ROBERTO MARCHESINI: PORQUE UM CÓDIGO CAVALHEIRESCO.
Extraído do livro
Código cavalheiresco
para
o
homem
do terceiro milênio
Roberto
Marchesini
Tradução: Gederson Falcometa
Viver de acordo com o que
você gosta não é a única maneira de viver, apesar daquilo que sustenta o
mainstream.
Como Goethe escreveu: “Viver
de acordo com o próprio gosto é próprio do plebeu; a alma nobre aspira a uma
ordem e a uma lei ”. A alma nobre deseja uma lei, não a rejeita; considera a
vida como disciplina, não como prazer. Noblesse oblige - nobreza obriga,
a nobreza obriga, não desvincula dos deveres.
“A nobreza”, explica
Ortega y Gasset, “é sinônimo de uma vida corajosa, sempre empenhada em se
superar, em se transcender, em alcançar o que ela propõe como ser e exigência.
[...] São os escolhidos, os nobres, os únicos ativos e não reativos, para quem
viver é tensão perpétua, disciplina incessante. Disciplina = askesis. São os
ascetas”.
Este conceito sempre escapou da alma vulgar.
No século XVI se assiste o
nascimento da chamada "nobreza da toga", em oposição à
tradicional "nobreza de espada". Lojistas e comerciantes enriquecidos
compraram títulos e terras, pensando que esses eram os elementos característicos
da nobreza. Pensaram que ser nobre consistia em "viver da renda"
sobre os ombros dos outros, sem trabalhar. Esquecendo que a nobreza de espada,
além de ter conquistado título e terras com risco de vida, em combate, usufruía
daquele tratamento porque lhe tocava sacrificar-se em caso de perigo. Os
camponeses mantinham os nobres, sim, mas para ter em troca proteção e da
salvação da vida; os nobres eram sim mantidos, mas porque era seu dever
arriscar a vida para defender aqueles que se confiavam a eles. A nobreza era um
dever pesado, não um benefício agradável. A nobreza da toga, demonstrando assim
a sua vulgaridade, aspirava apenas aos aspectos agradáveis da
nobreza, ignorando por completo a sua contraparte perigosa.
O mesmo fenômeno se repetiu
no século passado quando, como cantava Paolo Pietrangeli, "o operário
também" queria "o filho doutor". O diploma, símbolo
de pertencimento à elite cultural (e econômica) do país, era simplesmente a
forma de ter o filho “arrumado”: um bom trabalho, que não exigisse mãos
sujas de terra ou graxa, dinheiro, possibilidades. Nenhum dos operários de
Pietrangeli que queriam o filho doutor queria que o filho sacrificasse sua vida
para melhorar o seu país, para o bem dos outros; seu objetivo era uma vida
fácil, cheia de prazeres, sem gravames ou deveres. Em vez disso, pertencer à
elite da sociedade implica deveres para com a própria sociedade. O "direito
de estudar" para todos cancelou o "dever de estudar" para a elite.
Mas esse conceito continua a
escapar à alma vulgar. Nem mesmo leva em consideração a ideia de que a vida é
tarefa, dever, sacrifício, pelo contrário: olha cada uma dessas três palavras
com desconfiança. No entanto, essa ideia, que hoje parece pelo menos tola, é na
verdade a base educacional que construiu o Ocidente como o conhecemos.
É a ideia de que todo homem
tem um projeto a realizar, e que esta realização consiste exatamente na
finalidade de sua vida. É o pensamento teleológico (do grego télos, propósito),
nascido na Grécia junto com a filosofia ocidental, que prevê que tudo tem um
fim, uma finalidade intrínseca; e que a realização dessa finalidade coincide
com o cumprimento, com a plenitude do ser daquela coisa.
O mais conhecido divulgador
do pensamento teleológico atual é o filósofo alemão Robert Spaemann (1927 -
2018), um dos maiores de nosso tempo, ainda que pouco conhecido. Isso porque o
pensamento em que estamos imersos é um pensamento ateleológico, a-finalístico,
para o qual as coisas e o homem em particular não têm nenhum projeto, nenhum
propósito e nenhuma realização possível. Não há amanhã, nem horizonte, nem fim:
a vida é um presente eterno sem sentido.
O problema é que uma vida
sem um fim, sem um propósito autotranscendente (isto é, fora de si) sem um
significado é, para o psiquiatra Viktor Frankl; uma vida cinzenta, vazia e
impossível de viver. Segundo Frankl , de fato, o princípio guia da existência
das pessoas não é o princípio do prazer (como sustentava Freud), e nem a
vontade de poder (como afirmou Adler), mas a vontade de significado, a
busca de um propósito, um sentido na própria vida.
Assim, imerso em um "vazio
existencial", continua Frankl, o homem tenta sufocar sua angústia na
busca do prazer. “Quem quer ser feliz”, escreveu Lorenzo, o Magnífico, “saiba
que do amanhã não há certeza”: quem não tem um horizonte dedica-se ao gozo
ou se afundará na angústia.
Daí a obsessão do selvagem
contemporâneo pelo gozo, que parece ser a única razão de viver e a única
estrela polar de uma existência imersa na neblina: privado de uma finalidade,
de uma causa a qual votar a própria vida, ele a acalma sua angústia com o
prazer.
