ROBERTO PECCHIOLI: A DITADURA DO PROGRETARIADO




Roberto Pecchili
Tradução: Gederson Falcometa 

Temos o hábito de conversar amigavelmente, no bar ou na praça, com um culto professor de um ferrenho passado de militante de extrema esquerda. Unidos pela fé no futebol e divididos sobre todo o resto, adoramos provocar uns aos outros discutindo sobre máximos (e mínimos) sistemas. Falando com tristeza sobre a morte no trabalho - mais uma - de um trabalhador em nossa cidade, notamos uma certa indiferença disfarçada de cortesia. Perto dali, um dos explorados do capitalismo absoluto - um menino estrangeiro - carregava o saco de uma plataforma de entrega de junk food em uma bicicleta velha: olhar desatento do professor. Como provocação, comentamos então a recente “saída do armário” de um ex-ministro sobre sua homossexualidade, usando deliberadamente o termo invertido. Mudança repentina de humor e tom, dedo indicador levantado em sinal de reprovação: fomos atingidos por reprovações por usar uma linguagem que "não respeita a orientação sexual". 

O nosso amigo completou uma conversão comum a muitos: passou da ditadura do proletariado para a ditadura do “progretariado”. Inventamos o neologismo para descrever o trânsito de muitos comunistas para o progressismo. Grande parte da esquerda, sem abandonar a arrogância da superioridade moral e o soberano desprezo pelas ideias dos outros, sem abandonar o sentido individualista, liberal libertário e até mesmo mercantilista. Marx e Engels interpretavam a história como luta eterna entre patrões desfrutadores e servos desfrutados, a quem teria colocado fim a ditadura do proletariado finalmente libertado de suas cadeias. Arquivada a luta de classes por manifesta inferioridade em relação ao ex-inimigo vitorioso, o neomarxismo cultural, como boa serpente, mudou a pele e por influxo de várias correntes de pensamento pós-modernos e modificou os seus fundamentos teóricos, substituindo a luta de classes com a guerra entre identidades inimigas, novos motores da história. Desfrutadores e desfrutados, dominadores e dominados não são mais identificados a respeito de sua identidade econômica mas com base em sua identidade étnica, de gênero e de “orientação sexual”. 


Apenas poucos comunistas da antiga permanecem fiéis as velhas convicções: um é Marco Rizzo, que considera os novos direitos civis individuais uma arma de distração das massas a favor dos cetros dominantes. Tem razão até mesmo quando recorda que o problema não são os direitos dos gays, mas a distância impreenchível entre o gay pobre e o gay rico. Aquilo que não muda, no imaginário e na concreta práxis progressista, é a vontade de reduzir ao silêncio o dissidente, recusando de escutar as suas razões, desacreditar e demonizar prejudicialmente segundo um código moral de novo cunho, difundido e imposto por eles mesmos. Uma outra ditadura, aquela do “progretariado”. Falou a respeito com preocupação um intelectual de esquerda que não entregou o cérebro a destruição e por isto suportava ataques venenosos, Luca Ricolfi. Em uma esplêndida intervenção no La Repubblica - objeto de duras repreensões da parte dos “duros e puros” a Gad Lerner - falou desta singular mutação.


Uma das características é a discriminação em relação aos não alienados: o álbum de família não deixa o campo. “Professores, escritores, atores, dependentes de empresas, cidadãos comuns perdem o trabalho, levam suspensões ou sanções, não porque tenham cometido erros no exercício da sua profissão, mas porque em outros contextos, ou no passado, expressaram ideias não conformes ao pensamento dominante. Não somente isso: na política das assunções, em particular nas faculdades humanistas, vem excluídos os estudiosos não alinhadas a “ortodoxia” da política dominante”. No Texas nasceu a Universidade de Austin, cujo objetivo é fechar a estrada a tais derivas, reiniciando um ensinamento livre, alieno de qualquer imposição. No novo ateneu não será permitida a censura mascada por argumentos delirantes do tipo me ofende/me oprime/, sois machista/sois racista e similares.  A iniciativa se propõe a gerar conhecimento através da liberdade de expressão. Pareceria uma obviedade: não é essa a missão da instituição universitária? 


