntado em tese, mas nem sequer em hipótese, ou cogitando só a possibilidade  de tão singular ou de tão admirável conversão. Quem, pois, imaginou presente nas escolas o conceito de transubstanciação não aprendeu bem no catecismo o que implica a transubstanciação e quão longe está de toda transformação, mesmo da transformação substancial.[81]
Que se deve dizer agora sobre a idéia de palavra, que os críticos, seguindo os caminhos do clérigo João e Moshemii, pretendem ser derivada na doutrina revelada, da escola neoplatônica de Alexandria? Que dizer senão exatamente aquilo que já foi dito nos exemplos precedentes? Certamente, …(grego) ou Verbo, com sua própria significação, pertence à ordem do conhecimento humano. Pois torno a indagar: se absolutamente não tivéssemos  essa noção, se não houvesse em nosso vocabulário uma palavra correspondente á noção, de que modo teria podido falar-nos o evangelista do Verbo que no princípio estava com o Pai? Teria sido necessário para ele encontrar uma palavra nova, dando sua definição e para tanto teria devido utilizar-se de nomes para nós inusitados. Mas tal não sucedeu, porque a idéia de palavra já estava formada, e  à glória da escola platônica pertence, que em tão nobre especulação a tenha sido versada. Realmente, Aristóteles tinha atentado para o problema; muito mais que isso, com maior precisão, como de costume, tinha declarado (…grego) ou o conceito mental que é a coisa inteligida in esse no intelecto, e a mesma palavra intelecto. Mas não tinha considerado a palavra como exemplar da obra que o artífice  põe fora de si, nem sequer tinha dito algo sobre a palavra que é  no sumo intelecto a causa exemplar do universo. Mas ao contrário, os platônicos foram conduzidos a tala consideração por sua absurda doutrina acerca dos universais, ou idéias subsistentes que em qualquer espécie dos seres corpóreos seriam a razão de todos os indivíduos e o princípio do ser. Assim, chegaram a considerar alguma idéia primeira, emanada do sumo e supremo Deus, ao qual responderia a estrutura e ordem das coisas de todo universo[82]. Em tal concepção havia algo de verdade. Entretanto, quanta coisa falsa estava misturada, quanta coisa diametralmente oposta aos princípios da doutrina cristã! Petavius  oferece, sobre esse assunto, uma exaustiva demonstração no livro I de Trin. c. I, e Dom Maranus no prefácio à obra de São Justino, 2/ª, c. I.
É verdade que Santo Agostinho e outros escritores eclesiásticos atribuíam aos platônicos idéias quase que cristãs sobre o Verbo. Mas cumpre notar em primeiro lugar que aqueles santos padres, comprazendo-se naquilo que de espiritual e divino tinha a escola de Platão em comparação às outras, foram intérpretes mais benévolos do que propriamente viram o que implicava a simples realidade da coisa; nisso tiveram posteriormente imitadores escolásticos no que concerne a Aristóteles. Note-se em segundo lugar que a verdade revelada ilumina parcialmente também aqueles que a repelem, e que o cristianismo obrigou imediatamente os filósofos alexandrinos do segundo e do terceiro séculos a expor suas próprias sentenças com algumas melhores aparências de verdade. Note-se, sobretudo, em terceiro lugar, que o chefe e preceptor da escola neoplatonica tinha sido Filo, que, como judeu, conhecia excelentemente as Escrituras do Antigo Testamento e tinha redigido comentários a várias dessas Escrituras. Mas nas Escrituras do Antigo Testamento, como, por exemplo, Provérbios VIII, 22, (omitindo agora muitos outros lugares), a palavra é gerada pela sabedoria ab aeterno, a qual Deus possuía desde o início dos seus caminhos, antes de fazer o que quer que fosse ao princípio. A qual já havia sido concebida, já tinha sido gerada, quando não ainda não havia abismos nem jorravam as fontes; a qual assistia ao criador quando preparava os céus, quando fortificava por lei os abismos, quando firmava os céus, quando nivelava as fontes das águas, quando impunha limites ao mar e leis às águas para que não transpusessem seus termos, quando consolidava os fundamentos da terra; a sabedoria estava com ele compondo todas as coisas e deleitava-se todos os dias brincando sobre o globo terrestre[83], a essa sabedoria, na verdade, era aplicada a doutrina platônica do Logos ou Verbo ou da razão ideal pela qual todas as coisas são criadas, formadas ou dispostas[84]. E é isto o que fez Filo, o qual em várias passagens fala do Verbo sempiterno de Deus. O que ele diz deriva evidentemente da doutrina do Antigo Testamento, seja do Gênesis, seja do pré-citado lugar dos Provérbios e de outros paralelos: “Qualquer um que queira estar livre dessa vergonha dúvida que acompanha o vulgo dirá livre e publicamente que nada daquilo que está imerso na matéria tem suficiente força para sustentar a massa do globo. Mas ao contrário aquele Verbo sempiterno de Deus é incomparavelmente o mais forte e firmíssimo sustentáculo do universo. Este é o ser a cujo arbítrio o curso da natureza obedece sempre de um extremo a outro. Com efeito, ele une e encadeia todas as parte entre si, porque o Pai pelo qual é gerado quis que ele fosse o vínculo fortíssimo de todo o universo. Portanto, não é de admirar se nem o peso da terra nem o oceano com tanta força das águas em seu interior nunca se dissolvam, nem o fogo se extinga por causa da névoa, nem o ar conflite com o fogo, porquanto aquele Divino Verbo que se constitui como que certo meio vocal entre elementos mudos a fim de que exista  uma harmonia suave e justa de todo o universo como na música formada e dividida por suas notas e receba  as ameaças dos contrários a serem moderadas e suavizadas em harmoniosa conjunção.[85] Isto é o que diz Filo em uma das suas passagens mais célebres recolhidas por Eusébio. Mas embora fosse auxiliado pela luz do Antigo Testamento, enquanto se esforçava em adaptar às idéias platônicas a doutrina da Escritura, não hesitava em considerar  o Verbo como um segundo Deus subordinado ao primeiro e supremo Deus. “Por que – pergunta ele –  diz que o homem foi feito por ele à imagem de Deus, mas não a sua, se falasse igualmente de outro Deus? Mas isto na realidade está preclaramente celebrado pelo divino oráculo, (Gen. 5, 1). Em suma, não havia nada de mal que pudesse ser consignado pela imagem daquele primeiro Pai universal. Entretanto, admitia-se o segundo Deus em referência ao Verbo.[86] E esta concepção  pagã, maculada de muitos outros absurdos, encontra-se em autores posteriores da mesma escola, como, por exemplo, Plotino, Porfírio, Iamblico e Proclo[87]. De modo que resulta liquido e claro que aquela misteriosa noção do Verbo que a fé propõe e transmite o Evangelho de João (refiro-me ao Verbo que é um só Deus com ele, pelo qual é gerado segundo operação intelectiva e se distingue dele apenas por uma relação de origem), está muito longe de tudo quanto puderam dizer os filósofos, exceção feita daquelas coisas que sobre esse assunto parece terem tido um juízo mais profundo que outros autores.
Mas nem por isso negamos que a reta filosofia não deva conhecer o Verbo interior em nossa mente. Mas a simplicidade de Deus e a absoluta identidade do Verbo com o seu inteligir pareciam excluir toda processão do mesmo do interior de Deus. Pelo contrário, enquanto não se cogitava de outra distinção senão a distinção entre absoluto e absoluto, a exclusão era evidentemente legitima e verdadeira, e, por isso, os platônicos considerando o Verbo divino realmente distinto do seu princípio, consideravam um grande absurdo afirmar uma multidão de deuses no próprio Deus. Todavia, dispôs a divina Providencia que aqueles mesmos filósofos  preparassem e tornassem usual aquela palavra com a qual se exprime de maneira inteligível  para nós, no quarto Evangelho,  aquela sublime verdade já contida implicitamente nos livros sapienciais do Antigo Testamento e também nos três sinóticos[88], a qual nos foi finalmente revelada por Deus através de João. Ademais,  a erudição que diz que o Verbo de São João e da teologia católica é derivado do (grego….) neoplatônico não pode ser a artificial erudição de uma ciência muito superficial.
Mas dirá alguém: Por acaso a doutrina de fé católica, quando comparada com as doutrinas dos filósofos, não aparenta ter em comum, não só noções absolutas ou ao menos certamente quanto aos primeiros rudimentos, mas também idênticos dogmas desde o princípio? O concílio Vaticano dará a resposta dizendo: “A santa madre Igreja sustenta e ensina que Deus, princípio e fim de todas as coisas, pode certamente ser conhecido à luz natural da razão a partir das coisas criadas….Entretanto, aprouve à sua sabedoria e bondade revelar ao gênero humano, por uma via sobrenatural, decretos de sua vontade e outros mistérios eternos  de si mesmo…A essa divina revelação deve-se, com efeito, atribuir que aquelas coisas que em si mesmas não são inacessíveis à razão humana possam ser conhecidas por todos facilmente, na atual condição do gênero humano, com firme certeza e sem nenhuma mescla de erro. Contudo, nem por isso se deve dizer que a revelação seja absolutamente necessária, mas sim que Deus em sua infinita bondade ordenou o homem a um fim sobrenatural para participar realmente dos bens divinos que excedem completamente do espírito humano; com efeito, o que o olho não viu nem o ouvido ouviu, nem o coração do homem imaginou, Deus o tem preparado para aqueles que o amam”. E efetivamente, sempre foi sentença ratificada e certa de todos os padres e teólogos que na doutrina da fé se contém toda a ordem das verdades, das quais umas são sobrenaturais e só são conhecidas na medida em que são reveladas, mas outras, ainda que conhecíveis pela razão humana, foram  por Deus reveladas e a nós de fato transmitidas, pelas razões indicadas pelo concílio do Vaticano como se viu acima e conforme explana Santo Tomás nos primeiros capítulos da Suma contra os gentios. Também sempre tivemos a persuasão de que em todo tempo houve alguns de juízo tão reto e bom senso que, seguindo a natureza, conheceram quanto possível certos princípios. De fato, uma nova entidade exige causa proporcionada; porquanto o sujeito em potência não chega a ato senão em virtude de uma ato perfeito; porque a natureza corpórea deve constar de duplo princípio, material e formal; pois a vida provém de um princípio mais perfeito que as forças mecânicas; pois a alma une-se substancialmente ao corpo vivo; porque a operação intelectiva mostra o espírito independente no ser em relação à matéria; porque a existência e a ordem do mundo demonstram que Deus existe, etc. Essas e outras verdades são manifestas a alguma escola não iluminada pela luz da revelação. De onde Justino dizia que o Verbo em séculos pretéritos tinha concedido a muitos sábios gentios um raio de sua luz.[89] E Clemente de Alexandria via na filosofia grega certa preparação para a plena verdade do cristianismo.[90] E Santo Agostinho, como se viu acima, com aplauso acolhe tudo quanto há de verdadeiramente sublime nas doutrinas platônicas.[91] E quando mais tarde, por obra de Boécio e Damasceno, começa a ordenar-se com maior rigor a disciplina teológica, chega naturalmente o uso da lógica que aliás já era previsto, bem como o método  adequado ao conhecimento humano que tinha ensinado Aristóteles. Tudo isto se deu assim, porque a nossa débil razão é ainda capaz de conhecer algo certo; e se de fato causa admiração afirmar e defender estas verdades hoje é por causa de tanto inflada ciência. Por isso, seguindo o antigo senso comum, raciocinávamos: Alguns conhecimentos naturais, frutos da verdadeira experiência e da sã lógica, encontram-se também na infalível doutrina católica; portanto, esses conhecimentos naturais eram verdadeiros, e a reta filosofia os tinha adquirido, na medida em que a razão natural procede de Deus. Mas em nossos dias mudou-se completamente o discurso e se diz: A doutrina cristã tem alguns dogmas que se acham também nas antigas escolas dos filósofos; por conseguinte esta tal doutrina delas deriva, e como de outra parte as doutrinas filosóficas são sempre incertas, relativas e mutáveis, é necessário que a doutrina cristã participe também de tal incerteza, relatividade e mutabilidade. Mas, pergunto eu, onde está a retidão de tal discurso? Onde o sofisma de tal raciocínio?
2. Quanto à calúnia da adaptação da teologia à filosofia aristotélica, tratei em outro lugar[92] Certamente, pelo fato de que as verdade de fé estão expressas, como visto anteriormente, na língua dos nossos conceitos naturais, tudo quanto auxilia uma análise acurada dessas verdades auxiliará igualmente a compreensão e exposição da verdade revelada, do mesmo modo o vocabulário  ou léxico em que as razões dos nomes estão propostas de modo claro e exato auxiliará a explicação e inteligência de qualquer autor. Pois bem, se à filosofia compete classificar, definir e resolver nos primeiros elementos as nossas noções gerais e vulgares, o seu uso em teologia será considerado na mesma medida do uso do léxico em matéria exegética. E como o exegeta não acomoda  sua exposição ao léxico, mas apenas busca ai o sentido do seu autor para mais penetrá-lo e declará-lo, assim também os doutores escolásticos não adaptaram a doutrina sagrada à filosofia, apenas se utilizaram da filosofia para exporem com distinção e ordem, com método cientifico, os dogmas revelados a nós por Deus.
Mas deve-se notar com atenção que nunca alguma filosofia oferecida como subsidio da teologia tradicional, só por tal título, porque no mundo prevalecia, ou pela autoridade de alguma escola particular se recomendava, mas só em razão deste único título: porque foi julgada consoante à regra da revelação e da reta razão. Por isso, Santo Tomás, na II II, q. 167, a. 1, ad 3, diz : “O estudo da filosofia em si é louvável por causa da verdade que os filósofos receberam por meio da revelação de Deus., como está dito em Rom. 1, 19. Mas  porque abusam de certa filosofia para impugnar a fé, por isso diz o apóstolo em Coloss. II, 8: “Vede que ninguém vos engane por meio da filosofia inútil e enganadora, segundo a tradição dos homens, segundo os elementos do mundo, e não segundo Cristo.” Portanto, nem todas as filosofias são consideradas no mesmo sentido; mas algumas são tidas como os ídolos do Egito, que o povo de Israel teve de detestar e repelir; outras, porém,  como ornamentos e vasos de ouro e prata que aquele mesmo povo do Egito em sua fuga tomou para si, por preceito divino, em vista de um finalidade mais nobre, como diz elegantemente Santo Agostinho em 1, 2 de doctr.  Christi, c. 40.
De todos os modos, pois, resultam vãos os argumentos aduzidos por aquela absurda ideologia da verdade relativa na doutrina tradicional da Igreja. E basta o que foi dito.

