STEFANO FONTANA: RAHNER, PROFETA DA IGREJA ABERTA DE HOJE

Um livreto de Rahner de 1972 é extraordinariamente atual, para entendermos de onde viemos e para onde vamos: Igreja aberta, desclericalizada e comunidade de base, sem dogmas e não moralizadora. As previsões do teólogo sobre comunhão aos divorciados e sobre o aborto. A ser lido com uma advertência: não era infalível.


06 de Agosto de 2016
Tradução: Gederson Falcometa

No longínquo 1972 Karl Rahner, que naqueles tempos, ainda que distante do nosso, já era Karl Rahner, escreve um livreto intitulado “Transformação estrutural da Igreja como tarefa e como chance”. No ano sucessivo foi publicado em língua italiana pela Queriana. O livro foi destinado a Igreja Alemã, que tinha acabado de celebrar o seu Sínodo, mas as considerações do (já) grande teólogo alemão antecipavam surpreendentemente os tempos e falavam do nosso hoje. Na Itália a Democracia Cristã (DC) deveria governar ainda por vinte anos, ainda não se tinha nem mesmo  realizado o referendum sobre o divórcio, Paulo VI tinha acabado de desaprovar a Associação Cristã dos Trabalhadores Italianos que em Vallombrosa escolheu o socialismo, já tinha acontecido o 68, mas para as Brigadas Vermelhas surgirem ainda faltavam muitos anos, estava em curso a guerra do Vietinã. É verdade que Paulo VI já tinha falado da “fumaça de Satanás” que entrou na Igreja, mas naquela época o sistema parecia reger. Era um outro mundo, ou neste outro mundo, Rahner já pensava nosso hoje, no nosso mundo e na nossa Igreja de hoje. A releitura daquele livreto traz a nossa fotografia.  


Para dizer a coisa em síntese, a Igreja de Karl Rahner deveria ser desclericalizada, democrática, aberta e com portas abertas, estruturada a partir da base, ecumênica, que não moraliza. Eis como ele via a Igreja do futuro próximo, objeto e sujeito junto a uma “transformação estrutural”. Não se tratava de uma predição, mas de uma “tarefa” a desenvolver entendendo-a como “chance”, como possibilidade para a Igreja continuar a ser e a existir.

Um dos conceitos chaves expressos no livreto é aquele de Igreja “aberta”. A coisa é dita não só em sentido pastoral (aberta no sentido de abertura a acolher a todos) mas doutrinal. Segundo Rahner, de fato, a ortodoxia, a ordem, a clareza... são características de uma seita. Mas a Igreja não é uma seita e então os seus limites não devem ser claros e nem definidos. Essa deve ser “aberta também do ponto de vista da ortodoxia”. E a este propósito os exemplos que Rahner faz não poderiam ser mais atuais: “não é claro o porque dos divorciados recasados depois de um primeiro matrimônio sacramental não poderem em nenhum caso serem readmitidos aos sacramentos até quando perseverarem no segundo matrimônio enquanto tal; é possível não considerar o preceito festivo como um mandamento que Deus teria estabelecido sobre o Sinai dotando-o de uma validade perene; não é nem mesmo possível estabelecer com clareza, como às vezes se faz, quais possibilidade existem também para uma consciência cristã nas relações com as leis penais do Estado contra o aborto”. Como dizia anteriormente, parece que Rahner aqui, fala de nós, agora.

Igreja aberta quer dizer que não são claros os limites da ortodoxia e por consequência nem mesmo aqueles da heresia. Mesmo dentro da Igreja, disse Rahner, existem conteúdos de consciência dispares e opiniões divergentes sobre o dogma objetivo. O pluralismo teológico e doutrinal não constitui então uma ameaça, continua Rahner, porque é conforme a uma “Igreja Evangélica” na qual se poderia dizer quase tudo e se poderia expressar publicamente o que se quer”. 

A Igreja do futuro - sustentava Rahner em 1972 - é uma Igreja que se constrói a partir de baixo, fruto da livre iniciativa e associação. As próprias paróquias se transformarão neste sentido. E neste ponto uma comunidade de base poderá escolher um “ líder  adequado para guia-la, retirado do seu seio” e “apresentar ao Bispo como seu presidente uma pessoa crescida em seu seio provida das qualidades necessárias para tal ofício, e esta pode receber validamente a ordenação ainda que seja casada”. A comunidade de base - acrescenta Rahner - poderá escolher não só uma pessoa casada, mas também uma mulher: “Não vejo a priori algum motivo para dar uma resposta negativa a este problema, tendo em conta as sociedade de hoje e ainda mais aquelas do amanhã”. 

Uma Igreja construida a partir da base será também uma Igreja democrática. Rahner notava em 1972 que manter reduzido o número de eleitores de um Bispo garantirá sempre menos no futuro as característica de ortodoxia e eclesiaticidade do nomeado (e infelizmente isto o constatamos todos), dado o pluralismo doutrinal e a particularização das comunidades de base, então se pode passar a um método democrático de designação: existe “um direito dos sacerdotes e dos leigos de participarem das decisões da Igreja em maneira deliberativa e não puramente consultiva”. É o que hoje se chama com insistência de “Sinodalidade” e que, segundo Rahner deveria se tornar práxis não só consultiva mas deliberativa.

Nestes tempos muitos se surpreenderão porque muitos Pastores não irão intervir a propósito de leis que atingem de forma muito dura princípios fundamentais da lei moral natural. Não são raros os Bispos e os párocos que não veem com bons olhos aqueles cristãos que “mostram os músculos” (como eles mesmos dizem) em público para a defesa dos princípios inegociáveis. A explicação está nestas páginas de Rahner de quarenta e quatro anos atrás: “moral sem moralizar”. Para Rahner se “moraliza” quando “se proclamam normas de comportamento de maneira áspera e pedante, com indignação moral, diante a um mundo imoral sem conduzi-lo realmente àquela experiência interior essencial do homem que este último tem e sem a qual, pelo contrário, nem mesmo os assim chamados princípios do direito natural poderiam obrigá-lo atualmente”.  

Quem lê este livreto de Rahner entende de onde viemos e para onde vamos. Mas apesar de muitos terem se esforçado nestes quarenta e quatro anos para dar-lhe razão e agir a fim de que as suas previsões se cumprissem, mesmo Rahner não era infalível.

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