Esta parece ser a única
finalidade da vida do homem contemporâneo: buscar todos os tipos de prazer,
devotar-lhe todo o tempo, energia e dinheiro à sua disposição. A liberação
sexual se transformou em escravidão sexual, tão onipresente e difundido é o
apelo ao prazer sexual em nossa sociedade. O imperativo, para os adultos, e
sobretudo os jovens, é "divertir-se" (o que às vezes é sinônimo de
"ficar chapado"). Mas o que significa "divertir-se"? Essa
palavra deriva do latim divertere, ou seja, distanciar, desviar, levar
longe. Do que o homem contemporâneo quer se distanciar? Do que quer fugir? Qual
coisa o quer levar para longe de nossa sociedade? Talvez, o sofrimento e
angústia de uma vida mortal sem propósito?
O homem nobre, já dissemos,
não vive para o prazer, mas para o dever. O que, deve-se enfatizar, é algo
diferente de shouldism (Ndt.: sentido do dever levado ao extremo).
O shouldism consiste na
aceitação passiva do "dever pelo dever" kantiano. Kant, como todos os
luteranos, estava convencido de que todo homem estava irremediavelmente
corrompido pelo pecado original e, portanto, desejava o mal; e que a única
maneira de fazê-lo fazer o bem era forçando-o a isso. Esta é a base teológica
da moralidade zelosa prussiana, do ordnung germânico, do doverismo.
O dever é outra coisa. Dever
é a adesão livre e voluntária à própria tarefa, ao próprio destino, a própria
vocação. Visto que o homem não é irremediavelmente corrupto, mas apenas
inclinado ao mal pelo pecado original ("Não faço o bem que quero, mas o
mal que não quero ", Rm 7,19), se é livre, não pratica o mal, mas o
bem. Quem pratica o mal, de fato, não é livre - como acreditam os luteranos -
mas escravo "Quem comete pecado é escravo do pecado” Jo 8,34. Portanto,
apenas o homem que aceita livremente seu destino até o fim é real e
completamente livre.
Neste ponto, alguém ficará
confuso: o hedonista selvagem descrito na Introdução, não faz aquilo que quer?
A resposta é “não". fazer o que se gosta não coincide com fazer o que se
quer, tanto é verdade que - como vimos - a busca espasmódica pelo prazer é
consequência da impossibilidade de viver uma vida sem propósito, sem um
significado, mais do que uma livre escolha. Como escreveu Santo Tomás,
"... qualquer prazer traz um alívio capaz de mitigar qualquer tristeza,
qualquer que seja sua origem" Summa theologiae, II-II, q. 38, a. 1).
Fazer o que se gosta e fazer
o que se quer não são, em realidade, a mesma coisa; Tanto é verdade que estamos
empenhados em atividades extenuantes que exigem sacrifício - como esporte,
estudo, trabalho - sem que ninguém nos obrigue de forma alguma.
Quem vive de modo
hedonístico não vive realmente como quer (ainda que não perceba); se contenta
com uma vida anestesiada.
Eis como o escritor Cormac
McCarth descreve esse mecanismo em seu livro Sunset limited:
Preto - ... O maior medo do
bêbado não é o de morrer por culpa do álcool, coisa que lhe acontecerá. Mas sim
o de álcool acabar antes que isto aconteça. [...] Se você der um copo cheio
para um bêbado e, entretanto, lhe disser que não é aquilo que ele realmente
quer, o que você acha que ele responde?
Branco - Penso que posso
imaginar, o que ele me responde.
Preto - Claro. No entanto,
você está certo.
Branco – Dizendo-lhe que não
é o que ele realmente quer.
Preto - Exatamente. Porque o
que ele realmente quer, ele não pode ter. Ou ele está convencido de que não
pode ter. Então, ele se empanturra com o que realmente não quer.
Branco - E o que o bêbado
quer de verdade?
Preto - Vamos, você também
sabe disso.
Branco - Não, não sei.
Preto - Sim, ao contrário.
Branco – Não.
Nero – Hum.
Branco – Hum, o que?
Preto – Você é um caso
difícil, professor.
Branco – Olha que nem mesmo
você é um passeio.
Preto – E assim não sabe a
coisa que o bêbado quer de verdade?
Branco – Não que não sei.
Preto – Quer aquilo que
todos querem.
Branco – E o que é?
Preto – Ser amado por Deus.
Precisamos realmente nos
contentar com uma dose diária de anestésico ou podemos ter mais? Podemos nos
realizar plenamente, colocar nossos talentos em bom uso sem enterrá-los, ter
orgulho de nós mesmos, em vez de passar a vida com vergonha? Sim, é possível.
Mas precisamos - como Goethe escreveu - de uma ordem, de uma lei.
É por isso que pensei em
oferecer um código aos homens do terceiro milênio. A criança mimada, o selvagem
com um smartphone, o hedonista rirá disso.
Quem, hoje, usa palavras
como "honra", "coragem", "lealdade"? Essas são
palavras que agora só são ditas nos velhos filmes em preto e branco da comédia
italiana; vêm da boca de personagens de quem fomos ensinados a rir, a ter pena.
O mesmo tratamento, hoje, é
reservado para quem quer viver de acordo com uma ordem, uma lei. Mas não
importa. Há muito mais em jogo do que a aprovação do primeiro que passa.
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