Capítulo V

Da consumação da ruína por meio do dogmatismo moral

“Tinha sofrido muito de muitos médicos e gastado tudo quanto possuía, e, longe de ter sentido melhoras, antes cada vez se achava pior.” (Marc. V, 26)
Pode-se dizer de modo geral dogmatismo moral o sistema que faz derivar o conhecimento da verdade religiosa da pressão do coração e da inflexão da vontade moralmente boa. Frise-se que propugna todos os princípios do sistema da imanência. Proclama também a ruína da verdade absoluta, isto é, da adequação do intelecto e da coisa, que, em assuntos religiosos, não é possível, conforme o que foi dito no capítulo anterior. Mas pretende a reparação da ruína, instaurando o edifício sobre o fundamento da moralidade, e restituindo aos dogmas seu verdadeiro valor, que não é tão especulativo e objetivo, quanto prático e diretivo da ação da vontade. Se se trata realmente de uma verdade religiosa, subordina-se inteiramente à moral; a moral é o princípio e o fim da religião; em lugar da religião, prevalece a moral, e se assimila à moral, ainda que faltem outras coisas. Na moral, pois, terá aquelas base sólida que buscava em vão na ignorada e incognoscível verdade objetiva o abatido e prostrado dogmatismo intelectual.
Algo análogo encontramos em Emanuel Kant, de cujas obras procedem os novos sistemas. Ele tinha destruído radicalmente toda ciência, considerando como única razão dos primeiros princípios a natureza da nossa mente inclinada para assim pensar, ou melhor, divagar. Tinha destruído o conhecimento do universo, não considerando as leis da natureza senão como projeções exteriores das nossas idéias imanentes, disposições corpóreas reduzidas a impressões subjetivas, mas também  devem  ser consideradas  aquelas duas medidas universais do tempo e do espaço como formas subjetivas,  sem as quais se torna quimérica toda a ordem material. Tinha destruído finalmente em nosso intelecto a Deus, negando todo modo de provar sua existência, e declarando ilegítima a extensão do principio de causalidade a todo o complexo dos fenômenos. De maneira que, falando com lógica, não restava pedra sobre pedra do edifício da verdade. Mas como o próprio mestre de tanta ruína ficasse aterrorizado, tentou restabelecer com a idéia da moral tudo aquilo que na ordem intelectual tinha reduzido a nada. E pareceu-lhe bem  alcançar seu escopo, dizendo: Percebo em minha consciência a idéia de dever, a ser cumprido juntamente com o imperativo categórico: deve-se, pois, admitir a obrigação moral, com a qual está intimamente ligada a noção de liberdade. Repita-se: ao livre cumprimento do dever parece responder a consecução da felicidade; portanto deve ser a felicidade. Mas a felicidade na presente vida não existe; portanto, deve haver outra vida, na qual a alma sobrevive ao corpo. Finalmente, a felicidade da vida futura não se concebe sem Deus; portanto, deve-se admitir a existência de Deus. E deste modo, partindo do imperativo categórico que está na minha consciência, chego ao céu estrelado que está sobre minha cabeça; deste modo também, pela razão prática restaura-se o edifício da verdade, para a qual tinha inutilmente trabalhado a razão especulativa.
E semelhante é a restauração que o dogmatismo moral intenta, após ter introduzido o niilismo da verdade relativa na doutrina da fé cristã. Só aceita a noção de moral para, por meio do método dedutivo, suscitar outras verdades. Mas o que é pior, põe a moral exercida em ato, isto é, a vontade em ato inclinada para o bem como princípio ativo pelo qual se determina e rebaixa o intelecto na formação das idéias religiosas. Ademais, essas idéias  ou dogmas religiosos podem afirmar alguma coisa à medida que, não mais nem menos, servem à moral, fornecendo a regra à boa ação ou estímulo ou qualquer outro auxílio. Esta é a restauração excogitada pela filosofia a que denominam “filosofia da ação”. E a esta mesma preferimos chamar completa ruína. Temos razão? Faremos o juízo a respeito nas três proposições seguintes.

§ 1

Em primeiro lugar, por que o dogmatismo moral busca em vão um meio de restauração na vontade, à qual atribui, sem motivo, um primado na tarefa de investigar e conhecer a verdade religiosa. E porque sem nenhuma razão apela neste ponto à doutrina católica sobre o assentimento da fé para obter para si uma espécie  e aparência de ortodoxia.
Com efeito, não há duas noções de verdade: uma valendo para assuntos religiosos e outra para matérias diversas. Se alguém nega isto, é inútil qualquer discussão, porque ou devaneia ou porque está consciente de que chama despudoradamente verdade aquilo que não é verdade. “Aquele que compreende ao menos que é falsidade crer que é aquilo que não é compreende que a verdade é aquela que mostra o que é” – diz Santo Agostinho em De vera religione, c. 36. À inteligência, portanto, pertence evidentemente a descoberta da verdade em qualquer ordem, a ela pertence ver, apreender, perceber as coisas que são e como são. Mas esta faculdade não é a vontade, que não vê, que não percebe, que não apreende, mas apetece e procura o bem, ou verdadeiro ou aparente, ou real ou imaginário, que lhe mostra o intelecto. Por isso, depois de destruída a verdade segundo o intelecto e por ele percebida, intentar uma restauração da parte da vontade é uma coisa tão dissonante e tão absurda como se tu providenciasses para um homem cego um remédio feito por um cego. Não que se negue todo influxo da vontade na obra da aquisição e conhecimento da verdade; sobretudo daquela verdade que está altamente acima das nossas mentes, e tanto em si quanto em suas conseqüências práticas contradiz as inclinações da natureza corrompida. Mas de que modo se relaciona a vontade com o intelecto, importa esclarecer.
Em primeiro lugar, a vontade atua como removedora e proibidora. Pois há muitas coisas que perturbam o juízo da razão e produzem no olho do espírito pituita e inflamações. São as paixões desenfreadas, são os afetos perversos, os inchaços da soberba, igualmente as contendas, as dissensões, as invejas, que à maneira de fogo em madeira encebada produzem só fumaça, mas não podem ter labaredas claras. E não há dúvida que a boa vontade influi sobremaneira na remoção de impedimentos desta natureza. Em segundo lugar,a vontade age no movimento do intelecto na busca da razões pelas quais a verdade possa aparecer, na aplicação do olhar do espírito para a diligente consideração e discussão dessas razões, também a impetração a Deus dos auxílios necessários em tão grande obra. E porque, certamente, a vontade não será nisto bem sucedida, se odiar a luz, se temer vir à luz, se preferir as trevas à luz, por isso mesmo ao amor da verdade Santo Agostinho atribui: “Se  não se deseja a verdade com todas as forças da alma, não será possível absolutamente encontrá-la mediante nenhum pacto. Mas se a verdade é buscada como convém, ela não pode subtrair-se aos que a amam. Daí vem aquilo que também vós estais acostumados a ter na boca: “Pedi e recebereis, buscai e achareis, batei e abrir-se-vos-á. Nada está oculto que não venha a ser revelado. Por amor pede-se, por amor busca-se, por amor bate-se, por amor revela-se, por amor, finalmente, naquilo que for revelado, permanecer-se-á”[93]. Finalmente, em terceiro lugar, a vontade atua ordenando o assentimento do intelecto, quando o intelecto mesmo não está dominado pela perfeita evidência da verdade, e não necessariamente é arrebatado pela total transparência do objeto que não deixe nenhum lugar a uma dúvida possível. Mas aqui é  sumamente necessário que haja clareza. Pois ou a vontade ordena um assentimento proporcionado à dignidade das razões que antes refulgiram ao intelecto como legítimos  fundamentos do assentimento mental, ou ordena um assentimento desproporcionado, o qual, de todo ou parcialmente, se reduz ao próprio beneplácito ou arbítrio. Se for o primeiro, muito bem. Mas se for o segundo, que haverá senão vã e oca ilusão de uma opinião irracional? Com efeito, em qualquer juízo o que se exige segundo a norma da reta razão, a vontade não pode intervir como que ocupando o lugar dos argumentos ou aumentando-lhes o valor, mas apenas fazendo o intelecto assentir segundo o mérito deles, onde não houver condições nas quais se siga uma espontânea, necessária e irrefragável adesão do intelecto[94]. E não é necessário prolongar uma demonstração, porque estes princípios são evidentes, são absolutos, não admitem nenhuma exceção, e nem sequer em matéria de fé divina recorrem inconsideradamente a fim de obter para seu dogmatismo certa aparência de ortodoxia.
Dizem que não temos nenhuma razão que exija crer na instituição divina da Igreja; que a fé é um dom, que é um ato livre; que se a fé resultasse de nossos raciocínios como conclusão de um silogismo que se segue das premissas, ninguém, a não ser um mentecapto, poderia jamais subtrair-se da fé[95]. Mais daí inferem que as nossas razões de crer não têm por si mais firmeza que aquelas fundadas nas livres opiniões; a inteligência do crente não está em melhor condição que a do opinante; à boa vontade, à vontade auxiliada pela graça compete agregar ou suprir, por sua livre determinação, o que falta ao valor das razões. E por isso, dizem que o princípio geral do dogmatismo moral está perfeitamente em harmonia com aquilo que  a doutrina ortodoxa confessa acerca da fé teológica e retém como proveitoso.
Mas é contra tudo isso que se pode replicar, quando se trata do motivo de crer, ou da razão da própria fé em si, ou da razão dos juízos que precedem a fé como seus preâmbulos. Se houver realmente uma discussão sobre os preâmbulos da fé, temos na verdade razões que nos obrigam a julgar com certeza porque é razoável, porque é um dever, uma obrigação crer  na divina instituição da Igreja como revelada de fato por Deus. E  essas razões são chamam-se motivos de credibilidade, algumas absolutamente, outras suficientemente relativas, conforme a diversa capacidade e condição dos intelectos, mas de todos os modos sempre independentes do beneplácito da vontade. Mas de qualquer modo ainda não haverá nenhuma conseqüência  sem a intervenção do livre arbítrio, que sempre poderá direta ou indiretamente afastar a mente da consideração das premissas das quais se origina a necessária conclusão: por isso que racionalmente crível, por isso obrigatoriamente se deve crer na revelação católica.
Mas agora, se o assunto for referente ao assentimento da fé em si, não haverá menor razão que a autoridade de Deus revelador. Tal autoridade se manifesta com toda evidência a um homem não afetado de loucura como fundamento digníssimo de firmíssima adesão, na medida em que se constitui pela infinita sabedoria e sua  veracidade que é a Verdade Subsistente, cujas atestações, por isso mesmo, só pelo fato de serem suas atestações, são também  indefectíveis de ordem verdadeira absolutamente. Entretanto, embora caia sob tal autoridade, não se encontra na espontaneidade do intelecto, de modo que ainda é necessária uma intervenção da vontade livre, não certamente para acrescentar um assentimento da razão, à qual nada é mais suficiente, mas somente para determinar a execução ou exercício do ato, na medida em que o intelecto o julga racional, devido e obrigatório. E portanto nem nos preâmbulos da fé, nem com mais razão no próprio ato de crer a vontade está no lugar da razão, ou como complemento da razão. E por isso o Concílio do Vaticano, frisando a inconcussa solidez da razão, diz: “Em virtude da autoridade do próprio Deus revelador que não pode enganar-se nem enganar-nos.” Mas a respeito da razões  pelas quais se manifesta primeiro o fato da divina revelação, acrescenta: “Todavia, para que o obséquio da nossa fé estivesse em harmonia com a razão, quis Deus aos auxílios internos do Espírito Santo juntar argumentos externos da sua revelação, isto é, fatos divinos, principalmente milagres e profecias, que, mostrando a onipotência de Deus e excelentemente sua infinita sabedoria, são sinais certíssimos da revelação divina e acessíveis à inteligência de todos. Sinais, diz, certíssimos. Aos quais, pois, não há necessidade de juntar o arbítrio da vontade.
Está muito longe, portanto, o dogmatismo moral de  receber uma defesa da doutrina católica acerca da razão e do modo de assentimento da fé cristã, mas antes por esta doutrina será esvaziado e destruído. Mas é destruído ainda mais naquele que quer que a fé sincera e verdadeira dependa necessariamente da vontade moralmente perfeita com a perfeição do amor ou da caridade. Pois distinguem entre fé de amor e fé de temor, e dizem que a fé de temor não é fé sincera, porque contém em si o desejo de não crer; que com ela e por ela se anda nas trevas, que é uma fé morta, e, por conseguinte, fingida, etc[96] Em tal argumento parecem tomar algo do testemunho de São Tiago Apóstolo que diz que os demônios crêem e tremem, relacionado com a fé do homem, que se não tem obras está morta em si mesma. – Mas diga-se ao contrário, em primeiro lugar, que aquela fé dos demônios não depende absolutamente da vontade livre, seja ela boa ou má, mas apenas da evidência dos sinais, de modo que não se pode dizer absolutamente nem fé de temor nem fé de amor, a não ser que casualmente seja do agrado chamar fé de temor aquela que tem o temor por resultado: realmente neste sentido não se considera mais a coisa em si evidentemente. –  Diga-se também que a fé do cristão sem as obras não se compara absolutamente com a fé dos demônios quanto à espécie do ato, mas apenas quanto ao fato de que, assim como aos demônios de nada lhes aproveita para a salvação nenhum conhecimento acerca das coisas divinas pela evidência dos sinais que tenham, assim também ao cristão enquanto não se esforçar por conformar  a vida com a sua fé, a fé de nada lhe poderá valer. – Diga-se ainda em terceiro lugar que a fé do mau cristão se diz morta não porque seja forçada, não porque careça de sinceridade, mas porque ociosa não produzindo o fruto das boas obras. – Diga-se finalmente que toda doutrina que faz a verdadeira fé cristã inseparável da caridade e do estado de justiça é uma doutrina herética e protestante, já condenada pelo Concílio de Trento Sessão 6, Cânon 28 e mais recentemente pelo Concílio do Vaticano sessão 3, cap. 3. Em Trento, com efeito, está dito: “Se alguém disser, perdida pelo pecado a graça, também se perde a fé para sempre; ou a fé que permanece, não é verdadeira fé, ainda que não seja viva; ou aquele que tem a fé sem a caridade não é cristão, seja anátema. E no Concílio do Vaticano  diz-se: “Porque a fé em si mesma, embora não opere pela caridade, é dom de Deus, e seu ato é uma obra pertencente à salvação, pelo qual o homem presta a Deus livre obediência, a sua graça, à qual pode resistir, consentindo ou cooperando. Aqui, pois, inutilmente apelarão para a doutrina católica, justamente no ponto em que com clareza contradizem o dogma solenemente definido.
Portanto, do primeiro ao último argumento afirma-se falsamente que o conhecimento da fé mendiga o seu valor à boa vontade. Diz-se falsamente que o defeito da adequação com a verdade objetiva nos dogmas se compensa por aquilo que vem do influxo de uma boa vida. Supõe-se falsamente que nas coisas da religião valem tanto, nem mais nem menos, quanto tendemos. Por fim, falsamente afirma-se aquela nova noção de verdade, que já analisamos o que vem a ser, mas que influi a moralidade. E agora é necessário investigar se  tal moralidade, que está no fundamento de todo o sistema, nele permanece salva e íntegra. Este será o próximo tema.