O fato é que a ditadura do progretariado é filha da cultura do cancelamento, o fenômeno que quer acabar com tudo que sustenta nossa civilização e convivência: liberdade de expressão, ensinamento e palavra, respeito ao passado e pensamento crítico. Mesmo a presunção de inocência decorrente do direito romano é atacada pelo feminismo radical por atos definidos como “violência de gênero”; a liberdade individual é restringida por prescrições cada vez mais rigorosas. Para Ricolfi, avança da América uma variante ideológica neoprogressista, a cultura de mil identidades opostas, "um complexo de teorias, filosofias, reivindicações, segundo as quais o que realmente importa não é quem você é, mas a qual minoria oprimida você pertence . Daí as ideias mais estranhas, por exemplo, que para traduzir um romance de um autor negro tu deve ser negro (sucedeu). Que para falar de mulher tem que ser mulher; falar sobre a homossexualidade tem que ser homossexual; falar do Islã tem que ser islâmico; para falar da África tem que ser africano. Se você ousa a falar sobre algo sem ser a própria coisa, você é acusado de apropriação cultural.”

 

A consequência é que não conta mais “talento, preparação, competência, habilidades, experiência, mas o que seus ancestrais fizeram. Se são homens brancos heterossexuais, deve-se dar lugar àqueles cujos ancestrais estão mais alinhados com a ideologia dominante. Porque os descendentes das minorias doc têm direito a indenização, e os descendentes do homem branco (mesmo que não tenham culpa) devem pagar pelas faltas, reais ou alegadas, de seus ancestrais colonialistas, opressores, escravistas, em qualquer caso privilegiados." O ideal de igualdade - a bandeira secular da esquerda - é substituído pela ideia maluca de que as diferenças de raça, etnia e gênero contam. A sociedade, portanto, não deve mais “promover o conhecimento e buscar a verdade, mas combater as injustiças sociais, reequilibrando as desigualdades com ações positivas que favorecem certas minorias e penalizam a maioria e as minorias desprotegidas, independentemente dos méritos e habilidades de cada indivíduo”. 


O desfecho paradoxal da ditadura do progretariado é o estabelecimento de uma pseudo-igualdade - da qual os direitos sociais são excluídos - por meio da discriminação contrária àquelas que ela afirma combater. Racismo invertido: a mais reacionária e agressiva das ideologias contemporâneas. Como sempre, para combater um mal, é preciso voltar à sua raiz. A origem remota dessa cultura - que na América chamam de "despertada" - woke - está nos medos e obsessões que se seguiram à Segunda Guerra Mundial e à Guerra Fria. As ideias "fortes" geraram conflitos terríveis: melhor o desencanto, o politeísmo de valores a Max Weber. Os sistemas morais e as filiações comunitárias foram expulsos ou restritos à esfera privada. O Estado era responsável por proteger os direitos individuais, limitando-se a acompanhar o desenvolvimento econômico e evitando a colisão de crenças opostas. Nasceu o mundo líquido, espalhou-se a convicção de que os valores essenciais deveriam permanecer fora da esfera política. Isso foi afirmado por personalidades muito diferentes, sociólogos e juristas como John Rawls, economistas ultraliberais como Milton Friedman, escritores como Albert Camus. O estruturalismo francês e a filosofia pós-moderna promoveram a ideia de mundos fracos ou líquidos. 


Direita e esquerda de sistema chegaram a um acordo tácito: para um a reivindicação da liberdade de mercado e prosperidade econômica, para a outra o poder intelectual e cultural, que acaba por condicionar toda a sociedade e a própria economia, como bem sabia Antonio Gramsci. Durante décadas se difundiram as ideologias do mundo líquido, ou seja, iridescentes, sem bússola e âncora, e os novos pares de oposição, os binômios que definem como antes, mas ao contrário, o eixo do bem e do mal. A aporia, o absurdo não resolvido do relativismo é que o homem continua sendo um ser moral, ao mesmo tempo ansioso pelo absoluto e pelo poder. Portanto, o relativismo inicial inevitavelmente se transforma em seu oposto para se tornar um paradigma obrigatório, ideologia, senso comum. 


Em tempos de bem-estar - ainda que em declínio - homem/mulher, branco/outras raças, heterossexuais/LGBTQI+, passado/presente, os antagonismos são mais fáceis de penetrar no imaginário das massas do que a polaridade marxista patrão-operário. A Escola de Frankfurt tinha uma visão de longo prazo, a primeira a entender que as classes mais baixas têm sentimentos “conservadores”, pois estão orientadas para a consolidação de seu status socioeconômico. Para mudar o mundo, era preciso focar em outros grupos sociais, as classes urbanas semi-cultas, professores, líderes cosmopolitas, profissões intelectuais, minorias sexuais e étnicas, estrangeiros atraídos pelo bem-estar. O tique comum de comunistas e totalitários rapidamente voltou à moda em uma veia progressista: a falta de respeito pela opinião alheia. O relativismo de quem se libertou de toda convicção, fé, pertencimento comum, transforma-se em ódio à verdade, negação programática. 