§ 2

Porque o dogmatismo moral não só não restabelece o edifício arruinado da verdade, erigindo como princípio e fundamento a vontade do bem, mas antes acumula ruína sobre ruína, isto é, a ruína da própria ordem moral sobre a ruína do conhecimento intelectual, fazendo a noção da moral independente da noção de Deus  e da sua lei e construindo a regra do honesto apenas sobre as forças ou aspirações imanentes da alma.
Aqui são absolutamente necessárias certas noções previas de moral. A noção de moral inclui dois conceitos. Inclui primeiro a noção de bondade ou malicia nos atos humanos; inclui além disso o conceito de obrigação pela qual nos compelimos a fazer o bem e a não fazer o mal. E sempre necessariamente se funda sobre o conhecimento de Deus, seja sob a razão de fim último da nossa vontade, seja sob a razão de legislador que ordena para que a ordem seja conservada até o fim, que proíbe para que tal ordem não seja perturbada.
Considere-se em primeiro lugar a moral enquanto inclui o conceito de bondade ou de malicia nos atos humanos. Tal bondade, tal malicia, de onde são tomadas? Falando em geral, a bondade ou defeito de qualquer ação deve ser tomada tendo em vista o fim que pelo princípio ativo da ação é pré-estabelecido. Pois a ação é considerada como movimento da potência operativa direcionado a atingir o fim. É portanto boa se retamente se dirige para ele, é má e defeituosa se de outra maneira. Como nas ações da natureza, “quando o ato procede da virtude natural segundo a inclinação natural para o fim, então se conserva a retidão no ato, porque o meio não sai dos extremos, assim o ato procede da ordem do princípio ativo para o fim”[97]. Mas quando o vício do órgão ou alguma perturbação proveniente de qualquer lugar faz desviar o ato daquela ordem, então incorre a razão do ato defeituoso e mal. Do mesmo modo ocorre nas operações da arte, pois ai se conserva a retidão, quando a ação está contida na linha do fim que a arte se prefixou atingir; incorre a razão de defeito, quando se desvia de dito fim, qualquer que ele seja. “Como o pecado ocorre pelo desvio da ordem em direção ao fim, assim no ato da arte ocorre o pecado de duplo modo. De um modo, pelo desvio do fim particular buscado pelo artesão, e tal pecado será próprio da arte, como, por exemplo, se o artesão tencionando fazer uma boa obra, faz uma má, ou intencionando fazer uma má obra, faz uma boa. De outro modo, pelo desvio do fim geral da vida humana, e deste modo diz-se pecar se se intenciona fazer uma má obra e a faz, e por elas outro é enganado. Mas esse pecado não é próprio do artesão enquanto artesão, mas enquanto homem. Donde, do primeiro pecado é culpado o artesão enquanto artesão; mas do segundo é culpado o homem enquanto homem.”[98] E assim discorrendo por todos os gêneros de ações, sempre se encontrará a bondade ou o defeito repetidos pelo hábito do ato para o fim ou término que se prefixa à potência operativa, segundo o ato retamente se dirija a tal fim ou, ao contrário, se desvie da devida ordem do mesmo fim.
Deve-se, pois, ver qual é nos atos morais o princípio ativo da ação, qual é o fim ou término que lhe foi prefixado. Disto, com efeito, e somente disto decorre resultará a noção de ato moral, bom ou mal, reto ou não reto. Além disso, o princípio do ato moral assim considerado  é a livre vontade, como todos facilmente concedem, porque daí decorre naturalmente o gênero do costume, onde primeiro o domínio da vontade se encontra. Mas é a vontade, à qual manifestamente pertence a direção de toda a vida, que move as outras forças. Tem, pois, por fim término último o próprio fim supremo da vida humana, que não é outro senão Deus, sob cuja ordem toda a vida se constitui. Ademais, a vontade por sua natureza visa ao sumo e absoluto bem, e embora possa por seu arbítrio colocar o sumo bem em várias coisas, como, por exemplo, no prazer, nas riquezas, nas honras etc, entretanto é em um só que se encontra realmente a razão de sumo bem e não só em aparência; porque um só é por essência a bondade, Deus.
A retidão e a bondade do ato voluntario ou moral, portanto, sob tal aspecto, essencialmente consiste na observância da ordem que se dirige a Deus como fim; a perversidade e a malicia no afastamento ou desvio da ordem que tem por mesmo fim a Deus. Ai se encontra a norma, a regra, ai a razão segundo a qual se concebe qual seja o bem e o mal nos atos morais. Segundo isto, pois, compreende-se em primeiro lugar que o mal moral é contra o próprio Deus que imediatamente se comete, como blasfemar contra Deus, descrer de Deus, recusar culto a Deus etc. Segundo isto também se entende que qualquer  mal moral é contra o amor ordenado do homem a si mesmo: seja porque o amor do bem que temos de Deus nos conduz a amar mais que nós mesmos aquela causa principal e suprema da qual todos participamos, e na qual o próprio bem mais se contém do que em nós mesmos; seja porque, corrompido aquilo que se considera predispositivamente, já não pode permanecer aquilo para o qual é necessária a predisposição e a condução. Ademais, o que repugna ao amor ordenado de si mesmo, repugna também a sujeição a Deus como fim último, e por isso entre as coisas moralmente más se classifica. Por esse motivo, finalmente, entende-se que o mal moral é qualquer coisa que lese ou destrua o bem da convivência ou da sociedade humana, porque o homem nascendo para a sociedade e não podendo atingir o seu fim fora da sociedade, corromper a aliança da sociedade humana nada mais é que retirar a necessária condição ou destruir o meio necessário para tender a Deus  fim último da vida humana , e portanto se diz realmente ser contra o fim, senão imediatamente, mas com certeza mediatamente, quanto é da própria natureza.
Tal é, pois, o principio pelo qual se discerne o que é bom ou mau nos atos morais, e não pode ser outro. Se se remove a Deus como fim ou se dele se prescinde, já nada daquilo relacionado com a libido humana poderá aparecer moralmente desordenado, isto é, classificado precisamente como ato voluntário. Pois excluído Deus como fim, já não resta outro fim que não sejam as criaturas ou o próprio homem e não se pode contestar a propósito. Não um fim que exista nas criaturas: seja porque sob as outras criaturas enquanto tais, das quais nada participa, o livre arbítrio não se constitui; seja porque junto a nenhuma criatura natural o livre arbítrio  tem o hábito ou a dependência, para que por elas se cogite de buscar o fim prefixado; seja porque disto resulta impossível que o ato de livre arbítrio, precisamente naquilo que tem de perverso e desordenado se manifeste por exorbitar da ordem de qualquer outra criatura quanto à conveniência, exigência, bondade e utilidade. E tampouco há um fim no próprio  homem, porque o homem não é um fim em si mesmo para ser buscado, como provam aquelas aspirações do coração a um bem fora e acima dele, aspirações estas cantadas pelos próprios imanentistas.
Que se considere agora a moralidade quanto à noção de bem e mal que se acrescenta à noção de obrigação de fazer o bem e evitar o mal, a dependência da idéia da moral que pressupõe um conhecimento de Deus ficará ainda mais clara. Com efeito, nada mais evidente que a obrigação que liga a consciência e o homem (queira-se ou não), adstringindo insuperavelmente importe em seu conceito a sujeição à regra de absoluta necessidade, e esta imposta por algum superior ou por parte da coisa de fato existente: se, com efeito, a sujeição restritiva da liberdade, com respeito à abstração que não teria nenhuma realidade fora da consideração do próprio intelecto, é uma quimera e uma fábula, é um jogo da imaginação, um fantasma vago, que se expulsa com a mesma facilidade com que apareceu. E por isso digo que está patente nos termos que a regra da moralidade, na medida quem se apreende como obrigatória, apreende-se também, ipso facto, como de uma lei emanada de um ser dominante. Este ser não pode ser outro senão Deus, como se torna manifesto pelas razões obvias já explanadas, quando se tratou da noção de pecado[99]  agora convém recordar brevemente. Com efeito, em primeiro lugar, quando a regra dos costumes domina no homem, não enquanto este ou aquele homem, mas enquanto homem simplesmente, só pode ser-lhe imposta por aquele a quem o homem está sujeito segundo sua natureza. E este não é senão Deus, que é o único autor e senhor da natureza humana. Além disso, em segundo lugar a regra da moralidade não pode descer às vontades defectíveis, senão por aquele cuja intenção não possa absolutamente desviar-se do fim da moralidade, o qual por essência permaneça impecável, visto que é inerente  de forma indeclinável e imóvel  ao bem supremo que é o princípio e o termo de toda a ordem moral. Mas este é só Deus. Pois, como se diz no Compêndio de Teologia, c. 113: “Se em alguma parte a vontade não pode falhar quanto ao fim, está manifesto que ai o defeito da ação voluntária não pode ocorrer. Mas a vontade não pode falhar com relação ao bem que é da mesma natureza daquele que quer. Com efeito, qualquer coisa ao seu modo apetece o seu ser perfeito, que é bem de qualquer um; mas com relação ao bem exterior pode falhar, satisfeita com o bem que é conatural a ela. Pois a natureza de quem deseja é o fim último, e nisto não pode haver defeito da ação voluntária; mas isto só próprio de Deus, pois sua bondade que é o fim último das coisas é sua natureza. Mas a natureza dos outros seres que desejam não é o fim último; de onde poder nelas ocorrer defeito da ação voluntária por isso que a vontade permanece fixa no próprio bem, não tendendo para o sumo bem ulterior que é o fim último.” Além disso, em terceiro lugar,  a obrigação moral não está naturalmente constituída para descer senão pelo bem mais alto superior, que não só em si é absolutamente santo, mas também quer que todas outras vontades sejam obedientes à sua ordem. Mas isto também só se verifica em Deus, em quem querer a si mesmo como fim último de todas as coisas se identifica com o querer que se conserve no universo da justiça, bem como nele são a mesma coisa a ordem da justiça e a ordem do fim último. Finalmente, se queremos prescindir de Deus, que coisa restará? Restará talvez alguma conveniência estética, algum proveito pessoal, alguma utilidade social, e outras coisas do mesmo tipo. Mas tudo isto está muito longe da obrigação absoluta, que deve ser superior à vontade do homem, superior a qualquer bem resultante de qualquer coisa, superior a qualquer dor que eventualmente se tenha de suportar, superior a qualquer dificuldade do esforço para guardar o dever exigido. Mas claramente repugna que no homem em si mesmo considerado haja uma necessidade maior que o homem. Repugna que qualquer criatura seja indefinida e insuperável a razão da regra a ser sempre observada e nunca postergada. Repugna que seja norma suprema e fim último como deveria ser para impor tal e tanta necessidade.
Se, pois, do primeiro ao último a noção de moralidade é uma noção essencialmente fundada sobre a noção de Deus fim último, a quem a criatura racional se submete totalmente, e do qual recebe uma lei, realmente preceptiva de todas as coisas referentes ao fim e à manutenção da ordem; mas proibitiva de tudo o que afasta do fim e perturba a ordem. Portanto, qualquer coisa que desvincule a noção de moral da noção de Deus, qualquer coisa que dê outra base, outro fundamento, outro princípio à moral, destrói a moral considerada em si mesma, e a reduz a mera inclinação humana, na mesma linha e no mesmo grau das outras inclinações, que sem dúvida estão submetidas ao livre arbítrio, e com muito mais razão lhe ditam a lei do reto agir e fixam a irremovível norma da ação ordenada.
Pois bem, o dogmatismo moral não funda a noção de moralidade sobre a noção de Deus criador, senhor, legislador e nosso fim último; mas, ao contrário, pretende que a noção de Deus seja fruto da noção de moralidade. Antes é a vontade instruída pela moralidade; depois é o conhecimento de Deus, ao qual a mente se curva sob pressão do coração. Conclui-se, assim, que a moralidade, para nós, é independente de Deus, emergindo apenas das forças imanentes da alma ou das aspirações, enfim, a moralidade está reclusa e circunscrita pelo imperativo categórico kantiano, o qual, na apreciação da razão, é anódino, inconsistente, constituído de noções contraditórias e por isso desprezível.
Realmente, sentimos em nós mesmos inclinações para observar a justiça, a temperança, a castidade, mas também sentimos outras, completamente opostas. Sentimos inclinações para fazer o bem aos outros, para amar os pais, os filhos, os irmãos, os próximos; mas nos animais também se observam inclinações semelhantes, e às vezes ternos e delicados afetos, como relata São Basílio no livro 8 Hexaem. a respeito das cegonhas que a seus pais abatidos pela idade protegem com as plumas, sustentam com alimentos e apóiam no vôo. Até aqui, pois, nada mais que certo instinto, entre tantos outros dois quais abunda nossa natureza complexa. Mas quando nos parece ouvir a voz da consciência que categorice imperat para que sigamos tais inclinações como regras obrigatórias e não outras, somos objeto de zombaria, pois não se trata senão de vão sentimentalismo. Mas digo vão sentimentalismo tanto com relação ao homem imanentista de quem se afirma ser sustentado pelas próprias forças quanto com relação ao homem real a quem se libertou da forca, o qual, ao menos confusamente, está cônscio de estar submetido à lei de Deus e a quem sempre se afasta para mais longe da forca e não se permite que volte. Impera a consciência? Mas não há ninguém, em nome de quem impera ou pode imperar. Categoricamente impera? Mas não é assinável nenhuma necessidade a que seja proporcional tal injunção categórica. Pois se se confere honra e dignidade a própria pessoa em questão, pergunto de qual dignidade da pessoa, de qual honra se fala. Se da honra de que tu gozas junto aos outros? Mas nisto pode haver um cálculo coibindo a mão ou antes a ação que venha ao conhecimento de outros homens; mas quanto ao fórum e ao preceito da consciência, não há absolutamente nada.  Ou se trata da honra  de que se alegra consigo mesmo? Mas em oposição ao primeiro, pois a honra dessa natureza está subjacente ao beneplácito de qualquer. De que modo, pois, não excedendo os justos limites, aquela injunção, embora contra aquela que mais ardentemente se deseja, tão insolentemente  se insurge? Mas contra o segundo, pois tão larga e variada costuma ser nos homens o amor da honra e da dignidade, que daquilo que tua honra busca, sobretudo só aos olhos da tua consciência individual com direito e mérito te constituas juiz independente e árbitro. Mas contra o terceiro, pois, prescindindo sempre do fim superior e da ordem pela qual te ligas a ele, tu não colocarás a honra e a dignidade em nenhum outro lugar que não abdicando da liberdade que te deu a natureza e te fez senhor de tuas determinações. Se houver algo em contrário, será um espantalho, um preconceito, uma impressão subjetiva, que a razão serena, voltando a um exame crítico, pronunciará como vã.
Assim, pois, a moralidade a que recorre o dogmatismo moral não é verdadeira moral, mas radical negação da moralidade. E não obsta que estendam casualmente tal moral ao vulgo, mais ou menos confusamente todos a concebem. Com efeito, esta é a contradição perpétua em que incorrem infalivelmente aqueles que corrompem as primeiras noções que em nossa razão se assentam como incorruptível fundo. Sempre unem uma noção verdadeira com uma noção sofistica e a sofística revestem-na de atributos e propriedades que encontram na verdadeira. Mas agora falamos da moralidade, tal qual o sistema constrói. Sistema, é claro, no qual o homem deve haurir tudo do  seu íntimo fundo e da potencialidade vital, de maneira que não se aponha indevido limite a sua legitima autonomia e ao modo próprio da expansão autóctone. Sistema que prefixa a boa vontade, a qual o cego instinto toma como critério do bem, e imaginária lei como regra dirigente. Enfim, sistema que não só dissolve o vínculo de dependência da moralidade em relação a Deus, mas antes o próprio conhecimento de Deus e faz vicejar todo outro dogma religioso sob o influxo do coração a cuja sugestão obedece o intelecto, para que em última análise fique pura e simplesmente a vontade no lugar da razão. E não se verá aqui a consumada ruína da ordem moral sobre a ruína do conhecimento do intelecto, para que haja plena destruição? Há entretanto outra pela qual mais claramente se mostra a completa destruição, da qual, por fim, se dirá alguma coisa.

§ 3

Porque o dogmatismo moral consuma irreparável destruição da verdade da fé, proclamando um valor puramente prático dos dogmas da religião, isto é, afirmando que neles não nenhum valor objetivo, visto que nos é completamente desconhecido, mas são apenas normas ou incitamentos à ação, e assim devemos tê-los na medida em que nos servem para a ação e se verdadeiros forem, pela fé serão apresentados ao intelecto.
Certamente, nada mais claro que o valor prático dos dogmas da religião cristã. Nada mais recorrente entre os santos padres que a afirmação de que a fé reta é o início da boa vida; os cristãos devem distinguir-se dos infiéis pelas obras e costumes, do mesmo modo que deles se distinguem pela fé: as obras se constroem sobre a fé, como uma fábrica se constrói sobre o alicerce. Diz Santo Agostinho, sobre a fé e o símbolo, n. 25: “Esta é a fé que em poucas palavras deve sustentada no símbolo é dado ao novos cristãos…., que crendo se submetem  a Deus, submissos retamente vivam, retamente vivendo, purifiquem o coração, com o coração puro compreendam o que crêem.” Diz São Leão Magno, Serm. 37, n. 1: “A lembrança pelo gênero humano daquelas coisas feitas pelo Salvador nos confere grande utilidade, se venerando tudo o que cremos, o cultivarmos para imitação. Com efeito, nas dispensas dos mistérios de Cristo, não só as virtudes são graças mas também incentivos de disciplina, para que aquilo que professamos pelo espírito de fé o exercitemos igualmente por meio das obras.” Diz São Gregório, hom. 26, in Evangelia, n. 9: “Crê realmente aquele que exercita por obras o que crê. Pelo que, contra aqueles que retêm a fé só de nome, São Paulo diz: Confessam que conhecem a Deus, mas negam-no pelas obras.” E por isso, a respeito dos fiéis que vivem mal, o mesmo São Gregório em 1. 25 Moral. C. 10 diz: “Ferem com os costumes o que veneram pela fé. A tais frequentemente sucede que perante tribunal divino, por terem vivido iniquamente percam aquilo que salutarmente creram.” E mais adiante, 1. 28, c. 7: Há quem ouça as coisas eternas, realmente creia, e, entretanto, contradiga pela má vida o que sustenta pela fé.” Mas se devesse referir todas as coisas a esse  respeito, todos os testemunhos dessa doutrina, não creio que pudessem bastar volumes inteiros. Mas quem poderá duvidar do sentido da Escritura? Ensina a Escritura que a fé sem as obras é morta em si mesma; apareceu a graça de Deus nosso Salvador ensinando-nos a renunciar à impiedade e aos desejos mundanos, a viver sóbria, justa e piamente neste mundo; aqueles que professam a fé cristã devem com a força da sua profissão ser pudicos, prudentes, sóbrios, santos sob todos os aspectos, para que a palavra de Deus não seja blasfemada; são em grande número sentenças deste gênero. E para que não pareça que nos satisfazemos com coisas mais vagas, oferecemos pensamentos mais determinados. O próprio da relação, por exemplo, entre o dogma especial da encarnação e a regra moral, a Escritura o encerra em poucas palavras, dizendo: “Tende entre vós os mesmos sentimentos que houve em Jesus Cristo, o qual, existindo na forma (ou natureza) de Deus, não julgou que fosse uma rapina o seu ser igual a Deus, mas aniquilou-se a si mesmo, tomando a forma de servo, tornando-se semelhante aos homens e sendo reconhecido por condição como homem. Humilhou-se a si mesmo, feito obediente até a morte e morte de cruz![100] E do dogma da ressurreição de Cristo a Escritura diz: E, se se prega que Cristo ressuscitou dos mortos, como dizem alguns entre vós, que não há ressurreição dos mortos? Pois, se não há ressurreição dos mortos, também Cristo não ressuscitou. E, se Cristo não ressuscitou…é também vã vossa fé… “Comamos e bebamos, porque amanhã morreremos” Não vos deixeis seduzir; as más conversações corrompem os bons costumes.[101] E a respeito do dogma da Eucaristia diz: O Senhor Jesus, na noite em que foi entregue, tomou o pão etc..Portanto todo aquele que comer este pão ou beber este cálice do Senhor indignamente será réu do corpo e do sangue do Senhor. Examine-se, pois a si mesmo o homem e assim coma deste pão e beba deste cálice, porque aquele que o come e bebe indignamente, come e bebe para si a condenação, não distinguindo o corpo do Senhor.[102] E assim discorrendo através de cada dogma, da verdade do dogma chega-se às conclusões concernentes à pureza da vida, à correção da má vontade e ao exercício de todo gênero de virtudes. E desta condição não se devem tampouco aqueles dogmas que pareçam puramente especulativos, como, por exemplo, o altíssimo mistério da Trindade, no qual, efetivamente, temos um incitamento para submetermo-nos a Deus pelo mais pleno obséquio do intelecto e da vontade, para começar uma vida que nos espera com os anjos no céu, para tendermos com todas as forças da alma àquela visão na qual o único enigma será revelado, conforme testemunha o apóstolo: Vemos agora por um espelho e em enigma, mas então veremos face a face; agora conheço em parte, mas então conhecerei como sou conhecido[103]. Por isso não se deve absolutamente duvidar que os nossos dogmas tenham grande valor para dirigir a reta ação, e se aquele novo sistema a que chamam pelo nome de pragmatismo não pretendesse outra coisa enunciaria a verdade a respeito dos primeiros elementos da doutrina cristã.
Mas isto que se diz sobre os primeiros elementos, isto é, que os dogmas servem como regra dos costumes, vale na medida em que são absolutamente verdadeiros e como tais, sem nenhuma sombra de dúvida, os cremos. A mais alta verdade deve ser aquela que mostra o que é: a primeira verdade acerca de Deus causa e fim último, acerca de Deus legislador, de Deus juiz, de Deus remunerador: a verdade acerca do Filho de Deus encarnado por causa de nós homens e de nossa salvação, o qual padeceu, morreu e ressuscitou dos mortos: a verdade acerca da Igreja instituída pelo único Salvador do gênero humano, a qual tem em si os meios para alcançar a beatitude que o sangue de Jesus Cristo nos mereceu e conquistou: a verdade acerca dos sacramentos, a verdade da remissão dos pecados, a verdade acerca da vida eterna prometida àqueles que fizerem o bem, a verdade acerca da condenação eterna dos que fizerem o mal. Nesse pressuposto e fundamento da absoluta verdade, afirmo com toda convicção que a regra do agir deriva dos dogmas. Retirado este fundamento, não sobra uma estupidez, uma loucura? “Detenhamo-nos nos corpos dos mártires, dizia São Gregório[104] Por acaso “eles teriam dado sua carne à morte se não estivesse absolutamente certo para eles que há uma vida pela qual deveriam morrer? E falando de um modo geral, pergunto que há de mais estulto que tomar a regra do agir daquilo que é desconhecido, do nada, de vagas fórmulas ignoradas e não poder saber o que a elas corresponde na realidade, mas ao contrário, sabe-se que são consoantes à realidade? Efetivamente, é o que faz o dogmatismo moral, ao proclamar um valor puramente prático dos dogmas da religião. Por isso, destrói esse mesmo valor prático juntamente com o objetivo, e é a ruína absoluta.
Pensam dizer algo quando afirmam que o sentido dos nossos dogmas é aquilo que devemos considerar ao agir, como se fossem verdadeiras aquelas idéias que pela fé se apresentam ao nosso intelecto: Deus é pessoa, quer dizer, comporta-te para com Deus, como te comportas para com uma pessoa humana. De modo semelhante, Jesus ressuscitou, quer dizer: Age para com Jesus, como se agisses para com ele ante de sua morte, como para com um coevo agirias. E igualmente de modo semelhante, o dogma da presença real quer dizer que  deves ter respeito pela hóstia consagrada com o mesmo hábito que terias para com Jesus se estivesse visível”[105] Com efeito, achamo-nos em pleno sonambulismo. Pois, como opino, para todo aquele que por pouco tempo desperta do sono, esta proposição, Deus é pessoa, significa que Deus é pessoa, isto é, subsistente em si, distinto do mundo e de todas as coisas finitas que participam do ser. Esta proposição, Jesus ressuscitou, significa que Jesus ressuscitou, isto é, da morte voltou à vida. Esta proposição, Jesus está realmente presente no sacramento, quer dizer que está realmente presente, isto é, que sob as espécies sacramentais, em lugar da substância do pão está latente o próprio Cristo, verdadeira e substancialmente. Do contrário, que logomaquia! Que mentirosa acepção das palavras!  Mas sobretudo, ó deuses imortais, que religião absurda! Vejo o pão, os sentidos anunciam-me o pão, nada a não ser um pão real, impossível um testemunho ao contrário, e tu me obrigas a respeito daquilo que conheço como pão, e nada mais do que pão, a ter um hábito de culto, de adoração, de reverência, como o deveria ter se Jesus estivesse visível? Jesus é ou foi um homem; é o que me testemunha a história. De resto, sua divindade não tem sequer sentido para meu intelecto e tu pretendes que eu tenha para com esse homem, do qual não sei, nem posso saber, se tem algo de super-homem, um comportamento como se ele fosse Deus? Jesus  morreu; quanto a isso, não há possibilidade de dúvida.mas, por outro lado, a ressurreição dos mortos, no que concerne à inteligibilidade, equivale ao círculo quadrado, e tu me obrigas a ter para com tal morto – porque, para mim, não passa de um morto – a ter uma atitude como se estivesse vivo? Amarga e cheia de muitas dores a presente vida; tem, entretanto, certas doçuras às quais proíbe certa austeridade, que dizem ao vulgo ser prescrição da lei. Mas de outra parte, a vida futura, se existe, como seja, tudo isto se encontra na esfera do agnosticismo. Que farei, pois, eu infeliz, que não quero abdicar da vida presente por uma vã esperança ou temor das realidades futuras? Mas eis que te oferece uma solução a filosofia da ação. Age assim, vive assim, como se existisse a vida futura, na qual estão fixos os prêmios para os bons e as penas para os maus.
Vê-se, pois, o niilismo levado às suas extremas conseqüências pelo dogmatismo moral. Na verdade, tomaria  racionalmente a regra de agir tanto de alguma fábula romanesca quanto do evangelho. De nada vale se se diz que, embora no dogma segundo está no nosso intelecto não haja nenhuma razão que legitime a práxis, entretanto poderá ela existir na realidade subjacente, certamente por nós ignorada, mas conhecida de Deus revelador. Pois, deixadas de lado por ora outras considerações, o dogmatismo moral trata principalmente de Deus, e sobretudo da revelação de Deus e de outras coisas mais. “Costuma-se dizer que Deus falou. Mas neste caso que significa o vocábulo falar? Na realidade, trata-se mais seguramente de uma metáfora e que coisa se oculta sob tal metáfora? Ninguém sabe[106]. Portanto não resta nada senão o esforço da mente humana. Com efeito, dizem que se não quisermos absurdamente transformar a religião em entidade lógica ou abstração metafísica, é necessário nela introduzir a noção de movimento e vida, de maneira que se conceba o dogma como algo vivo, cujos todos princípios  são imanentes ao homem.
Resta, pois, mostrar por fim qual animal seja esta fé viva. E teremos o cuidado de fazer isto, referindo palavras e sentenças do autor que se incumbiu de vulgarizar tudo aquilo que concerne às origens de cada animal, ao seus incrementos, progressos, bem como suas pretéritas e futuras metamorfoses segundo as opiniões dos racionalistas do século passado. Disto tratar-se-á no capítulo seguinte.

Capítulo VI

Do cúmulo de erros do sistema da fé viva

Sei que tens a reputação de que vives, e estás morto.
(Apoc. III-1)
Essa doutrina da fé viva compila em si todos os erros do racionalismo até hoje surgidos, e sob o nome mentiroso de revelação dissimula quanto possível a radical negação de todos os dogmas da fé cristã, sem exceção de nenhum. Se se duvida disto, há agora ocasião de convencer-se. Interrogue-se a própria doutrina, ela tem idade, fale ela por si mesma.

§ 1

O que chamam revelação nada mais pode ser que a consciência adquirida pelo homem de sua relação com Deus.
O início da revelação foi a percepção, um tanto rudimentar, daquela relação que deve existir entre o homem cônscio de si mesmo e Deus presente sob o mundo dos fenômenos. Sim, especialmente a revelação cristã em seu princípio e sua origem, não foi senão a percepção na alma de Cristo, tanto da relação pela qual o próprio Cristo se unia com Deus, quanto da relação que liga todos os homens ao Pai Celeste.
De modo semelhante o progresso da revelação foi a percepção de novas relações, ou melhor, a mais precisa, a mais distinta determinação da relação essencial percebida confusamente desde a origem, enquanto o homem se informava para conhecer sempre melhor a magnitude de Deus e a noção do seu próprio dever.
Todavia, há uma diferença entre as percepções de ordem cientifica e as percepções das verdades religiosas, que se dizem reveladas, pois estas posteriores não são  como aquelas são antecedentes, frutos só da razão, mas certa elaboração do intelecto sob pressão do coração e direção do sentido moral ou da vontade do bem.
Ademais essa elaboração que teve um efeito sempre mais perfeito na religião israelita e depois na religião cristã, é primeiro e principalmente operação de Deus no homem ou operação do homem com Deus, na medida em que envolve a ação de Deus que excita o homem a procurar e o ajuda na seu continuo e indefinido esforço para melhorar. Conquanto a razão dos eventos históricos ocorridos fosse conhecida por eles, a religião revelada recebia ocasiões, incitamentos, auxílios, matéria da sua própria evolução, e tanto mais, quanto maior fosse a vitalidade de que estivesse revestida. Donde também nada a admirar é se a religião de Israel e a religião cristã, precisamente graças à intensíssima energia vital, foram mais que todas as outras religiões obstinadas contra a mutação.
Portanto, há duas coisas que não se devem confundir, antes devem ficar justamente distintas. Daí certamente as idéias religiosas que constituem apenas o objeto da fé e evoluem com os dias. Daí também os fatos históricos que fornecem à evolução a causa das idéias, determinante ou certamente ocasional.

§ 2

E começando com Cristo do qual a nossa religião toma o nome, importa distinguir, por exemplo, dois Cristos. Um histórico, que é o único para nós na ordem real dos fatos.  O outro não histórico, que é o Cristo da fé, Cristo idéia, Cristo espírito ou Cristo místico.
Além do mais, o Cristo histórico, em primeiro lugar, não é o Cristo ressuscitado dos mortos. Primeiro, porque o Cristo ressuscitado já não pertencia à ordem da presente vida, que é a ordem da sensível experiência. Segundo porque se for considerado o testemunho do Novo Testamento independentemente da fé dos apóstolos, não oferece senão limitada probabilidade, que a todos parecerá desproporcional à gravidade da matéria testemunhada. Terceiro, porque é necessário que todo argumento natural de um fato sobrenatural seja considerado incompleto e sempre deficiente.
Novamente, da verdade histórica se exclui completamente o Cristo Joânico. Pois o quarto Evangelho de nenhum modo pode ser considerado como testemunho histórico da vida e doutrina do Salvador. Se Jesus agiu e falou conforme os sinóticos, não pôde agir e falar conforme o Evangelho segundo São João, e vice-versa, se o relato de João é histórico, o relato dos sinóticos não passa de um relato artificial que desfigura a Cristo. Mas o Cristo Joânico é o Cristo da fé, espiritual, místico, que transcende a todas as condições do tempo e da existência terrestre. Donde as narrações segundo São João não são histórias, mas mística contemplação do Evangelho; em verdade as palavras são meditações teológicas do mistério da salvação.
Igualmente, da mesma verdade histórica está excluído o Cristo de grande parte dos sinóticos, porque os sinóticos, afora o escopo que tinham de produzir a fé, não cuidavam inteiramente da fidelidade histórica, e por meio da narração do evangelho interpretavam-no. Esses são livros escritos para a edificação e adaptados às necessidades das igrejas que nasciam pouco a pouco. De modo que incumbe ao crítico fazer uma seleção dos fatos evangélicos e da pregação do Salvador, entre o que é de primitiva memória e o que pertence apenas às apreciações da fé e a posterior evolução da mente cristã.
Daí então não haver verdade histórica no Evangelho: em primeiro lugar, não há atestação de Cristo de sua divindade; em segundo lugar, não há uma afirmação de Cristo quanto à sua missão de redenção do mundo por sua morte de cruz; em terceiro lugar, não há afirmação de fundação da Igreja, sobretudo como distinta da sinagoga; em quarto lugar não há instituição de nenhum sacramento.
Em primeiro lugar, não há atestação de Cristo quanto à sua divindade. Pois essa atestação pertenceria à pregação de Jesus e deveria como tal ser conhecida pelo historiador, se o quarto evangelho fosse direta ressonância da doutrina de Jesus, ou se as palavras dos sinóticos, Ninguém conhece o Filho senão o Pai, nem ao Pai ninguém conhece senão o Filho ou aquele a quem o Filho o quiser revelar, fossem algo diferente que o germe de tradição posterior. Mas o quarto evangelho é um livro de teologia mística no qual não se ouve senão a voz da consciência cristã. Mas na realidade um lugar de Mateus (XI, 25-27) e de Lucas (X 21-22) é certa imitação da oração de Jesus filho de Sirac (Ecl. LI), e parece ser obra de algum profeta cristão. Como absolutamente não se pode crer que Cristo quisesse imitar o Eclesiástico, é bastante provável  que as precitadas palavras nunca foram ditas por Cristo, mas foram fruto da evolução cristológica na primeira idade da Igreja.
Em segundo lugar, não há atestação por Cristo de sua missão redentora por meio de morte de cruz. Pois a fé na morte expiatória não existiu desde a origem, mas foi inventada por Paulo. E aquela passagem de São Marcos (X, 45), em que se lê que o Filho do homem veio para dar sua alma em redenção de muitos foi inventada sob o influxo da teologia paulina, não diferentemente das narrações da última ceia.
Em terceiro lugar, não há fundação da Igreja, sobretudo separada da sinagoga. Pois a instituição da Igreja não é um fato que se possa demonstrar historicamente, e a tradição apostólica convenientemente reconhecida supõe a Igreja fundada sobre Jesus, antes que fundada por Jesus; ou certamente, se por Jesus, não por Jesus pregando o evangelho do reino, mas por Jesus ressuscitado dos mortos, o que se situa fora de todas as condições da história e da demonstração. Ademais, todos os testemunhos acerca da instituição da Igreja não passam de testemunhos de fé que apresentam o Cristo místico da fé e sua vontade a respeito da Igreja.
Em quarto lugar, não há instituição de nenhum sacramento. Pois Jesus, durante seu  ministério, não prescreveu nenhuma forma ritual de culto exterior, característica da religião; visto que no evangelho por ele pregado o cristianismo não era ainda uma religião distinta e por si existente, mas uma simples renovação religiosa no seio do judaísmo.
Por isso a verdade histórica do evangelho não diz nada, desde o começo até o fim, senão  que  Cristo pela oração, confiança, amor, para a máxima união com Deus, e consequentemente para a consciência da vocação messiânica, se elevou pouco a pouco; que principiou a pregar o reino dos céus que viria em breve com o fim do mundo; que se afirmou vigário e ministro de Deus nesse reino; que finalmente, ao supremo evento da já iminente consumação do século acomodou sua pregação, que foi toda ela de desprezo do mundo e renúncia dos bens temporais.
Tal é, pois, o Cristo da história, após o qual começa a evolução do dogma cristão, e primeiro de tudo a evolução do dogma cristológico: do Cristo místico, do Cristo espírito, do Cristo imortal, do Cristo Deus, que já não pertence à ordem dos fatos, mas só na fé tem subsistência, pois só na fé tem origem.