O "progretariado" 
termina acreditando em autênticos enganos: não se nasce homem ou mulher, torna-se; os sexos não são dois, mas dezenas; as "orientações sexuais" são mutáveis ​​e equivalentes; a maternidade não é atribuída às mulheres por natureza - degradada a "biologia" - mas pelo domínio do patriarcado heterossexual; não há leite materno, mas "leite humano"; a mãe, "genitor um", é degradada para "genitor no nascimento"; o clima muda exclusivamente por culpa do homem (branco ocidental); o macho é estruturalmente violento contra a fêmea e assim por diante. 


A mais recente aquisição do progressismo é a chamada "teoria crítica da raça" (CRT, critical race theory, na sigla em inglês), outra criação que surgiu da cornucópia das universidades americanas. Nos últimos dez anos, o CRT tornou-se a nova ortodoxia institucional nos EUA. A ideia central é que o racismo não é produto de preconceitos ou crenças individuais, mas um conceito embutido nos sistemas jurídicos e nas políticas. A raça não é uma característica natural biologicamente fundamentada de grupos de seres humanos fisicamente distintos, mas uma categoria socialmente construída (culturalmente inventada) que é usada para oprimir e explorar pessoas de acordo com sua raça. Os teóricos críticos da raça argumentam que a lei e as instituições legais nos Estados Unidos são inerentemente racistas na medida em que funcionam para criar e manter desigualdades sociais, econômicas e políticas entre brancos e não-brancos, particularmente afro-americanos.

 

Deste ponto de vista, o escritor é um opressor privilegiado apesar de não ser rico nem poderoso, como um homem branco heterossexual. A diferença do marxismo é que governantes e dominados não são mais identificados com relação à posição econômica, mas sim pela identidade étnica e de gênero. Na base da pirâmide estão, em vários níveis de vitimização, os "bons": afro-americanos, mulheres, LGBTs e minorias em geral, quase toda a humanidade dividida em segmentos identitários opostos, exceto um, o de opressores, heterossexuais homens brancos, os maus. Minorias étnicas e sexuais, pessoas LGBT e mulheres feministas são categorias de esquerda. Os maus estão do outro lado. Muito óbvio de que lado se posicionar, na luta entre o Bem e o Mal. Afixar rótulos é muito conveniente: coloca sob acusação os adversários porque são maus e permite que aos Bons, o arco-íris progressista, desperto e "racializado", de se tornarem vítimas a serem indenizadas indefinidamente e ao mesmo tempo novos vingadores, carrascos atemporais e ilimitados. De oprimidos e supostas vítimas a verdadeiros opressores: a ditadura do progretariado. 


A última descoberta é o conceito de racialização, ou seja, "o processo pelo qual um grupo dominante atribui características raciais, desumanizantes e inferiorizantes, a um grupo dominado, por meio de formas de violência direta e/ou institucional que produzem uma condição de exploração e exclusão materiais e simbólicos. A palavra racializado/ou nos permite ver como raça, que não existe biologicamente, serve para manter relações de poder.” (de razzismobruttastoria.net). Bingo! As raças não existem "biologicamente" - as diferenças entre os vários grupos étnicos humanos são obviamente acidentes do destino - mas tudo gira em torno da raça, a ilha que não existe. O racismo é uma história ruim, do mesmo também as mentiras. 


Outro setor da ditadura do progretariado diz respeito ao gênero: para evitar ofender - a nossa é a era da suscetibilidade organizada - devemos perguntar a qualquer um, antes de nos expressarmos, se prefere que ele/ela/e* dirigimos a palavra  no masculino, feminino ou neutro (!!!). O asterisco final na comunicação escrita (car*coleg*) está na moda: maravilhas de linguagem inclusiva, Babel de neologismos e códigos a serem usados para evitar crimes de sexismo, racismo, discriminação. Não podemos mais dizer "mulheres com menstruação": melhor dizer "pessoas com menstruação". Hamlet, um pálido príncipe dinamarquês, é interpretado por atores negros, na ópera de mesmo nome Carmen não é mais morta por Don José: um imperdoável pedido de desculpas pelo feminicídio. 


Seria tudo ridículo se não fosse terrivelmente grave, o mecanismo louco de quem decidiu mudar as palavras, os pensamentos, os homens, naturalmente sem contraditório. Todas as exceções removidas, se não nos decidirmos reagir. 

 


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