§ 3

1. Além disso, o dogma cristológico na consciência cristã cresceu e transformou-se, como que por um contínuo esforço da fé que transcende o seu objeto, e ainda não chega a seu último termo, se bem que sempre persiga a mesma via, colocando Jesus sempre em lugar mais alto, e a respeito de sua missão dando sempre uma idéia mais compreensiva, conforme se abra uma concepção mais generosa da fé iluminada em relação ao mundo e à humanidade.
E o primeiro grau da evolução foi após a morte ignominiosa de Jesus quando começou a fé em Jesus vivo, sentado à direita de Deus até o tempo da parusia, seu último advento do reino dos céus. O segundo grau ocorreu na conversão dos gentios ao cristianismo, que deu ocasião à teoria paulina sobre Jesus Salvador de todos os homens, o novo Adão que por seu sangue expiou o gênero humano e reconciliou com Deus os dois povos da circuncisão e do prepúcio em um só corpo por meio da cruz. O terceiro grau deu-se após o contato da fé cristã com a filosofia grega, quando neste lugar intermédio, entre Deus e o mundo que Filo assinalara (em grego), Paulo colocou Cristo imortal e místico, como imagem de Deus invisível, primogênito de toda criatura, pelo qual foram criadas no mundo físico todas as coisas,  todas as coisas no mundo moral foram pacificadas, tanto no céu quanto na terra. O quarto grau deu-se com a aparição do quarto evangelho, quando Jesus filho de Deus e do homem, predestinado salvador, foi transformado em Verbo feito carne, porque se manifestou aos homens como fonte de vida e luz eternas. O quinto grau, pouco depois, realizou-se quando a fé teve de encontrar um meio de conciliar entre si a realidade da história evangélica, a teoria de Paulo e a teoria de João, de maneira que daí resultasse um sistema coordenado.
Mas nesse sistema a ser construído, o sentido cristão, após muitas hesitações, afirmou primeiro que o Verbo e o Espírito são personalidades distintas do Pai criador. Em seguida, por ocasião do Concílio de Nicéia, Atanásio afirmou que o Verbo de Deus, se bem que pessoalmente distinto do Pai, era absolutamente consubstancial com o mesmo Deus Pai. Então foi condenada a opinião de Apolinário que dizia que o Verbo estava na humanidade de Jesus em lugar da alma intelectiva. Igualmente condenada foi a opinião de Nestório que considerava a pessoa de Jesus distinta da pessoa do Verbo. Também condenada foi  a opinião de Eutiques que pretendia a natureza humana incorporada à natureza divina. Por fim, acrescentou-se no quinto concílio que a humanidade de Jesus está unida ao Verbo substancialmente e no sexto concílio estabeleceu-se que a unidade de pessoa não implica em si a unidade de vontade. E assim consolidou-se o dogma cristológico tanto quanto era possível conforme as noções tradicionais e os princípios da filosofia antiga.
Mas agora o problema ressurge completamente, e o mistério da união hipostática necessita de nova determinação, pois a fórmula tradicional já não responde ao estado da ciência moderna. Pois, conforme a teologia, a noção de pessoa é uma noção metafísica, mas na moderna filosofia tornou-se uma noção psicológica, pertinente à ordem da consciência. Por conseguinte, se não quisermos dizer que a Igreja perdeu os dons da fé e do intelecto com os quais construiu a fé do tempo pretérito, é licito crer que com os mesmos meios poderá edificar a fé do tempo futuro, explicando seu princípio fundamental da dupla revelação de Deus no mundo, ou a noção religiosa do Deus vivo e de Cristo Deus.
2. Do mesmo modo que o dogma cristológico, evoluiu também o dogma teológico, até culminar com a fé em Deus trino sem a multiplicação de Deus. E, embora este dogma pareça constar de noções contraditórias, nem por isso se deve pensar que se tenha acomodado menos ao senso religioso do qual teve origem. Com efeito, um defeito de lógica e de consistência racional que é princípio de ruína nos sistemas filosóficos é o princípio em teologia antes sólido e duradouro, segurança de ortodoxia, quando não percebe mais a conexão e a concordância das suas afirmações, proclama o mistério. Efetivamente, assim aconteceu com a encarnação, quando foi definida a dualidade das naturezas na unidade do sujeito; assim também com a trindade, quando definitivamente prevaleceu a consubstancialidade das três pessoas.
3. O mesmo modo de evolução verifica-se no dogma da graça e no dogma da Igreja. Mas esses dois dogmas germinaram no Ocidente conforme o gênio próprio dos latinos; enquanto, por outro lado, o dogma teológico teria uma terra propícia e fácil de cultivo no Oriente, onde a mente grega se inclinava mais às especulações metafísicas.
Mas além desses dogmas observar-se-á que as determinações do princípio de autoridade na Igreja não se apóiam na interpretação literal e lógica do texto, (Mt. XVI-18, XVIII-15 etc), porque não sobre o texto mas sobre a fé viva foi fundada a Igreja, e por essa fé, não pelo texto, subsiste, senão enquanto a fé se utiliza dos textos, interpretando-os, e neles considerando a expressa vontade do seu Cristo, que não é o Cristo histórico, mas o Cristo idéia, ou o Cristo místico.
Com efeito, é certo que Jesus, que estava persuadido da iminente consumação do século, não tinha cogitado nada sobre um governo eclesiástico a ser instituído na terra. Mas após a instituição de tal governo, por causa do surgimento da exigência daquela suprema lei que é a conservação da sociedade, imperceptivelmente introduziu-se uma organização hierárquica sob o primado do bispo de Roma e acomodaram-se ao mundo que perdurava coisas que Jesus não tinha dito senão em vista do iminente fim do mundo.
Por conseguinte, o presente regime da Igreja Romana, semelhante ao regime militar, sob o influxo das contingências  ou a menos das circunstâncias  recebeu  sua determinação. E como por outra parte, nos mais graves incômodos ofereça fácil oportunidade, ( desse modo são a opressão dos indivíduos, e a obstrução do progresso cientifico, e geralmente todas as formas de livre exame), com direito e razão pode-se perguntar se a mesma Igreja, que até aos extremos limites exagerou o princípio de autoridade, dentro em breve não se verá obrigada a atenuar a forma quase despótica de seu governo; e isto à maneira dos governos humanos que em nossos dias estão coagidos a abolir tal forma de governo. Ao contrário, trata-se de conjectura muito razoável, que em futura democracia, que já se prepara, os bispos já não serão poderosos aos olhos dos homens, mas nada perdendo dos direitos do seu ministério (que então reassumirá a primitiva e essencial razão dos seus ofícios), terão um modo de agir com os fieis mais conforme à fundamental igualdade e à dignidade pessoal de todos os cristãos.
4. O sistema sacramental também observa a geral condição da evolução, e mostra claramente o constante esforço do cristianismo para com o seu espírito penetrar e como que impregnar toda a vida do homem, do nascimento até a morte.
E com efeito, a Igreja primitiva não tinha ainda senão dois sacramentos, ou seja, o batismo e a eucaristia, que nesse sentido podem ser ditos instituídos por Cristo e precisam ser considerados.
Certamente, a instituição do batismo deve ser atribuída ao Cristo da fé, não ao da história. Pois sobre o batismo temos certas informações no quarto evangelho, como aquela passagem de Jo. III-5: Quem não renascer etc., bem como aquelas passagens em que se lê que Jesus batizava, Jo. III-22, IV-1. Mas freqüentes vezes já foi dito que no quarto evangelho não se ouve senão a voz da consciência e da fé cristãs. Ao contrário, a respeito de outras passagens que se encontram nos sinóticos, como aquela de Mateus XXVIII-19: Batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, deve observar-se que se atribuem a Cristo ressuscitado, o qual está fora de toda ordem concreta da nossa realidade. Ademais, tão categórica e distinta enumeração das três pessoas, possível apenas no quarto evangelho, não pode encontrar-se no primeiro senão como glosa inserta sob o influxo do uso cristão. De modo que o historiador, com direito e razão, afirma que o primeiro dos sacramentos cristãos nasceu com a comunidade cristã por imitação dos costumes judaicos. Do mesmo modo, porque é a comunidade que determinou as condições em que se deve administrar o batismo, também é a comunidade que tornou o batismo necessário e lhe anexou todas as obrigações da profissão cristã. Não obstante, na perspectiva da fé, pode dizer-se que o batismo foi instituído por Cristo, pois o que ordenou a comunidade foi querido pelo Espírito que a governa, e por conseguinte pelo Cristo imortal que dá o Espírito.
Igualmente, com mais razão, aplica-se o mesmo à confirmação, que no cristianismo primitivo ainda não se distinguia formalmente do batismo. Embora seja licito à teologia admitir uma distinção virtual que foi reduzida em ato conforme a indigência da comunidade, por autoridade da Igreja na qual vive Cristo.
Mas a respeito do outro sacramento que tinha a Igreja primitiva, isto é, a eucaristia, deve pensar-se como acerca do batismo. Com efeito, na narração paulina da última ceia (I Cor. XI), que é a mais completa de todas, é difícil distinguir o que talvez seja próprio da primitiva tradição, daquilo que pertence a um comentário teológico-moral do apóstolo. Pois Paulo é um teólogo da morte redentora e é manifesto que interpreta segundo sua própria teoria da redenção universal a ceia comemorativa da morte. Ademais, parece bastante claro que aquelas palavras: Este é o meu sangue do novo testamento que por muitos será derramado, foram acrescentadas pelo redator do segundo evangelho a uma narração mais simples que antes dizia assim: E enquanto comiam, tomou Jesus o pão e benzendo-o partiu, e deu-lhes dizendo: Tomai, este é meu corpo. E tendo tomado o cálice, rendendo graças, deu-lhes e beberam dele todos. E disse-lhes: Em verdade vos digo que já não beberei desta videira até aquele dia em que o beber de novo no reino de Deus. E esta narração concorda com a narração de Lucas, sem os acréscimos que da primeira epístola aos Coríntios foram depois transladados. Com efeito nessa mais breve narração está insinuada a idéia de uma morte próxima, mas não a idéia de expiação, e nada assinala uma renovação da ceia fora do convívio messiânico no advento do reino celeste. De modo que a origem da eucaristia se apresenta ao historiador nas mesmas condições da origem do batismo, salvo apenas duas diferenças. A primeira é que se relaciona com a memória da determinada e precisa circunstância do último banquete de Jesus com seus discípulos. A outra é que melhor se percebem os acréscimos nos quais a memória da última ceia de certo modo se encarnou na ceia da comunidade apostólica, isto é no sacramento da eucaristia.
De resto, a fé na presença real evoluiu ao mesmo tempo que a fé em Cristo ressuscitado, no Cristo imortal, no Cristo-Espírito, e teve sua raiz em grande parte naquelas visões em que Jesus aparecia redivivo partindo e dando o pão a seus amigos.
Mas, ao contrário, a palavra do Cristo joânico a respeito da remissão dos pecados (Jo. XX-23) não concerne diretamente ao sacramento da penitência. A teoria que põe em três atos do penitente a matéria, e na absolvição a forma do sacramento, não tem origem apostólica. A confissão dos pecados cometidos após o batismo não foi formalmente prescrita por Cristo. A primeira idade cristã não conheceu como sacramento a confissão privada feita apenas ao sacerdote. A absolvição eclesiástica não foi primitivamente tida como sentença judiciária.
Com efeito, na verdade, a Igreja dos tempos primitivos não teve idéia do cristão pecador e reconciliado, mas só pouco a pouco essa noção foi introduzida, ao mesmo tempo com aquela noção da segunda tábua após o naufrágio. Todavia, ainda que o texto evangélico da potestade das chaves se refiram principalmente ao batismo, mesmo assim supõem na Igreja a consciência de uma potestade ilimitada para remissão, que, com o passar do tempo, deu origem à duplicação do batismo em sacramento da penitência. E esta origem é legítima na perspectiva da fé, pois apresenta certo aspecto do Cristo que vive e do Espírito que age na Igreja desde o início. Porque neste sentido o historiador pode admitir que nada há na presente disciplina da penitência que seja estranho à instituição de Cristo.
Igualmente, como parece que Jesus prescreveu, ou certamente permitiu que se fizessem nos enfermos unções de óleo juntamente com algumas orações para sua recuperação ou saúde, este uso continuando após Jesus resultou finalmente no sacramento da extrema unção.
Não diferente é a origem do sacramento da ordem, pois, na medida em que a ceia assumia pouco a pouco o caráter de ato litúrgico, aqueles que costumavam presidi-la adquiriram o caráter de sacerdotes. Além disso os mais velhos (daí vem o nome de presbítero), que nas assembléias cristãs exerciam a função de velar (daí o nome de bispo), foram instituídos pelos apóstolos para satisfazer a necessidade de organização nas comunidades cristãs, ou ao menos para a perpetuação da missão e da autoridade apostólica. O ministério deles coexistia com o ministério do apostolado, e em seu lugar depois, conforme a necessidade, de fato sub-rogou-se. Mas a distinção entre bispo e presbítero veio mais tarde. E todas essas coisas são obras do Espírito na Igreja; mas instituição de Cristo, para quem crê em Cristo.
Portanto, do primeiro ao último nada mais evidente que a idéia geral da instituição sacramental, segundo se enuncia nos decretos do Concílio de Trento, não é representação histórica daquilo que fez Jesus e sentiu a Igreja apostólica, mas mera interpretação tradicional do fato que só para a fé tem autoridade e valor.
Daí também consta que a época em que a Igreja determinou os sete sacramentos ( por volta do século XII) seja apenas certa fase particular da evolução sacramentaria e que tal evolução absolutamente não chegou a seu último término, pois não poderá ter fim senão com a própria Igreja.
Ademais, no futuro os símbolos sacramentais poderão até não ser considerados  como indignos da majestade de Deus, na medida em que, bem entendido, não se interpuserem entre Deus e o homem como instrumentos de santificação, mas apenas como evocações na mente do homem da perpétua presença benfazeja de seu Criador.

§ 4
1. Conclui-se, pois, que a fé não tem mansão permanente na terra, ainda que precise sempre de tabernáculos transitórios. Conclui-se, sobretudo, que em vão se esforçariam por retê-la em formas já antiquadas, que, acomodadas a outra mentalidade, não poderão ser senão venerandos monumentos de tempo passado.
Com efeito, o novo estado da cultura do espírito humano reclama por toda parte nova evolução. Naturalmente, nessa nova evolução a Igreja terá de fazer apenas o que fez desde o início. Pois sempre, com admirável flexibilidade, se adaptou ao progresso, renunciando ao antigo sentido dos dogmas e substituindo-o pelo novo, congruente com os novos tempos.
E não vale dizer que a Igreja católico parece não conhecer a existência dessa sua mutação nos séculos pretéritos, mas, ao contrário, sob anátema no Concílio do Vaticano condenou as opiniões que a sustentavam. Assim, por exemplo, dizer que não chegou à consciência de sua evolução e ainda não tem teoria fixa acerca da filosofia de sua própria  história. Disto tudo resulta que na Igreja só resta uma coisa a evoluir, e esta é a idéia ou noção de evolução.
2. Conclui-se, ademais, que são coisas completamente distintas, a fé e a história. Pois a história diz respeito aos fatos, mas a fé diz respeito às idéias que conforme a ocasião dos fatos evoluem, e num movimento continuo progridem rumo ao sumo ideal. Distintos também são os campos de teologia e os da crítica. Ao teólogo compete, com efeito, definir a forma da verdade cristã que existe agora; mas ao crítico compete investigar outra forma que estava na origem. Pois sem paradoxo pode dizer-se que realmente não há nenhum capítulo da Sagrada Escritura, do início do Gênesis até ao fim do Apocalipse, no qual se contenha uma doutrina idêntica à presente doutrina da Igreja a respeito do mesmo objeto. E por isso tampouco não há nenhum capítulo que tenha o mesmo sentido para o crítico e para o teólogo.
Por conseguinte, é impossível que o crítico nunca contradiga o teólogo e vice-versa, a não ser que se mantenha cada um na sua própria esfera; impossível também, pelo mesmo motivo, que a crítica não esteja às vezes em oposição à fé. E a razão é que nenhuma oposição é possível onde nenhum ponto de junção é possível, conforme se deve supor no presente caso. Se, realmente, a fé não diz respeito aos fatos, mas só aos conceitos, e certamente segundo a forma contemporânea da evolução, que é completamente diversa da forma que tinham as concepções dos tempos passados; se, ademais, a crítica não julga senão acerca dos fatos ou das formas que tinha a fé nos séculos precedentes: claro é que o fiel nunca concorre no mesmo tempo com o crítico. O crítico poderá coexistir no mesmo homem com o fiel, e seja qual for a opinião do crítico, o fiel permanecerá na pacífica posse de sua fé.
E isso se dará tanto mais facilmente, pois o fiel, por sua parte, nunca adere de coração a alguma fórmula determinada, mas sempre com sua intenção adere à verdade absoluta e ignorada que a fórmula imperfeita e relativa proposta pela Igreja figura. Realmente, aderir à fórmula como tal, com assentimento de fé divina seria a mesma coisa que aderir às suas inevitáveis imperfeições; e do mesmo modo proclamar uma fórmula imperfectível e adequada ao mesmo tempo, embora não seja nem possa ser absolutamente verdadeira. Portanto, o católico pode crer na autoridade da Igreja e naquilo que a Igreja ensina, mas nem por isso pensa que as fórmulas eclesiásticas expressem o seu objeto com tanta perfeição, de maneira que não haja nada a ser corrigido por via de interpretação.

§ 5

Até hoje, portanto, se tinha pensado que todo o objeto de nossa fé fosse algo sólido consistente na ordem da realidade objetiva, notificado ou atestado a nós por Deus revelador. Mas nisto se terá enganado, e já é tempo que se saiba que esse objeto não passa de um complexo de idéias que a mente humana produziu e até agora elaborou. Cristo Deus é idéia. Cristo ressuscitado dos mortos é idéia. O mistério da Trindade é idéia. Idéia é a presença real sob as espécies sacramentais. Idéia é a bem-aventurança eterna com todas as promessas da vida futura, de maneira que já não em terra firme dos vivos, mas nas concepções sujeitas à indefinida evolução se deve fixar aquela âncora da esperança, que antes, por causa de excessiva simplicidade, com ilusão se pensava chegar até ao interior do Santo dos Santos onde Jesus precursor entrou para nós, isto é o Cristo real e histórico.
Até hoje pensava-se que no referido objeto da nossa fé muitos fatos como tais se continham. Digo fatos certamente históricos conforme atestados pelo testemunho humano da história, mas pertencentes completamente à fé divina conforme revestidos do mais alto e mais firme testemunho de Deus. Novamente enganava-se, pois os fatos como fatos não pertencem e nunca podem pertencer ao objeto da fé. Porque se a paixão, a crucifixão e a morte de Jesus, por exemplo, estão enumeradas entre outros artigos da fé, é porque somente pertencem à ordem da fé, na medida em que são afirmadas pelo sentimento religioso e na construção de um sistema ideal são introduzidas. Entretanto, a objetividade material desses fatos é objeto apenas do conhecimento histórico; coloca-se exclusivamente sob o único juízo da história.
Ate hoje pensava-se que o Evangelho fosse um livro de absoluta inerrância, no qual a sincera figura de Nosso Senhor Jesus Cristo, cuja benignidade e humanidade se manifestaram a todos, ensinando- nos a renunciar à impiedade e aos desejos mundanos, a fim de viver sóbria, justa e piamente neste mundo. Mas aqui também se trata de um estilo anacrônico. João, com suas místicas ficções, desfigura completamente o Jesus real. Ao contrário, os sinóticos tem tantas coisas misturadas, que se torna dificílimo  à critica distinguir as narrativas genuínas das não genuínas. Sem que se contestem as autenticas e indubitáveis  palavras do Salvador, não deverá, para o futuro, procurar uma regra certa da verdade e da santidade. Talvez se pensasse que fosse boa a oração que o Senhor Jesus ensinou. Mas agora se deve saber que a oração dominical, em algumas de suas partes, dá margem à critica não menos que a oração à Santo Antonio de Pádua para recuperar objeto perdido e que, tomada no rigor de sua primitiva e histórica significação, é subversiva da economia social.
Até hoje pensava-se que nossa religião, a constituição da Igreja, o sacrifício e os sacramentos cristãos fossem de instituição e direito divinos. Mas aqui também é necessário que se renuncie à pia credulidade, ou certamente que se mude por completo a noção de direito divino que antes se concebia. Com efeito, todas essas coisas são invenções da comunidade, aspirações da comunidade, prescrições da comunidade, imposições da comunidade. Mas como, certamente, nada impede que se considere a comunidade na qual age e vive o espírito do Cristo místico, se neste sentido for do agrado julgá-la uma instituição sobrenatural, é-se livre para consolar-se com tais palavras.
Até hoje acreditava-se na sinceridade dos católicos. Pensava-se que católico fosse aquele que com o coração sentia o que professava com a boca, como diz aquela passagem do apóstolo: Com o coração crê-se para a justiça, mas com a boca se faz a confissão para a salvação. Errava-se. Pois, enquanto se professa espontaneamente a fé católica, enquanto se diz mantê-la com veracidade, enquanto se promete solenemente, se consagra e se jura conservá-la íntegra e imaculada até o último sopro da vida, com essas palavras não se adere à fórmula que com a boca se pronuncia. Pois ouça-se de novo: Fiel em sua intenção adere à plena e absoluta verdade que figura a fórmula eclesiástica. Mas aderir à fórmula eclesiástica como tal, com assentimento de fé divina seria a mesma coisa que aderir à suas inevitáveis imperfeições e do mesmo modo proclamá-la imperfectível e adequada, embora seja inadequada e imperfeita”. Que significa isto? Tu és mentiroso? És perjuro? És hipócrita? E certamente, quanto ao passado, por uma escusa sem dúvida, dirás que não ainda não tinhas chegado à consciência de tua hipocrisia. Mas para o futuro, agora mostras-te solícito. Mas não há nada a temer. Realmente, não foi em vão que já fomos instruídos, por meio das formas literárias  da Sagrada Escritura, que no Oriente mentira não é mentira. Estende, pois, um pouco a doutrina do Oriente ao Ocidente, ao menos no que concerne à matéria da fé, e estarás seguro de todo escrúpulo.
Até hoje considerar-se-ia um crime consentir nas doutrinas dos heréticos ou daqueles que antigamente eram tidos como tais. Mas vê-se que era um absurdo preconceito. Acaso não é com o mesmo direito e o mesmo título  da confissão católica romana que a confissão luterana, ou sociniana ou ariana ou maometana poderá representar aquela absoluta e ignorada verdade a que só por intenção sempre se adere? Portanto, é de pouca importância qual a confissão que se professa. Tu és católico? Torna-te protestante se quiseres. Antes pelo contrário, nada obstará ser católico e protestante ao mesmo tempo, pois em nada prejudicará à profissão católica a simultânea profissão luterana, anglicana, calvinista e assim por diante. E, finalmente, não poderá haver alguém que em sua intenção  dê adesão à única verdade desconhecida que no futuro talvez deva ser revelada? Portanto, na comunhão de fé já nos unimos com todas as confissões que há no mundo, e já brilha a aurora daquela idade na qual haverá uma só religião de toda humanidade, abolidas para sempre todas as divisões que havia produzido a antiga superstição.

Notas:
[1] Clemente de Alexandria, Cohort. ad  Gentes.
[2] Mt. 28, 16; Mc. XVI, 7; Cor. XV, 6
[3] Jo. 16, 12.
[4] 2 Tim. 1, 13.
[5] 2 Tim. 2,2 e Tit. 1,5.
[6] 1 Tim. 6,14.
[7] Jo. 14, 16.
[8] Bellarm. 1. 4 De verbo Dei, c. 4.
[9] Bellarm. 1. 4 de Verbo, c. 5.
[10] Irineu, 1 3, c. 2.
[11] Iren. 1. 3, c. 3-4.
[12]  Por isso mesmo não parece admissível o que dizem alguns: A tradição em sentido objetivo é a regra remota da fé, mas em sentido formal é a próxima. Com efeito, se se trata de regra, pelo que formalmente é regra, não é necessário  considerar o que se deve crer, mas o que dirige a crer pela proposição do objeto a ser crido. E isto é sempre a mesma palavra, tanto a escrito quanto a oral, e com maior razão a Escritura ou Tradição, entendida sempre em sentido formal, não objetivo. Quanto à distinção entre regra remota e regra próxima, falar-se-á mais abaixo.
[13] Apud Franzelin, thes., 10.
[14] O cardeal Franzelin na tese 9 reduz a quatro categorias os auxílios para a íntegra conservação da doutrina: 1) Não só se observou sempre que só se elegesse bispo depois que constasse por testemunhos certos a sinceridade de sua fé, mas também, e sobretudo, os bispos das maiores sedes continuamente expunham por cartas a seus irmãos e principalmente ao Romano Pontífice uma distinta profissão de sua fé. “ A razão de tal instituição é evidente por si, e com elegância declarada por São Gregório Magno, 1, 7, epist. 4: “Pois como entre nós trocamos a confissão de nossa fé, que mais faremos na santa Igreja de Deus, se não untamos a arca com betume, para que não entre a onda do erro? Em segundo lugar, como os bispos eram zelosos não só individualmente mas também em conjunto, para que a fé de cada um fosse a mesma que a da totalidade, evitava-se cuidadosamente que da fé comum não houvesse nenhum dissidente que aparentasse estar em comunhão com a Igreja, de maneira que eram vigilantes para que a mesma fé dos bispos fosse acolhida em todas as sedes. Disto resulta que a sequência dos bispos ortodoxos nos arquivos de cada uma das igrejas se conserva com todo zelo, retirando-se aqueles suspeitos de defecção da fé da Igreja universal. Em terceiro lugar, quando em alguma igreja uma novidade doutrinária contra a fé tradicional começava a insinuar-se, competia ao bispo, não só reprimi-la, mas comunicar o fato aos outros bispos, sobretudo ao Romano Pontifice, a fim de que por uma sentença comum fosse afastado o erro  fulminado pela Igreja. Em quarto lugar, em caso extraordinário, onde o perigo de novidade iminente parecia mais grave, organizavam-se como  uma proteção eficaz os  concílios dos bispos ou das províncias ou de toda a Igreja.
[15] Belarmino, 1. 4. De Verbo Dei, c.4
[16] Cf. proemium secundae partis tratactus de Ecclesia.
[17] Enchir. N. 1642.
[18] “Na pregação apostólica podiam ser propostas algumas noções universais nas quais se continham  implicitamente noções singulares que deveriam  ser explicadas pelo magistério da Igreja à medida que surgissem as dúvidas com o passar do tempo. Assim, por exemplo, bastava a doutrina acerca da necessidade da graça para toda boa ação na via da salvação, para que posteriormente, contra os semipelagianos, se definisse a mesma necessidade para o início da fé. Poderiam estar contidos complexos, cujos elementos deviam ser explicados: Cristo é Deus e homem; de maneira que era necessário definir muita coisa acerca de ambas naturezas. Suprema é a potestade de Pedro, como fundamento visível da Igreja e centro da unidade; disto resulta a necessidade de explicar vários direitos e deveres em particular.” Franzelin, De trad., thes. 23.
[19] “Podiam alguns dogmas ser propostos mais em função prática e consoante o costume das igrejas, do que em forma de clara doutrina e instante pregação. Com o tempo, surgiu a necessidade de defini-los solenemente. Assim, por exemplo, na controvérsia sobre o poder de administrar validamente os sacramentos fora da Igreja e na história do cânon dos Livros Sagrados.” Id.,ibid.
[20] Podiam na pregação apostólica estar contidas algumas verdades mais simplesmente enunciadas, das quais seria necessário posteriormente, no confronto com as heresias, formular uma declaração mais estrita. Desde os padres e concílios definiu-se o modo de falar e de estabelecer a fórmula eclesiástica como característico da fé.Id.,ibid.
[21] Franzelin, De Tradit,, thes. 23.
[22] I Tim. I-3
[23] Gal. I-7.
[24] Lanfrancus, de corp. et sang. Domini, c. 23.
[25] August. 1,I, c. Iulianum, n. 14; 6, n. II e em outros freqüentes  lugares. – Santo Agostinho demonstrou  em todos os lugares que mencionamos e em muitos outros que essa prática da Igreja era suficiente para estabelecer o pecado original. Ele ataca Juliano pessoalmente nesse ponto. Sendo filho de um homem santo que depois foi elevado ao episcopado,  é de crer que ele havia recebido desde o berço todos os sacramentos ordinários. Com essa premissa Santo Agostinho lhe diz: “Tu foste batizado criança, foste exorcizado, foi expulso de ti o demônio pelo sopro. Menino ruim! Tu queres tirar de tua mãe o que tu mesmo recebeste, e os sacramentos pelos quais foste gerado…” Dessa sorte, a tradição estava fundada sobre atos incontestáveis, antes mesmo  que se fosse obrigado a entrar na discussão das passagens particulares, e assim essa discussão era absolutamente desnecessária. Bossuet, Defense de la Tradition, 1, 8, c. 2.
[26] August., 1 c. Juliano, n.13-14; 1. 6, n.22 etc. – “O segundo princípio de Santo Agostinho: Quando por abundância de direito se quiser entrar  nesta discussão particular, é preciso contentar-se com o testemunho da Igreja do Ocidente. Pois ainda sem pressupor nessa Igreja nenhuma prerrogativa que a torne mais  digna de crédito, basta para Santo Agostinho que fosse certo que os ocidentais eram cristãos, que não houvesse senão nenhuma fé em toda a terra e que esta fé fosse a cristã. De onde concluía  este padre que essa parte do mundo devia bastar a Juliano para convencê-lo: não que se devesse desprezar os gregos, mas porque não se podia pressupor que eles tivessem uma outra fé que os latinos sem destruir a Igreja dividindo-a. Entretanto,  Santo Agostinho insinuava a manifesta vantagem da Igreja Latina…Era a honra do Ocidente de ter na sua cabeça e no seu seio a primeira sé do mundo. Santo Agostinho não deixava de fazer valer nessa ocasião tal primazia, quando, citando, após todos os padres, o papa Santo Inocêncio observa que se ele era o último em idade, ele era o primeiro pela sua posição, posterior tempore, prior loco. Por conseguinte, o primeiro em autoridade. É por  isso que, na sequência, recapitulando o que ele havia dito, ele o coloca à frente de todos os padres que ele havia citado: à frente, digo, de São Cipriano, de São Basílio, de São Gregório Nazianzeno, de Santo Hilário e de Santo Ambrosio, sem nomear os outros que estavam compreendidos entre esses. É, pois, o segundo princípio de Santo Agostinho que a autoridade do Ocidente era mais que suficiente para autorizar um dogma de fé.” Bossuet, ubi supra, c.3.
[27]  Agostinho, 1, I, c. Iulian, n. 15-16. – “O terceiro princípio: Para aproximar-se dos orientais, que Santo Agostinho não estimava menos que os latinos: é que para conhecer seus sentimentos, não era necessário citar muitos dos seus autores. Ele contenta-se sobretudo com São Gregório Nazianzeno, cujos discursos, diz ele, célebres sob todos os aspectos pela graça que neles rescende, foram traduzidos para o latim. E um pouco adiante diz: “Credes, diz ele, que a autoridade dos bispos orientais seja pequena só nesse doutor? Mas é uma tão ilustre personagem, que ele não poderia ter falado como o fez, se ele não tivesse extraído o que ele dizia dos princípios comuns da fé que toda a gente conhecia, e não haveria uma estima e uma veneração por ele se ele não tivesse reconhecido que ele não tinha dito nada que não viesse da verdade que ninguém pode ignorar.” Como se vê, longe de dividir os autores eclesiásticos, Santo Agostinho fazia ver que, não podendo ser contrários em uma mesma fé, um só doutor, eminente por sua reputação e por sua doutrina, bastava para patentear o sentimento de todos os outros.” Bossuet, IBID. c. 4.
[28] Agostinho, 1, I. 1, c. Iulian n.º 19-34. – “Para julgar os sentimentos da antiguidade, o quarto e último princípio de Santo Agostinho diz que o sentimento unânime de toda a Igreja presente é sua prova; de sorte que, conhecendo o que se crê no tempo presente, não se pode pensar que se tenha podido crer diferentemente nos séculos passados. É por isso que Santo Agostinho, após ter feito a pergunta a Juliano sobre São Gregório Nazianzeno e São Basílio que se acaba de ver, diz: “Queres mais, isto não te basta? e acrescenta: Dizes que não te basta; leva tua temeridade até ao ponto de dizer: “Temos quatorze bispos do Oriente, Eulogo, João Amonião e outros que participaram do concilio de Diospolis na Palestina, que teriam todos condenado Pelagio, se ele não tivesse abandonado sua doutrina, que, portanto, o tinham condenado e professavam a fé do resto da Igreja e serviam de testemunhas, não somente da fé do Oriente, mas ainda aquela de todos os séculos passados.” Ibid. c. 5.
[29] “As maneiras, conforme vimos, como os antigos exprimiram a geração do Filho de Deus e sua desigualdade com o Pai encerram idéias muito falsas e muito diferentes das nossas… Todos sabem como esse mistério (da Trindade) ficou informe até o primeiro concílio de Nicéia…Os antigos doutores, e sobretudo os do terceiro século, e mesmo aqueles do quarto século, confundiram o Filho e o Espírito Santo; eles nos fizeram um Deus convertido em carne segundo a heresia atribuída a Eutiques e não foi senão por meio de longas disputas que enfim essa verdade (da encarnação) chegou à perfeição…A graça que se considera hoje como um dos mais importantes artigos da religião cristã era completamente informe até ao tempo de Santo Agostinho. Antes desse tempo, uns eram estóicos e maniqueus, outros eram puros pelagianos; os mais ortodoxos eram semipelagianos” Ita Jurieu, apud Bossuet Premier avertissement sur lês lettres de M. Jurieu.
[30] Id. De praedest. SS. Nº 27.
[31]  Nota-se, pois, a distância entre essa afirmação e a posição daqueles que dizem que as heresias iniciaram o progresso, porque os montanistas  iniciaram o ascetismo, os gnósticos, a ciência teológica, os sabelianos, a concepção católica da trindade etc.  Com efeito, tal constitui verdadeira blasfêmia. Assim, nas heresias não se reconhece mais que causa ocasional.  Realmente, a heresia ariana deu  lugar à definitiva consagração do vocábulo consubstancial, pelo qual se elimina toda possibilidade de uma compreensão falsa e se exprime a distinção das pessoas na numérica unidade da essência, com tanta simplicidade  e claridade. Igualmente a heresia nestoriana trouxe a necessidade de purificar os conceitos de natureza, pessoa, subsistência e de atribuir nomes a cada um. Do mesmo modo os protestantes obrigaram-nos a refutar-lhes as negações com maior erudição bíblica; os racionalistas a projetar maior  luz sobre os argumentos da revelação e assim sucessivamente. “Muita coisa, diz Santo Agostinho em De Civ. Dei, 1,16, c.2, referente à fé católica, quando criticada com astuta agitação dos hereges, para que possa ser defendida contra eles, é considerada mais atentamente e conhecida com mais clareza e ensinada com mais instância; e movida a questão pelo adversário,  resulta a ocasião de aprender.”
[32] Por ventura tratou-se perfeitamente da Trindade antes que ladrassem os arianos? Porventura tratou-se perfeitamente da penitência antes que a contradissessem os novacianos? Tampouco do batismo se tratou perfeitamente antes que o atacassem  os rebatizadores de fora…, por isso  aqueles que sabiam tratar dessa questão e solucioná-la esclareceram as obscuridades da Lei, a fim de que não perecessem os débeis seduzidos pelas questões dos ímpios, por seus sermões e disputas.”  Agostinho. Enarra. in Ps. 54, nº 22.
[33] “Entre as muitas questões que os arianos costumam disputar contra a fé católica, propõem-se sobretudo esta astutíssima maquinação quando dizem: “Tudo aquilo que de Deus se diz ou compreende, não segundo acidente mas segundo a substância se diz. Ora, uma coisa é ser não gerado, outra é ser gerado. Portanto, diversa é a substância do Pai e do Filho.” August. 1. 5 de Trin. C. 3 et álibi saepe.
[34] Cf. Petavium de Incarn. Lib. 3, c. 2. Igualmente Cirilo de Alexandria, epist. 39 ad Ioannem Antiochenum, (Migne, Patr. Gr. T. 77, col.174)..
[35] Cf. Santo Agostinho, l. c. Iulian.  Nº. 22, seguintes – Et. L. 6. nº24-28.
[36] August. Enchirid. C. 32.
[37] Migne, Patr. Graec. Tomo. 5, col.671, seg.
[38] Migne. P. G. tomo 5, col. 651.
[39] Ibid.col. 722.
[40] Epistola circularis Ecclesiae Smyrnensis de martírio Policarpi, Ibid. col. 1039
[41] Ibid. col. 1454.
[42] Migne, P. G. tomo 10, col. 983, seq. – cf. col. 965. –  Vide também São Basílio, de Espírito Santo, c. 29.
[43] Cf. Bossuet, Defense de La tradition, 1. 6, c. 10,seq.
[44] Migne, P. G. t. 6, col. 907.
[45] Ibid. – Da mesma condição são as explicações que acrescenta Tertuliano na Apologética contra os pagãos em defesa dos cristãos, c. 21: “Aprendemos que o Filho é a Palavra de Deus, e gerado pelo pensamento, e portanto Filho de Deus, e se diz Deus em virtude da unidade de substância…Assim como o raio se estende do sol, a parte vem do todo, mas o sol estará no raio, porque o raio é do sol, nem se separa da substância, mas estende-se. Assim também do espírito procede o espírito, e de Deus Deus, como luz acesa da luz, permanece íntegra e indefectível matriz da matéria, ainda que daí se tire o sarmento de boa cepa, assim também porque procede de Deus Deus é, e Filho de Deus, etc.”. De Tertuliano, entretanto, não convém aproximar-nos com tanta confiança. Realmente, a seu respeito vale em geral a censura de Bossuet:”Tertuliano, o mais figurado, para não dizer o mais exagerado de todos os autores.” E em outra lugar diz: “Seria necessário desta vez esquecer esse duro africano, sem cometer um crime contra toda a Igreja por causa das obscuridades de seu estilo e das irregularidades de seus pensamentos.”
[46] Migne. P. G. t. 6, col. 611 seg.
[47] No mesmo sentido apud Irineu, l. 6, c.7.
[48] Migne. P. G. t. 10, col. 818, seg.
[49] Cf. Petavium, l.3 de Incarn. C. 2.
[50] August. L. I. C. Iul. nº 21-34.
[51] Cumpre observar o progresso de Santo Agostinho nessa matéria, da qual estava por Deus destinado a ser o doutor por excelência. Nela teve primeiro um estado de simples fé, como se disse acima; no qual perscrutava o fundo do mistério, mas ainda não adentrava na consideração das dificuldades e tinha aquelas noções, que, embora puras, ainda não podiam resistir aos assaltos das objeções. Daí ascende a outro estado, quando começou, mas ainda imperfeitamente, a examinar a matéria. O que fez por ocasião da exposição de certas proposições da epistola aos romanos, onde primeiro caiu em dificuldade, depois em opinião falsa, como ele mesmo diz na primeira Retratação, c. 23e em De predestinação dos Santos c. 3.  Todavia, saiu dessa falsa opinião logo, antes que Pelágio dogmatizasse, por ocasião das questões que lhe propusera o bispo Simpliciano de Milão. E já com compreensão perfeita do dogma, tornou-se seu egrégio defensor contra Pelagio. – Observe-se sobretudo que falva muito melhor da graça no primeiro estado do que no segundo: “ Digno de nota nesse progresso é que ele falava melhor conforme a abundância do coração sem examinar a matéria do que o fazia examinando-a mas ainda imperfeitamente. O que não deve parecer estrannho, pois, assim como foi dito, nesse primeiro estado, a fé e a tradição falavam como sós, ao passo que no segundo era principalmente o espírito. É um característico bastante natural do espírito humano dizer melhor por essa impressão comum da verdade que quando examinando-a parcialmente, embaraça-se em seus pensamentos. Há frequentemente um grande desenlace para entender bem os padres, principalmente Origines, em quem se acha a tradição completamente pura em certas coisas que lhe saem naturalmente e que ele confunde de uma maneira terrível quando as quer explicar com mais sutileza; isto ocorre muito ordinariamente antes que as questões sejam bem discutidas e que o espírito a elas se aplique inteiramente.” Bossuet, Defense de la tradition l.6, c.16.
[52] A isto refere-se o que dizia Santo Agostinho aos pelagianos, 1. 2 c. Iul. n. 34: “Ainda não existieis vós, de quem recebemos a disputa a respeito do pecado original. Ainda não existíeis vós que dizeis  que em teus livros dizes: Porque a vosso respeito mentiremos à multidão, e que sob o nome de pelagianos aterrorizaremos os homens…Certamente, tu mesmo disseste que convém que todos os juízes sejam isentos de do ódio, da amizade, da inimizade, da ira. Puderam encontrar-se poucos assim, mas deve-se acreditar que Ambrosio e seus colegas, com os quais privei, tiveram tais qualidades. Mas ainda que assim não procedessem nessas causas a eles submetidas e entre as partes conhecidas, enquanto ai viveram, para essa causa, entretanto, formaram juízo e procederam bem quando a respeito dela proferiram sentenças. Não atenderam a amizades nem conosco nem convosco, nem provocaram inimizades; nem se iraram conosco ou convosco, nem se apiedaram de nós ou de vós. O que encontraram na Igreja conservaram; o que aprenderam, ensinaram; o que receberam dos padres, transmitiram-no aos filhos. Não tínhamos ainda feito petição nenhuma contra vós perante esses juízes, e a nossa causa já estava encaminhada para eles. Nem nós nem vós tínhamos sido  conhecidos deles e lemos em voz alta as sentenças deles a nosso favor contra vós. Ainda não lutávamos contra vós, e com seus pronunciamentos “vencemos”. Bossuet, ubi supra.
[53] Retirai, diz Bossuet, na Sixième avertisssement sur les lettres de Jurien, n 36, retirai do nome de ministro a inferioridade e a sujeição, só restará no Filho uma pessoa subsistente, uma pessoa enviada que recebe tudo do seu Pai…É assim que os antigos deram algumas vezes ao Filho de Deus e ao Espírito Santo o nome de ministro do Pai, e não para atribuir-lhes uma atividade desigual, porque isso se deve à miséria da língua human e a essa ferrugem  de que é necesário purificar os lábios quando se quer falar de Deus. É por isso que esses santos doutores com razão empregaram algumas vezes o vocábulo ministro, depurando-a como se viu. Mas se algumas vezes eles a viram com essa imperfeição natural a língua humana, eles a excluíram por isso mesmo dos discursos em que falavam do Filho de Deus.” Por exemplo, a epistola a Diognetum, nº 7: “Realmente, o mesmo Deus, que é onipotente e criador de todas as coisas e invisível, do céu trouxe para junto dos homens a Verdade e a Palavra santa e incompreensível, não do mesmo modo como alguém pudesse compreender, pelo envio aos homens de algum ministro, ou anjo ou príncipe, ou para qualquer lugar daqueles aos quais foi confiado nos céus o cuidado daquelas coisas a ser administradas, mas o próprio artífice e criador de todas as coisas pelo qual fez os céus, pelo qual encerrou o mar em seus limites…à maneira como um rei que envia um filho rei enviou; enviou como Deus. (Migne. Patrologia Grega. T. 2, c. 1175).
Cumpre notar outrossim que contra os sabelianos ou noecianos foi empregado esse vocábulo de ministro. Por sua vez, os sabelianos diziam que Deus operava por meio do Verbo, como o arquiteto por sua arte. Acontece que arte no arquiteto não é pessoa subsistente, mas acidente da alma. E de tal modo esses heréticos  chamavam ao Verbo sabedoria, arte, idéia de Deus. Os ortodoxos repeliam tal sentido, dizendo que o Verbo era o ministro do Pai, e portanto, uma pessoa distinta do Pai. Mas essa altura da verdade divina,  o discurso humano mal pode atingi-la sem feri-la em alguma parte. Por isso São Gregório diz: “Balbuciando tanto quanto podemos, façamos ressoar a glória de Deus.
[54] Quando Deus quis (são palavras de Hipólito), e da maneira que quis, ele fez aparecer o Verbo…ele gerava o Verbo, e como ele o tinha em si mesmo onde ele era invisível, ele o fez visível criando o mundo. Gerá-lo assim não é outra coisa senão que fazê-lo aparecer exteriormente. Isto não é um novo ser, nem nada de novo dentro do Verbo. É o mesmo que um arquiteto que tendo em seu espírito sua idéia como o plano interior de seu edifício, que ninguém via a não ser ele mesmo em seu pensamento, torna-o visível a toda a gente, dá-o à luz por assim dizer, e põe-no em dia quando começa a levantar o seu edifício. Tal é este parto e esta geração do Verbo. Aí tudo concerne à criatura à qual ele se torna visível, da mesma maneira que as perfeições invisíveis de Deus são vistas em suas criaturas. O Verbo tampouco muda como seu Pai, nessa manifestação. E esta manifestação é atribuída especialmente ao Verbo divino, porque ele é a idéia eterna desse arquiteto invisível. Acresce que, seguindo-se a comparação, como o arquiteto fala e ordena e tudo se arranja á sua voz que não é senão expressão e produção exterior de seu pensamento; assim Deus é representado na Escritura como proferindo uma palavra, que não é outra coisa senão seu Verbo manifestado e expresso exteriormente…Eis então a explicação que havia prometido. Toda essa produção é apenas a manifestação do Verbo; é a maneira pela qual se explicava então o que chamamos agora a atividade exterior sem alteração e sem mudança do que estava no interior.” Bossuet, ubi supra, n. 68, seg. Além disso, os antigos apologistas expunham com maior prazer tal consideração porque nela viam alguma analogia com as doutrinas platônicas, concorrendo para uma exposição persuasível do altíssimo mistério, como acima se observou a propósito de Atenagoras em sua Legationes pro christianis endereçada aos imperadores filósofos.
[55] O sentido não é este: haver outro Deus sob o Deus criador do universo, mas: outro, ou  haver outra pessoa que é e se diz Deus, etc.
[56] Vide apud Hilário, 1, 9 de Trin. n. 54, em que sentido do Filho segundo é pessoa divina, se pode entender  aquela passagem do Evangelho: o Pai é maior que eu.
[57] Quando se diz algo ser ou vir a ser por vontade, de duplo modo se entende. De um modo, como o ablativo indica concomitância apenas, como posso dizer que eu sou homem por minha vontade, porque quero realmente ser homem. E deste modo pode dizer-se que o Pai gerou o Filho por vontade, como por vontade é Deus, porque quer que ele seja Deus e quer gerar o Filho.
[58] Migne. P. G. tomo 67, col. 583 seg.
[59] Migne, P. G. tomo 77, col. 174.
[60] Cf. Mt. iX; Mc. II; Luc. X; Jo. X, 37, XIV, 12, XV, 24; At. X, 37, seg. etc, etc.
[61] S. Thom. In III, D. 27, q. I, a. 2.
[62] Diz-se apetite de duplo modo. Inato, que não consiste em alguma operação, mas na mesma proporção ou conaturalidade de qualquer criatura ao bem que lhe é conveniente segundo a exigência  da própria condição. Elícito, que consiste no ato da vontade e também é duplo, conforme contenha dentro de si os limites do apetite inato, ou ao contrário os ultrapassa, como se alguém apetecesse aquilo que reputa possível, e possível não é, ou na verdade, embora absolutamente possível, transcende entretanto sua condição. Do anterior, certamente, se pode obter o argumento tanto em favor da possibilidade quanto em favor da  existência daquilo a que tal apetite, naturalmente na medida em que não possa ser frustrada a ordem do autor da natureza, que o apetite deste mostra. Do posterior, ao contrário, nada, absolutamente nada, porque  pode ser  conduzido em qualquer criatura, segundo a imaginação de quem apetece ou ambição de quem anela àquilo que está acima das forças da natureza e dos auxílios devidos à natureza.
[63] Leia-se o excelente livro de |Gregório |Bertrin: Histoire critique dês evenements de Lourdes. Nele encontram-se os milagres com sumo rigor critico narrados, milagres que Deus fez para a mentalidade moderna, milagres dos quais com toda razão diz o autor em seu prefácio: “Eles formam como um capítulo novo da apologia cristã” . Entre outras muitas coisas ditas de forma conveniente que na discussão dos fatos se encontram , com proveito leia-se o parágrafo sob o título: “Forças desconhecidas”, pag. 190 e seguintes. Aí o autor responde à dificuldade corriqueira sobre as forças desconhecidas da natureza, mostrando que essas forças ocultas da natureza, que talvez depois venham a ser descobertas, não podem estar em oposição às leis conhecidas por nós, e portanto em vão se objeta quando se trata da distinção do milagre.
[64] Vide apud Bertrin, o. c. p. 233, seg. Les miraculées d’un romancier.
[65] S. T. 3ª pars. Q. 43, a. 2, ad primum.
[66] S. T. 3ª pars. Q. 15, a. 8.
[68] Deve-se notar aqui que contra a certeza histórica dos fatos evangélicos quanto à substância nada valem as dificuldades ou antilogias que em alguns acidentes ocorrem. Prescinde-se delas, pois, com razão em obediência à credibilidade da nossa fé.
[69] Agust. De Trinit. 1. I, c. 4.
[70] Os críticos têm consciência de operar constantemente com hipóteses que o exame dos textos torna mais ou menos prováveis, que ele pode tornar seguros à medida que a matéria o comporta. A hipótese desempenha na investigação histórica o mesmo papel que nas investigações propriamente cientificas. A melhor é aquela que leva em melhor consideração os fatos conhecidos e a eles se adapta com mais facilidade.” Loisy. Autour d’um petit livre, p. 35.
[70] P.7, primeira edição.
[71] O conteúdo deste capitulo é quase todo ele extraído integralmente de dois eruditos artigos de Guido Mattiussi Sj, sobre a imutabilidade do dogma, publicados no periódico La Scuola cattolica (março de 1903 e seg.).
[73] Realmente, com grande dificuldade se distingue esse conceito de infalibilidade eclesiástica daquele que consta no primeiro esquema da constituição acerca da doutrina católica proposto ao Concilio Vaticano: “Afirma-se o carisma da infalibilidade da Igreja, mas no sentido de que entre as várias sentenças sobre o significado do dogma prevaleça aquela que em tal época seja a mais apta. Assim nessa sentença que prevalece por definição da Igreja, concede-se que sempre há alguma verdade, mas não uma verdade simpliciter, uma verdade acabada; de modo que, com o passar do tempo para um ulterior estado das ciências  se torna necessária uma definição mais perfeita, porque aquele estado anterior é inepto para o estado posterior da ciência. Assim, dizem, no século V, devia-se excluir a separação das duas pessoas do homem Jesus e do Filho de Deus. Mas a condenação dessa separação, conforme a psicologia daquele tempo, supunha a unidade da pessoa de Cristo, e assim foi definida uma hypostasis ou pessoa em duas naturezas. Mas conforme a verdadeira filosofia da nossa época, dizem, já se devem dizer duas pessoas, divina e humana, permanentes na mesma união, e portanto não se deve entender uma unidade real da pessoa de Cristo, tal qual até hoje se entendia, mas uma pessoa composta de duas pessoas, etc.” Collect. Lac. P. 538.
[74] S. Tomás, I parte, q. 16, a. 1-2.
[75] Cf. Suma Teológica, I parte, q. 13, a. 3
[76] “As concepções que a Igreja apresenta como dogmas revelados não são verdades caídas do céu e guardadas pela tradição religiosa na forma precisa em que apareceram primeiro. O historiador aí vê a interpretação de fatos religiosos adquirida por um laborioso esforço do pensamento teológico. Ainda que os dogmas sejam divinos pela origem e substância, são humanos na estrutura e composição.” L1Évangile et l’Église, c. 4, §2.
[77] Augst. Serm. 32, n. 6.
[78] Acerca do ditado de Deus, ver De inspiratione Sacrae Scripturae. Parte I.
[79] Augustinus. Tract. I in Ioan. N. 1.
[80] Cf. Hilar. 1,.c. Constantium, n. 16; August. Tract. 97 in Ioan. n. 4.
[81] Vide no tomo primeiro de Sacramentis, prolegomenon ad Q.75, § 4.
[82] Daquelas coisas que, em razão de sua natureza, são apropriadas pelos sentidos, Platão estabelece algumas delas também em gênero definido como causas exemplares, chamadas por ele idéias, às quais convenha a razão de definição de ciência. Com efeito, além de todos os homens existe o homem, além dos cavalos existe o cavalo; e no universo, além de todos os animados, fala-se de certo animado carente de origem e de morte ao mesmo tempo. E do mesmo modo podem ser expressas várias formas de uma estatueta e muitas imagens de um mesmo homem: em suma, da idéia dos corpos conhecidos por qualquer sentido, resulta uma força ingente das naturezas: por exemplo de homem resultam todos os homens. Isto vale para a natureza de todos os outros seres. Além disso, a idéia eterna quer que exista certa essência que seja o principio e a causa de todas as coisas para que possam ser tais como ela mesma é. Assim como as idéias parciais precedem os corpos sensíveis como um arquétipo do mesmo aquela idéia belíssima e perfeitíssima, que em seu seio abraça todas as coisas, afirma-se como a causa exemplar desse mundo. É  copiando-o a partir desse modelo que Deus, o demiurgo, o construiu em virtude da sua preciência, mediante a reunião de todas as substâncias..”É assim que Didimo, (citado por Eusébio. Praep. evang. 1, II. C. 23) resume a teoria de Platão.
[83] Cf. O belíssimo comentário a essa passagem no capítulo 4 Contra Gentiles c. II.
[84] Cf. Atenagoras, Leg. Pro Christianis, n. 10. Ou Jsustino, Diálogo com Trifo , n. 61.
[85] Apud Eusebio, 1, 7 Praep. evang. C. 13.
[86] Ibid, in principi.
[87] Plotino considera o primeiro dos três deuses o sumo e perfeito, a quem chama….(grego), mente por si mesma mais excelente. Ao segundo chama….(grego) mente posterior, gerada pelo primeiro, e a sua imagem. Finalmente, ao terceiro considera como alma gerada pela segunda mente e é  a sua …(grego). Acrescenta que a mente foi gerada pelo primeiro e gerou todas as coisas existentes, inclusive toda a beleza das idéias e todos os deuses existentes. Então explica a sentença de Platão….,e diz que o sumo Deus Pai é a causa (…grego), isto é, da causa ou princípio, ou da Mente e do Demiurgo; este na verdade cria a alma. Diz ainda que o Pai é aquele…(grego), isto é, o mesmo bem, do qual  (grego) também a idéia se propaga; da mente, na verdade, alma”. Petavius, 1. I de Trin. c. 1.
[87] Onde se fala de Deus Filho. Pois no nome de Filho está encerrada a mesma propriedade que no nome  de Verbo, conforme diz Santo Agostinho. Pelo mesmo nome que se diz Verbo diz-se Filho.
[89] Iust.in 2 Apol. n. 13.
[90] Clem. Alex. in Pedagogo.
[91] August. De civit. 1,8, c. 14.
[92] De virtutibus, in epilogo.
[93] Agostinho, De moribus Ecclesiae, c. 17, n. 31.
[94] De his cf. de virtutibus, Prolegom. de fide.
[95] “Confessamos que para nós não há nenhuma razão que exija crer na divindade da Igreja. Em primeiro lugar não esquecemos que a fé é um dom, que ela é um ato livre. Se a fé resultasse fatalmente dos nossos raciocínios como a conclusão de um silogismo das premissas, ela não seria um ato livre na acepção ordinária desta palavra, e ninguém, a não ser um sem juízo, poderia recusar-se  a crer, como tampouco podemos recusar-nos à evidência. Ela não seria um dom, ela não seria a fé, se ela se deduzisse de proposições antecedentes à maneira dos teoremas de Euclides, etc…”. Mignot Critique et tradition. Correspondant, 10 de janeiro de 1904.
[96] “Ademais da fé de amor, há, pois, uma fé de temor. Todavia, elas não tem nada em comum. E quando a fé de temor é o princípio da sabedoria, é que no temor mesmo já há outra coisa. Mas crer unicamente  por temor, é crer em nada. É assim que um inimigo crê na existência de seu inimigo aspirando a eliminá-lo. A fé de temor em si mesma não é uma fé sincera, pois que ela contém o desejo de não crer. Com ela e por ela mergulha-se nas trevas. É uma fé morta, uma fé sofrida da qual se procura desembaraçar e da qual não se consegue libertar. Enquanto a fé de amor é uma fé viva e querida na qual se fortalece sem cessar e vai sempre crescendo. Supercrescit fides vestra”. Laberthonnière Le dogmatismo mora, § 4.
[97] S. T. 1-2, q. 21, a. 1.
[98] Ib. a. 2, ad 2.
[99] De natura et ratione peccati. Introd. §3.
[100] Fil. II, 5-8.
[101] I Cor. XV, 12-33.
[102] I Cor. XI, 23-29.
[103]  “Se existe outro mundo invisível, onde Deus desvela outras maravilhas, onde ele habita em sua glória, e se mostra sem véu aos seus eleitos; se fomos feitos para esse mundo melhor, para aí ver e possuir a Deus e gozar em seu seio das delícias eternas: não será necessário que sejamos advertidos de nosso sublime destino, para esforçar-nos por realizá-lo? Não será necessário que nos sejam dadas ao menos algumas noções de nossa pátria em direção da qual devemos tender, dessa imortal felicidade que devemos merecer, desse Deus ao qual nos devemos unir para sempre por amor?…Por longo tempo antes do uso da razão a criança é esclarecida por uma fraca luz intelectual, que é como a aurora; suas idéias, a princípio confusas e encerradas, esclarecem-se pouco a pouco; ela balbucia uma linguagem que ela não compreende, antes de ligar um sentido claro e distinto às palavras que pronuncia, e só chega através de um longo estudo dos elementos áridos e quase ininteligíveis para ele a essa medida de ciência da qual o espírito humano é capaz aqui na terra. Eis o que uma experiência quotidiana nos descobre; estendamos agora nossas vistas e elevemos nossos pensamentos. Sendo um ser imortal o homem, cuja existência, cuja existência começada no tempo, deve durar para além dos séculos, podemos com razão dizer que a vida presente não passa de uma infância e sua idade madura é a eternidade  Criança neste mundo, ele aí é como um bosquejo do que será um dia; não tem ainda plena inteligência das coisas de Deus, mas delas tem as primeiras vistas incompletas, que se desenvolverão em outro estado; ele aprende a balbuciar na terra a língua dos bem-aventurados e dos anjos que ele deve falar eternamente no céu; ele estuda os elementos ainda obscuros de uma ciência divina, que ele só possuirá em toda sua extensão quando houver atingido, segundo a expressão de São Paulo, a plenitude do homem perfeito em Jesus Cristo. Toda esta doutrina é do grande apóstolo, ouvi-a dele mesmo: “Enquanto somos crianças, diz ele, falamos como crianças, pensamos, raciocinamos como crianças. Mas quando a maturidade tiver chegado, tudo quanto é próprio de criança desaparecerá. O que vemos agora como em um espelho e em enigma vê-lo-emos então face a face; o que conhecemos só obscuramente e em parte conhecê-lo-emos tão plenamente como somos conhecidos de nós mesmos.” Para que servem então os mistérios? Ora, eles formam um degrau necessário, nesse grande e magnífico desenvolvimento do homem, crescendo aqui em baixo para a eternidade, e preparando-se, entre as sombras da cidade terrena, para a luz e a glória da pátria imortal. Para que servem os mistérios? Eles são o elo que une a terra ao céu, por uma admirável comunhão de sentimentos, pensamentos e de linguagem. Tudo que os bem-aventurados vêem, nós o cremos; tudo que eles possuem, nós o esperamos; o que eles amam e adoram é também objeto de nossa adoração e de nosso amor; nossos cânticos respondem aos seus; eles rendem graças, nos transportes permanentes de alegria, pelos bens inefáveis de que gozam; nós suspiramos, no ardor de contínuos desejos, por esses mesmos bens que os mistérios nos mostram através dos véus  e que eles nos prometem como a recompensa segura de nossa fé.” (Maccarty, sermão sobre a divindade da religião cristã provada pelos seus mistérios, para a festa da Santíssima Trindade).
[104] Greg. M. Homil. 32, in Ev. N. 6.
[105] “Deus é pessoa quer dizer: Comporta-te nas tuas relações com Deus como em vossas relações com uma pessoa humana. De modo semelhante, Jesus ressuscitou quer dizer: Age com ele como terias agido antes de sua morte, como ages com um contemporâneo. Do mesmo modo, o dogma da presença real, é necessário ter para com a hóstia consagrada uma atitude idêntica àquela que se teria em face de Jesus visível”. Le Roy, Qu’est-ce qu’un dogme. (Quinzaine, 16 de abril de 1905).
[106] Deus falou, diz-se. Que significa a palavra falar neste caso? Certamente, é uma metáfora. Que realidade ela oculta? Toda dificuldade reside aí.” Le Roy, ubi supra.

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